FLÁVIA REGINA PORTO DE AZEVEDO [1]
(Orientadora)
RESUMO: O presente artigo trata da história do Direito de Família, delimitado a analisar sua formação na Pré-História, percorrendo seu desenvolvimento até o Período Helenístico, através de textos legais originais, registros e doutrinas extraídas de obras históricas e jurídicas, com foco no Direito Material formado, mas observando as nuances do Direito Processual. Inicialmente, utilizando do método científico, bibliográfico e descritivo, procura-se analisar como o Direito de Família foi o primeiro direito criado pela humanidade e sua aplicação na Pré-História como um conjunto de costumes. Subsequentemente, são demonstrados os marcos históricos e jurídicos do Direito de Família na Antiguidade após a invenção da escrita, observando como as normas consuetudinárias foram compiladas em códigos pelas civilizações patriarcais no Oriente e Ocidente. Por fim, é descrita uma visão panorâmica do Direito de Família no Período Helenístico, destacando o papel de Alexandre, o Grande em sua instrumentalização como controle estatal, a influência do militarismo e do despotismo absolutista, contemplando-se a violação da autonomia das famílias e judicialização dos litígios e procedimentos familiares nos Estados Sucessores e nos reinos nativos helenizados do Mundo Oriental.
Palavras-chave: Direito de Família. Pré-História. Antiguidade. Helenismo. Patriarcado.
HISTORY OF FAMILY LAW: FROM PREHISTORY TO THE HELLENISTIC PERIOD (7,000,000 BP – 30 BCE)
ABSTRACT: This article addresses the history of Family Law, specifically analyzing its formation during Prehistory and tracing its development through the Hellenistic Period. This analysis is conducted through original legal texts, records, and doctrines derived from historical and legal works, with a focus on the substantive law that was formed while also considering the nuances of procedural law. Initially, employing scientific, bibliographic, and descriptive methods, the article seeks to examine how Family Law was the first legal system established by humanity and its application in Prehistory as a set of customs. Subsequently, the historical and legal milestones of Family Law in Antiquity following the invention of writing are demonstrated, observing how customary norms were codified by patriarchal civilizations in both the East and West. Finally, a panoramic view of Family Law in the Hellenistic Period is described, highlighting the role of Alexander the Great in its instrumentalization as a tool of state control, the influence of militarism and absolutist despotism, and the consequent erosion of family autonomy and the judicialization of family disputes and procedures in the Successor States and the native Hellenized kingdoms of the Oriental World.
Keywords: Family Law. Prehistory. Antiquity. Hellenism. Patriarchy.
INTRODUÇÃO
"A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" – Constituição da República Federativa do Brasil (Art. 226), 1988.
É notório entre acadêmicos e profissionais jurídicos que o Direito é a área das Ciências Humanas dedicada a analisar, criar e aplicar as leis em um determinado Estado, já o Direito de Família, é o ramo do Direito determinado a observar e regulamentar as relações familiares e determinar a resolução dos seus conflitos. Contudo, pouco se fala sobre seu surgimento, que é tão antigo quanto as próprias leis e até mesmo a espécie humana.
Por onde devemos começar? Bem, as pessoas vêm se reproduzindo e formando suas famílias desde que desceram das árvores, e não seria surpreendente se a família já possuísse regras estabelecidas entre os primatas que viviam emaranhados nos galhos. Fósseis dos primeiros hominídeos são encontrados ao lado de seus parceiros sexuais e da prole concebida por eles.
As primeiras inscrições criadas no Oriente são contratos de casamento, registros familiares de filiação, testamentos, inventários e códigos de leis organizando a família e a sucessão. As escrituras sagradas e contos orais de diversos povos registram em seus mitos e cosmologias a família como a primeira criação de uma ou mais divindades, que também possuíam suas famílias divinas nas regiões celestes, longe dos olhos humanos. O deus criador sumério Enki era marido da deusa Ninhursag e o pai das divindades Marduk, Dumuzid, Ninsar, Ninkurra, Uttu e Ninti. Também já havia famílias nos céus.
Mesmo entre as comunidades ancestrais e tribos formadas por povos que nunca desenvolveram um sistema de escrita já existia um conjunto de costume que dava formação a um direito consuetudinário, basicamente um Direito de Família em potencial, ainda em uma escala que não pudesse ser comparado ao atual. Contudo, foram necessários séculos de história humana até o surgimento do Estado, com as pessoas se agrupando sob o governo de uma família real, em populações grandes o suficiente para que o Direito de Família deixasse os costumes e fosse codificado, de modo que o código mais antigo contendo normas familiares só foi compilado quando os sumérios edificaram uma sociedade sofisticada entre os rios Tigre e Eufrates no atual Iraque.
Paradoxalmente, sendo o Direito de Família o primeiro direito a ser criado pelas pessoas, humanas e até não-humanas (o Sahelanthropus, o ancestral mais antigo da humanidade, era praticamente um macaco), este foi marginalizado e ofuscado pelo interesse por outras áreas do Direito, de forma que dificilmente se encontrará uma obra voltada exclusivamente a narrar a história do Direito de Família. Partindo dessa premissa, o presente artigo pretende descrever a história desta ilustre área do direito, dos seus registros mais primitivos até a sua consolidação estatal pelos povos greco-asiáticos no Período Helenístico.
Após anos de desenvolvimento junto a própria família, o Direito de Família se transformou em uma importante área do Direito Civil, gradualmente se separando do Direito das Sucessões (também um dos direitos mais antigos, cuja criação é atribuída aos Neandertais) de modo que se tornou uma das vertentes jurídicas mais populares entre a sociedade, podendo-se encontrar inúmeras discussões acerca de temas pertinentes entre leigos nas redes sociais e no ambiente acadêmico.
O Direito de Família está no centro da maioria dos litígios judiciais e processos em tramitação. As pessoas não discutem sobre inconstitucionalidade das normas ou se o município promoveu de maneira correta as licitações. Discutem sobre como podem fazer o pai pagar pensão, como tirar o nome do padrasto da certidão da criança e como conseguir a guarda dos filhos. Esses debates, entretanto, não estão reservados somente a nossa época ou ao Direito Contemporâneo. Da copa das árvores onde se protegiam os Sahelanthropus até a pomposa corte helenizada dos Asmoneus na Judeia, já se discutia estes mesmos institutos, mas com outras palavras e em outros idiomas, muitos dos quais nem mais existem.
No entanto, porquê nada se discute ou se formula sobre sua história apesar de ser o ramo do direito que mais popular entre as pessoas?
Uma das maneiras mais comuns de negligenciar a história de algo é desvirtuar o sentido daquilo para os que se interessam pelo seu presente. Infelizmente, se observa, de maneira tácita – e assustadoramente até expressa – e crescente, docentes que ministram outras disciplinas do Direito e deturpam o Direito de Família, apresentando-o como complicado e difícil por ter de lidar com pessoas, e por não “dar dinheiro” devido a maior parte dos litigantes serem pessoas hipossuficientes. Isso construiu o preconceito dos acadêmicos e, consequentemente, a negligência com a sua história.
Viajando através do passado e partindo de seu nascimento ao ápice de sua fixação como ciência no Estado com o Helenismo, este artigo procura demonstrar como a história do Direito de Família se moldou desde a Pré-História e também acabou por moldar a sociedade como um todo, pois a família é a base da sociedade.
Mesmo com fontes parcas e o desaparecimento de inúmeros registros antigos pela deterioração do tempo, procurou-se de forma concisa e cuidadosa o máximo do que foi perpetuado pelas civilizações que foram suplantadas pelas guerras e transformações culturais, devotando aqui um espaço para refletir a respeito da importância da história do Direito de Família e de como ela se confunde com o desenvolvimento da família e do próprio Direito, bem como com a evolução da própria humanidade.
Isto posto, realizando uma exposição histórico-jurídica profunda de códigos, leis e estatutos originais preservados pelos museus e disponibilizados ao público, bem como a análise do contexto político e social em que se deu a outorga ou promulgação destes textos, este trabalho almeja bem mais do que somente apresentar uma demonstração cultural ou legislativa do Direito de Família em seus primeiros estágios de formação e integração entre vários povos e sociedades no Mundo Antigo, mas estimular o interesse pelo Direito de Família e suas nuances históricas, e impulsionar o estudo e a pesquisa das fontes jurídicas antigas a fim de evidenciar a importância do Direito de Família para o desenvolvimento do próprio Direito como fenômeno e fato social.
1. DIREITO DE FAMÍLIA NA PRÉ-HISTÓRIA (7.000.000 Ma [2] - 3.700 a.C.)
"Então Enki, o sábio, abriu sua boca e falou aos seus irmãos os deuses,
'Vamos matar um deus para que sua carne e seu sangue
possam ser misturados com a argila. [...]
Assim Mami criou as famílias do sangue de Geshtu-E.'"
– Atra-Hasis (Épico da Criação Acadiana), 1.636 a.C.
A Pré-História é o primeiro estágio da trajetória dos humanos na Terra, compreendendo o período entre 13.500.000 Ma e 3.700 a.C., mas o período que nos interessa se inicia em 7.000.000 Ma, quando os primeiros hominídeos dotados de certa inteligência começaram a se distinguir dos demais seres vivos pela sua organização social e desenvolvimento, se expandindo pelos demais continentes, edificando as primeiras cidades e criando as civilizações (HARARI, 2015).
Como é sabido, o Direito é uma criação humana, e não é de se surpreender que este já estava presente entre os humanos primitivos, pois assim como as ferramentas de pedra foram criadas para auxiliar na caça e na defesa dos núcleos familiares, o Direito foi criado como a ferramenta para determinar a organização dos atos e condutas com a finalidade de manter a ordem da comunidade, mesmo que nada fosse escrito ou determinado de maneira concreta.
É como leciona Miguel Reale:
"Se volvemos os olhos para aquilo que nos cerca, verificamos que existem homens e existem coisas. O homem não apenas existe, mas coexiste, ou seja, vive necessariamente em companhia de outros homens. Em virtude do fato fundamental da coexistência, estabelecem os indivíduos entre si relações de coordenação, de subordinação, de integração, ou de outra natureza, relações essas que não ocorrem sem o concomitante aparecimento de regras de organização e de conduta." [3]
Mas antes de entender como o Direito de Família foi se consolidando entre os primeiros humanos, é preciso entender as teorias que envolvem o surgimento da vida no universo, sendo elas a Criacionista e a Científica. A Teoria Criacionista possui inúmeras definições, contudo, a mais completa é a apresentada pelo Dicionário de Oxford:
"O criacionismo é a crença religiosa de que a natureza, e aspectos como o universo, a Terra, a vida e os humanos, se originaram de atos sobrenaturais de criação divina. Em seu sentido mais amplo, o criacionismo inclui uma combinação de visões religiosas, que variam em sua aceitação ou rejeição de explicações científicas como a evolução que descreve a origem e o desenvolvimento de fenômenos naturais. Na maioria das civilizações antigas, tanto como nas atuais, é possível encontrar relatos mitológicos tentando explicar a origem de tudo como um ato intencional criativo, muitas vezes destacando uma figura como o originador da vida." [4]
Assim, observando a cosmovisão judaico-cristã (a mais difundida no Ocidente), todo o universo e os humanos foram criados por Deus em sete dias, com o primeiro casal, Adão e Eva, habitando no Jardim do Éden até desobedecerem às ordens divinas e comerem do fruto do conhecimento do bem e do mal (BÍBLIA, 2023). Com isso, seus descendentes se multiplicaram pelo Oriente e começaram a viver desregradamente, até que Deus inundou a terra com o dilúvio, com apenas Noé, sua esposa, três filhos e noras se salvando com alguns pares de todos os animais existentes em uma arca (BÍBLIA, 2023).
Analisando pelo viés Criacionista indicado no livro bíblico de Gênesis, teríamos que o Direito surgiria somente após o dilúvio, pois antes disso nenhum humano seguia alguma regra ou limitador de condutas que se assemelhasse a um ordenamento jurídico constituído, que levou a sua destruição (REALE, 2001).
E ainda, o direito teria sido criado pelo próprio Deus em dois momentos, o primeiro quando criou a mulher e proferiu o que é considerado o primeiro mandamento (hebraico: Mitzvah), e o segundo ao estabelecer com Noé e sua família – isto é, a nova humanidade – uma aliança intitulada Pacto do Arco-celeste ou Sete Leis de Noé, que os judeus afirmam que devem ser observadas pelos não-judeus até hoje (REINKE, 2021).
Como pontuado, há inúmeras Teorias Criacionistas formadas pelos povos ancestrais e originários mundo a fora, sempre tendo como catalisador a tradição religiosa, já que tal cosmologia parte de que tudo fora criado por deuses, incluindo as leis. Uma das mitologias mais antigas a deixar registro foi a suméria, desenvolvida na Antiga Mesopotâmia, e em sua crença já haviam estabelecido a noção de que os deuses haviam criado o Direito:
"Nobre deus da primeira ocasião, que edificaste os povos e fizeste nascer os deuses, o original, que tornou possível que tudo vivesse; no coração de quem foi falado e que os viu evoluir, aquele que predisse o que não era e pensou o que é, o que determinou leis para os homens viverem em paz na terra." [5]
Assim, é comum em sociedades com leis religiosas antigas ou medievais vigentes que a criação de seus sistemas jurídicos seja atribuída aos deuses junto com a criação do universo, como o Manusmṛti dos hindus e o Yassa nas comunidades mongóis e cazaques na Ásia Central e Mongólia (PALMA, 2022).
Em outro passo, a Teoria Científica, combinação da Hipótese da Evolução idealizada por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace em 1859 e da Hipótese do Big Bang por Georges Lemaître e Edwin Powell Hubble nas décadas de 1920 e 1930, parte da seguinte premissa:
"HÁ CERCA DE 13,5 BILHÕES DE ANOS, A MATÉRIA, A ENERGIA, O TEMPO E O ESPAÇO surgiram naquilo que é conhecido como o Big Bang. A história dessas características fundamentais do nosso universo é denominada física.
Por volta de 300 mil anos após seu surgimento, a matéria e a energia começaram a se aglutinar em estruturas complexas, chamadas átomos, que então se combinaram em moléculas. A história dos átomos, das moléculas e de suas interações é denominada química.
Há cerca de 3,8 bilhões de anos, em um planeta chamado Terra, certas moléculas se combinaram para formar estruturas particularmente grandes e complexas chamadas organismos. A história dos organismos é denominada biologia.
Há cerca de 70 mil anos, os organismos pertencentes à espécie Homo sapiens começaram a formar estruturas ainda mais elaboradas chamadas culturas. O desenvolvimento subsequente dessas culturas humanas é denominado história." [6]
Nesse ponto, o universo não foi criado, ele surge como consequência da sua própria expansão, partindo do surgimento da vida na terra com o último ancestral universal, conhecido também como LUCA (last universal common ancestor), as formas de vida singulares foram evoluindo a partir de aspectos como seleção natural, derivação genética, mutação, adaptação, cooperação, especiação e a extinção de outras espécies, resultando no surgimento dos primeiros humanos a partir da evolução dos primatas (HARARI, 2015).
Portanto, o Direito é criado pelos humanos desde os primeiros momentos em que se distinguiram dos demais símios ao traçar regras e normas para disciplinar suas condutas e a relação com os demais hominídeos e sua própria família.
Paradoxalmente, embora incongruentes, ambas teorias demonstram que os humanos não surgiram de forma isolada, mas seu aparecimento ocorre junto com a família, o primeiro núcleo que ligava os hominídeos aos seus descendentes e colaterais pelo vínculo genético e afetivo, a entidade despersonalizada que se tornaria a base da sociedade humana (ENGELS, 2023).
Embora uma das discussões acadêmicas no âmbito da Filosofia do Direito é se a moral ou o direito surgiram de forma separada ou ínsitos em si como figura única, na Pré-História a família e as regras familiares já existiam antes mesmo da existência de algo que pudesse ser considerado como direito ou moral.
Logo, com a necessidade de se organizar e evitar a desordem e, inevitavelmente, a beligerância entre si, também foram criadas regras para reger a família, cuja formação já existia antes dos primatas descerem das árvores e se tornarem bípedes falantes, restando evidente que o Direito de Família pode ser considerado como o primeiro ramo jurídico a ser desenvolvido pela humanidade, visto que outras matérias cíveis, criminais, administrativas, comerciais, tributárias e militares só tiveram seu advento com as civilizações concebidas pelo Homo sapiens.
Um detalhe interessante é que o Direito das Sucessões, que por boa parte da história humana foi integrado ao Direito de Família, evidentemente surgiu deste ramo das leis familiares, mas posteriormente em 400.000 a.C. entre os Neandertais, os primeiros hominídeos a estabelecerem a noção de patrimônio privado a ter a titularidade transferida com a morte do proprietário aos seus herdeiros.
O Direito de Família é mais antigo que o Direito das Sucessões em 6.600.000 de anos, pois regras familiaristas já eram encontradas entre os Sahelanthropus, o hominídeo mais antigo ao qual remonta a humanidade.
1.1. O Direito de Família entre os hominídeos
O primata e ancestral mais antigos dos seres humanos foi o Sahelanthropus, que viveu entre 7.000.000 e 6.000.000 Ma, na região do atual Chade e se distinguiam dos demais macacos pela capacidade de ser bípede, andar ereto e organizar seus grupos familiares (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024).
Ainda vivendo na copa das árvores, esse hominídeo já havia desenvolvido algo que podemos chamar de Direito de Família, pois evidências arqueológicas demonstram que já existia entre os Sahelanthropus o Poder Familiar, onde os descendentes se submetiam às ordens dos ascendentes, e o mais velho era o chefe da família e quem delimitava as normas de seu grupo.
Cada família de Sahelanthropus possuía suas regras, e nelas já haviam sinais da união estável e dos princípios da afetividade e da convivência familiar. Os Sahelanthropus, em distinção aos outros primatas, tinham os machos vivendo junto das parceiras sexuais (que poderiam ser várias somente para um), caçando para prover alimentos para elas e para a prole que elas geraram, e estes machos também garantiam a proteção das mulheres e dos filhos de ataques de predadores. As fêmeas também poderiam se relacionar ao mesmo tempo com vários machos, contudo, não deliberadamente. (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024).
As regras já existentes incluíam noções de delimitação dos parentes em linha reta e colateral, a união estável como exclusiva do macho e das parceiras que ele escolheu ou entre a fêmea e os machos que ela selecionou, o cuidado mútuo dos pais em garantir a proteção dos filhos e, o mais importante, a não intervenção na família, pois o chefe de cada família impedia que outros interferissem na organização e na serenidade de seu grupo, ocorrendo até conflitos sangrentos para garantir que ninguém pudesse interferir de forma negativa em sua família.
Milhares de anos depois, apareceria entre 3.850.000 e 2.950.000 Ma nas regiões atuais entre a Etiópia e a Tanzânia o mais complexo dos hominídeos: O Australopithecus, que saiu das florestas e passou a habitar nas cavernas com seus semelhantes (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024).
Dotados de uma massa cerebral maior, eles desenvolveram o andar e uma forma de comunicação melhores, sendo praticamente humanos. Suas famílias eram extensas, vivendo juntos todos os ascendentes e descendentes juntos, sob os cuidados dos membros mais velhos, responsáveis pela proteção e educação dos mais novos.
Guardando as normas familiares já criadas pelos Sahelanthropus, os Australopithecus também criaram as primeiras noções da proteção integral dos filhos e a presunção da maternidade e paternidade, além de evidências de que os companheiros já possuíam o condomínio de alguns bens em comum, mostrando que já havia alguma noção de formação de aquestos, bens de posse comum do casal.
Posteriormente, surge o primeiro hominídeo do gênero Homo, o Homo habilis, que existiu na região da África Meridional entre 2.400.000 e 1.400.000 Ma, que se destacava pelas suas habilidades de usar a fala para se comunicar, criar ferramentas, caçar animais e coletar frutos e plantas (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024). Sua habilidade não se restringia somente a questões físicas e intelectuais, eles desenvolveram um sistema jurídico familiar detalhado, onde os costumes dos outros hominídeos anteriores foi posto em prática.
O pai e as mães tinham o dever de guardar seus filhos até que eles achassem parceiros, então esse cuidado cessava e era direcionado aos filhos menores destes filhos, que deveriam prestar obediência e respeito aos mais velhos e auxiliar nas atividades atinentes aos homens e mulheres. As uniões eram incentivadas a ocorrerem dentro da família, sendo comum que irmãos e primos coabitassem como companheiros e deviam prestar a mútua assistência uns aos outros e as demais companheiras do homem.
Como menciona Yuval Noah Harari (2015), os Homo habilis foram os criadores do que chamamos de família tradicional, ainda que a monogamia e a fidelidade não fossem requisitos caracterizadores das uniões primitivas, cuja crença era de que a concepção ocorria somente se a fêmea se envolvesse com o maior número de machos na sua comunidade:
"Em um passeio pela África Oriental de 2 milhões de anos atrás, você poderia muito bem observar certas características humanas familiares: mães ansiosas acariciando seus bebês e bandos de crianças despreocupadas brincando na lama; jovens temperamentais rebelando-se contra as regras da sociedade e idosos cansados que só queriam ficar em paz; machos orgulhosos tentando impressionar as beldades locais e velhas matriarcas sábias que já tinham visto de tudo. Esses humanos arcaicos amavam, brincavam, formavam laços fortes de amizade e competiam por status e poder – mas os chimpanzés, os babuínos e os elefantes também.
[...] De acordo com as crenças de tais sociedades, uma criança não nasce do esperma de um único homem, mas da acumulação de esperma no útero de uma mulher. Uma boa mãe trata de ter relações sexuais com vários homens diferentes, sobretudo enquanto está grávida, para que seu filho receba as qualidades (e os cuidados paternos) não só do melhor caçador como também do melhor contador de histórias, do guerreiro mais forte e do amante mais atencioso. Se isso parece estúpido, tenha em mente que antes do desenvolvimento dos estudos embriológicos modernos as pessoas não tinham provas concretas de que os bebês invariavelmente são concebidos por um único pai, e não por vários." [7]
No período de 1.890.000 Ma e 110.000 a.C., aparece o Homo erectus (também chamado de Homo ergaster), que se assemelhava fisicamente aos humanos modernos, foram os primeiros hominídeos a saírem da África para a Europa e Ásia, a descobrirem o fogo e a desenvolverem as primeiras moradias e acampamentos fora das cavernas (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024). Mantendo a mesma estrutura familiar dos seus antepassados Homo habilis, mas agora mais sedentários devido a manipulação do fogo, eles elaboraram uma base jurídica familiar bem mais sofisticada.
Foram os Homo erectus que definiram as relações de parentesco, criando as “funções” familiares dos progenitores como pai e mãe, os genitores deles como avós, os colaterais gerados pelos pais como irmãos, os gerados pelos avós junto aos pais como tios e os gerados pelos tios como primos (HARARI, 2015).
Agora monogâmicos, as famílias tinham seus litígios dirimidos pelos mais velhos, que já tratavam de questões como reconhecimento de filiação, adoção de outras crianças que não os filhos genéticos, cuidados com os idosos e crianças, além de indícios de que já havia prática de separação entre os casais, mas sem indicação se era imotivada ou não.
Sucedendo o habilis, o Homo bodoensis (anteriormente nomeado heidelbergensis), que viveu entre 700.000 e 200.000 a.C. na Ásia, Europa e África, foi o responsável pela criação das primeiras vestimentas, utensílios domésticos, rituais religiosos e sepultamentos, mas também foram quem originaram a função social da família e da solidariedade (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024).
Dentro da família dos Homo bodoensis era vital que todos os membros possuíssem deveres recíprocos de amparo e auxílio para manter o núcleo em constante funcionamento, visando garantir a comunhão de vida pacífica a ser protegida não só pelos pais, que a essa altura possuíam autoridade parental igualitária, mas pelos filhos, irmãos e demais parentes. Com isso, a família humana deveria se desenvolver para garantir o afeto e a proteção de seus membros.
O Homo neanderthalensis, ou simplesmente Neandertal, existiu por toda Europa e Ásia nos anos de 400.000 até 40.000 a.C., construindo praticamente a base social e cultural dos humanos atuais, incluindo o Direito (HARARI, 2015). O Direito de Família concebido pelos hominídeos ancestrais dos Neandertais foi refinado e implementado de forma mais concreta por estes últimos, principalmente nas comunidades primitivas no Oriente.
Surge com os Neandertais o casamento, ajustados dentro ou fora do núcleo familiar entre o casal e os patriarcas, e celebrado em uma cerimônia religiosa, e a eles é atribuída a criação do Direito das Sucessões, visto que os primeiros registros de propriedade privada sendo partilhada com os descendentes e cônjuge do falecido ao invés da comunidade remontam a esse período (REIS, 2014). Além do rito matrimonial, mantendo a monogamia do Homo erectus, os Neandertais também desenvolveram os seguintes institutos do Direito de Família:
"O conceito de responsabilidade paterna foi consolidado com os Neandertais, que atribuíam ao pai a função primordial de prover e proteger a família. Isso incluía não só a provisão de alimentos e segurança, mas também a transmissão de habilidades essenciais para a sobrevivência, como a caça e a confecção de ferramentas, formando a base da estrutura familiar e social, sendo essencial para a coesão e o sucesso do grupo.
Com o desenvolvimento de laços familiares mais complexos, surgiram também conflitos dentro do núcleo familiar. Os Neandertais implementaram mecanismos de resolução de disputas, mediadas pelos patriarcas ou anciãos do clã, líderes que decidiam sobre questões como disputas de propriedade, desentendimentos conjugais e a alocação de recursos, buscando sempre manter a harmonia dentro da comunidade." [8]
Antes de prosseguir para “nós”, os Homo sapiens, é preciso analisar que o Direito de Família foi transmitido e aperfeiçoado pelos diversos Homo ao longo da Pré-História de forma oral e replicada pelos líderes familiares a cada geração, sem remover nada do que foi criado pelas espécies passadas, o que denota que se tratava do Direito Comum – a Commom Law (REALE, 2001).
Nesse sistema, os costumes e tradições serviam de precedentes que se transmutavam em normas a serem observadas e transmitidas aos descendentes, resistindo à evolução das espécies, já que o ordenamento jurídico familiar primitivo se desenvolvia para satisfazer as demandas sociais que surgiam a cada evolução do gênero Homo.
Por volta de 300.000 a.C., evoluiu na África o Homo sapiens, a espécie humana a qual todos nós pertencemos (HARARI, 2015). Coexistindo por um tempo com os Homo bodoensis e os Neandertais, eles se espalharam por todo o mundo, chegando até mesmo na Oceania e Américas entre 62.000 e 25.000 a.C. Com o cérebro bem mais desenvolvido que de seus ancestrais e de seus contemporâneos, o Homo sapiens desenvolveram várias formas de interação diferentes e novas, saindo do núcleo familiar e formando grupos maiores para proteção da espécie (SMITHSONIAN INSTITUTION, 2024).
Aproveitando todo o arcabouço jurídico de seus predecessores e até mesmo se relacionando maritalmente com os Neandertais e bodoensis, eles absorveram as culturas e o Direito de seus antecessores, mas a sua organização familiar deixa de ser monogâmica e passa a adotar a poligamia. Os homens viviam junto com várias esposas, assim como as esposas viviam com vários homens, da mesma maneira que Homo habilis. As mulheres muitas vezes lideravam junto dos homens ou até sozinhas, possuindo funções xamânicas e educacionais nos povoados (HARARI, 2015).
No entanto, conforme estabeleciam suas comunidades, eles se desfizeram de muitos dos princípios familiares instituídos e desenvolvem o patriarcado. Não havia mais igualdade no Poder Familiar do pai e da mãe, o pai era a figura de autoridade e todos na família lhe deviam honra, mesmo as esposas, filhos maiores, noras e genros, todos sem exceção deviam seguir as normas do patriarca.
A família então se estabelece como a base da sociedade pré-histórica, perdurando nesta tipologia até os dias pós-contemporâneos, pois ela serviu de modelo para a instituição dos Estados pelos humanos, como destaca Friedrich Engels:
"[...] o direito paterno, que deixa o patrimônio como herança aos descendentes, favorece o acúmulo de riquezas na família e faz com que esta se torne um poder diante da gens; em troca, a disparidade de riquezas influencia a constituição, criando os primeiros rudimentos de uma nobreza e um reinado hereditários; a escravidão, limitada num primeiro momento aos prisioneiros de guerra, já começa a se abrir para a escravização de companheiros da própria tribo e até da gens; a velha guerra de tribo contra tribo degenera em rapinagem sistemática por terra e por mar, visando conquistar gado, escravos e tesouros e constituindo-se como verdadeira fonte de renda; em suma, a riqueza é exaltada e considerada como um bem supremo e as antigas ordens gentílicas são usadas para justificar o roubo violento de riquezas. Só faltava uma coisa: uma instituição que assegurasse as riquezas recém-adquiridas pelo indivíduo contra as tradições comunistas da ordem gentílica; uma instituição que não só santificasse a propriedade privada, antes tão menosprezada, e declarasse essa santificação a finalidade suprema de toda comunidade humana, como também imprimisse o selo de reconhecimento social universal às novas formas de aquisição de propriedade, que se desenvolveram uma após a outra, e, portanto, à multiplicação em constante aceleração da riqueza; uma instituição que eternizasse não só a divisão da sociedade em classes em surgimento mas também o direito da classe possuidora à espoliação da classe não possuidora e à dominação sobre ela. E essa instituição surgiu. O Estado foi inventado." [9]
1.2. O Direito de Família das culturas do Neolítico
Em seu último estágio no Neolítico (10.000 – 3.700 a.C.), o Direito de Família deixa de ser simples leis orais restritas ao âmbito familiar, e passa ser imposto a toda a coletividade de núcleos familiares que formavam as primeiras aldeias e cidades, basicamente Estados governados por um ou vários chefes e reis (ENGELS, 2023).
A não intervenção dos Sahelanthropus cai por terra e as famílias se tornam totalmente vulneráveis a deliberação estatal, ainda que certo nível de regras internas ainda existisse na forma do exercício do Poder Familiar. O casamento, parentesco e função social eram delimitados pelas normas que os líderes traçavam, inicialmente em suas famílias, fluindo para todos os demais que se colocavam sob a proteção daqueles chefes, servindo-os em troca de terras e subsistência.
O Direito de Família dos povos sem escrita tinha como sua fonte a religião, assim, desrespeitar as regras determinadas pelos líderes (quem também estavam comandavam os ritos religiosos) era o mesmo que desonrar os deuses, implicando em punições pela desobediência, que não eram individuais, mas aplicadas a todos os membros da família (HARARI, 2015).
Essas leis eram transmitidas diretamente aos demais pelo próprio chefe ou seus porta-vozes, e não observavam mais as transformações sociais, cada Homo sapiens que integrava a coletividade não era considerado um indivíduo com direitos, mas alguém que possuía deveres determinados por alguém.
Com isso, o Direito de Família primitivo deixa de atender a cada membro da família e se torna um conjunto de deveres a serem cumpridos, assim, cabia a esposa e aos filhos se submeterem ao pai cegamente, e ao pai organizar sua família seguindo o padrão instituído pelos líderes de sua comunidade.
Consequentemente, esta forma do Direito de Família acabou resultando no estabelecimento de uma hierarquia familiar observada até hoje, com os pais dispondo de sua autoridade parental sobre seus filhos, mas com a criação e manutenção dos infantes sendo descrita pelos entes legislativos, e não mais se encontrava a livre criação dos filhos da maneira que cada mãe e pai considerasse correta, como havia entre os hominídeos primitivos (HAREVEN, 1991). O surgimento do Estado organizado e de uma hierarquização da sociedade, resultou no estabelecimento deste sistema de estratificação familiar.
Surge também a desigualdade social, mas também a familiar, pois os cônjuges não estavam no mesmo nível de equidade que se evidenciava entre os Homo bodoensis e Neandertais por exemplo, agora o homem era a figura de comando da família, e a mulher permanecia sujeita a este comando até a morte ou divórcio, que era desencorajada pelos líderes e até mesmo proibida (LETOURNEAU, 1904).
O cuidado com os filhos se torna material e a afetividade é posta de lado, o vínculo biológico se torna superior aos demais e os filhos são apenas os gerados com a esposa, com os filhos adotivos/socioafetivos e gerados fora do matrimônio não tendo direito a filiação. As pessoas com deficiência, cujo cuidado era uma norma entre os Neandertais, agora eram consideradas defeituosas e as crianças portadoras poderiam ser mortas pelo pai (WRIGLEY, 1997).
Em virtude disso, algumas culturas primitivas se destacaram pelo seu ordenamento jurídico complexo na Ásia, África e Américas. No Oriente Médio, em uma região denominada Crescente Fértil durante 15.000 – 11.500 a.C., sobreveio a Cultura Natufiana, que exaltava o relacionamento matrimonial mais do que as demais relações familiares, como comprovado pela Escultura dos Amantes de Ain Sakhri em Israel (BAR-YOSEF, 1998).
O casamento era uma cerimônia extremamente importante para os natufianos, que eram monogâmicos, e o sexo era um ato sagrado. Os filhos eram educados pela mãe em questões domésticas e o pai ensinava os ofícios da família, as crianças eram amparadas não só pelos genitores, mas toda a família extensa formada por avós, tios e primos.
Haviam também indícios da família multiespécie em achados paleontológicos nos sítios de Ain Mallaha e Hayonim em Israel, onde indivíduos foram sepultados com seus cães, não como sacrifícios, mas como se os cachorros fossem membros da família destes (BAR-YOSEF, 1998).
Indo para a África, uma sociedade complexa se formou onde hoje é o Egito entre 4.000 e 3.000 a.C., a Cultura Naqada – também chamada de Era Protodinástica –, que lançou os basilares das regras familiares egípcias (REYNES, 2000). Os protoegípcios se diferiam das demais culturas neolíticas por prezarem o matriarcado. A autoridade parental equitativa entre o pai e a mãe ainda foram mantidos em sua sociedade, e apesar do Direito de Família ser formulado pelos homens, as mulheres que definiam como seria sua aplicação.
Ainda na Era Naqada, o Princípio da Solidariedade foi posto em prática, pois a incidência de inúmeras guerras dinásticas levou que as famílias se baseassem em todos os seus membros para protegerem sua manutenção, já que sempre era incerto o destino dos cidadãos após as constantes guerras entre os reis do Alto e Baixo Egito. Outro detalhe é que seu Direito (incluindo o familiar) era ditado pelo sacerdócio em vez da realeza (REYNES, 2000).
No Brasil, o assentamento humano mais antigo é o que pertenceu a Cultura de Lagoa Santa, que existiu em Minas Gerais entre 13.000 e 11.000 a.C. Foi lá que se encontrou o fóssil de Luzia em 1970, considerada a brasileira mais antiga (NEVES & Piló, 2008). De origem austronésia, esses paleoindígenas organizavam suas famílias nos moldes patriarcais, com o homem sendo o chefe da família, mas sem diminuir a mulher, que estava no mesmo patamar que ele na tomada de decisão acerca da criação dos filhos (GUIMARÃES, 2016).
Evidências arqueológica demonstram que eles praticavam alguns rituais de casamento e nascimento de filhos, mas nada muito detalhado devido a deterioração de muitos sítios. Mas pesquisas realizadas em entre 2007 e 2014 por Anna-Sapfo Malaspinas mostraram que indígenas de origem Kawahib/Caribe carregavam os mesmos genes que Luzia e os demais fósseis de Lagoa Santa, comprovando que as mesmas tradições desses povos originários eram observadas pelos paleoindígenas, inclusive seu Direito de Família:
"Os grupos, que variavam de 50 a 300 pessoas, passavam o inverno no planalto, se alimentando do pinhão e castanhas. No verão desciam para o vale, se reuniam e construíam ranchos, em semi-círculo, voltados para uma praça central onde faziam os rituais de iniciação, casamentos, ritos funerários, confraternizavam, caçavam e planejavam ataques aos inimigos. Terminada a estação cerimonial, a vila se desfazia, e os grupos saíam para mais uma jornada no planalto no inverno, e se reencontravam para outra cerimônia, já planejada, no verão.
A admissão da existência de cinco grupos exogâmicos, que tinham suas próprias pinturas corporais (ou "marcas") talvez se fundamente em desdobramentos, quiçá sazonais, das três facções que sucederam as duas antigas patrimetades. Mas, na época da pesquisa de Henry, já não havia uma relação direta entre diferentes pinturas corporais e diferentes grupos de nomes pessoais.
A residência após o casamento era com os parentes da esposa, sem que o marido atenuasse seus laços com a família extensa de origem, pois davam grande valor às lealdades paternas.
Admitiam que, na procriação, o homem colabora com o sêmen e a mulher com o sangue. Para o feto se desenvolver eram necessárias relações sexuais contínuas. O homem era quem transmitia as características físicas da criança.
Ao nascer um menino, o pai e seus parentes escolhiam para ele o prenome de um antepassado notável, ao qual acrescentavam como sobrenome o prenome do pai acrescido do conjunto de nomes que identificava e qualificava a família extensa do pai e à qual a criança passava a pertencer. O mesmo se dava ao nascer uma menina, só que eram os parentes da mãe que faziam a escolha do prenome dela, acrescido do prenome de seu pai e o conjunto de nomes da família extensa da mãe.
No processo de maturação sexual das adolescentes era importante que mantivessem relações sexuais freqüentes com os homens. Havia a existência da poligamia, mas não da poliandria.
A morte é um relevante fator de ruptura social entre e evoca seu principal ritual: a reclusão do cônjuge sobrevivente. Quando em reclusão, eles devem obedecer a restrições alimentares e a uma série de rituais de purificação. O retorno do viúvo ou viúva para o convívio implica no seu corte de cabelos e unhas, cânticos, danças e pinturas corporais envolvendo a comunidade. Os mortos adultos eram cremados, e as crianças enterradas, pois acreditava-se que elas retornariam ao ventre da mãe e renasceriam; por isso a nova criança recebia o nome da falecida.
O ritual de iniciação das crianças era central. Os meninos, entre três e cinco anos, tinham botoques inseridos no lábio inferior; as meninas, também nesta idade, recebiam tatuagens na perna esquerda, abaixo da rótula. Os padrinhos, responsáveis pela perfuração labial e tatuagens, eram os mesmos que enterravam o cordão umbilical da criança e que mais tarde acompanhariam o desenvolvimento e socialização das crianças até a fase adulta. Normalmente eram os afilhados que se incumbiam da cremação de seus padrinhos quando morriam.
Existia uma a forte relação entre homens denominada "companheiros de caça", e que a mesma ia além da dos laços consangüíneos. O processo de formação do homem devia transformá-lo em uma pessoa plena e orgulhosa de si mesma. E só chegava a este estágio após ter filhos e lutar contra outras famílias extensas ou contra os outros povos que chegariam na região." [10]
Além do Brasil, muitos outros povos originários guardam o Direito dos povos sem escrita pré-históricos, até mesmo as normas e princípios dos hominídeos anteriores ao Homo sapiens (ENGELS, 2023). É o caso dos Aborígenes australianos, Huli de Papua-Nova Guiné, Inuit canadenses, Khoisan do Sul da África, Sentineleses nas Ilhas Andamão, entre inúmeros por toda América, África e Oceania que mantiveram o mesmo modo de vida de seus ancestrais do paleolítico.
Assim como na Pré-História, esses grupos ainda têm como seu âmago a família, visto que ela é o que origina as comunidades e é o primeiro contato dos humanos com o que pode ser chamado de sociedade. Muitas dessas culturas ainda guardam a tradição do Direito Familiar Interno que os Homo habilis e erectus praticavam, com cada chefe de família determinando as regras que seus parentes irão seguir e suas funções. Como afirma Tamara K. Hareven:
"O sistema de parentesco dos povos isolados reflete sua história como tradicionalmente pequenos grupos móveis de forrageamento. O parentesco é semelhante ao parentesco dos hominídeos, que usa o mesmo conjunto de termos das culturas atuais, mas adiciona uma regra de nome e uma regra de idade para determinar quais termos usar. A regra de idade resolve qualquer confusão decorrente de termos de parentesco, pois o mais velho de duas pessoas sempre decide como chamar o mais novo.
As crianças não têm deveres sociais além de brincar, e o lazer é muito importante para os povos isolados de todas as idades. Grandes quantidades de tempo são gastas em conversas, brincadeiras, música e danças sagradas. As mulheres podem ser líderes de seus próprios grupos familiares. Elas também podem tomar decisões importantes para a família e o grupo e reivindicar a propriedade de poços de água e áreas de forrageamento. As mulheres estão envolvidas principalmente na coleta de alimentos, mas às vezes também participam da caça.
[...]
Tradicionalmente, quase todos os povos isolados eram uma sociedade igualitária. Embora tivessem chefes hereditários, sua autoridade era limitada. Eles tomavam decisões entre si por consenso, com as mulheres tratadas como relativamente iguais na tomada de decisões.
A maioria dessas sociedades é poli e endogâmica, e também não é de se estranhar que esteja presente a poliandia e se possa encontrar uma mulher com três ou qutro maridos submissos a ela, com o intuito de conceber o máximo de filhos." [11]
A necessidade de manter o grupo unido em um só ente em meio às adversidades ambientais e territoriais fez com que as normas familiares fossem constantemente adaptadas e reforçadas, já que as famílias primitivas precisavam se organizar para garantir a procriação, a distribuição de recursos e a proteção contra ameaças externas (HARARI, 2015). O Direito de Família, então, surgiu como uma resposta a essas necessidades, garantindo a perpetuação do grupo e a autonomia de seus membros.
A oralidade também permitia uma certa flexibilidade nas normas, já que elas podiam ser adaptadas conforme as circunstâncias mudavam (REIS, 2014). No entanto, a ausência de registros escritos também significava que as normas estavam sujeitas à interpretação e ao julgamento dos patriarcas ou matriarcas do grupo, que tinham a responsabilidade de assegurar que as regras fossem seguidas e de resolver disputas quando elas surgissem.
Logo, as normas familiares nas sociedades ágrafas não eram fixas, elas estavam em constante evolução, sendo adaptadas às mudanças nas condições ambientais e territoriais enfrentadas pelas famílias. O Direito de Família se põe como o primeiro Direito criado pelos humanos e demonstra a conexão entre a família e a lei, surgidas praticamente juntas como um fruto da organização primária em sociedade, decorrendo da necessidade de se manterem vivos em meio às mudanças climáticas e territoriais, mas indicando como essas normas familiares atravessaram a própria evolução das espécies sendo replicada pelos vários hominídeos que sequer tiveram contato uns com os outros.
Essa demanda pela manutenção da família unida e pacificada pelos ordenamentos ditados pelos patriarcas ou líderes foi o que impulsionou o surgimento do Estado e das demais correntes jurídicas, pois foi somente quando as relações saíram de dentro da família nuclear e extensa para se entrelaçarem com outras famílias sem vínculo genético, que se viu o surgimento de outras regras e normas além das familiares.
2. DIREITO DE FAMÍLIA NA ANTIGUIDADE (3.700 – 333 a.C.)
"Meskalamdug, rei de Ur,
Pai dos grandes povos,
Protetor das famílias debaixo dos grandes deuses,
Com a bênção de Anu e Enlil, na glória do seu reinado,
Os filhos das famílias e as casas do povo,
Estão sob minha mão forte, abençoadas pelo céu,
As famílias do meu reino, ninguém ousará causar-lhes mal."
–Tabuleta RIME 1.13.03.02 (Inscrição de Meskalamdug), 2.539 a.C.
A Antiguidade foi a época em que a escrita foi formada no Oriente pelas primeiras civilizações na Mesopotâmia, Vale do Nilo e Vale do Indo, e graças ao seu desenvolvimento, as leis passaram a ser registradas, incluindo as normas familiares (STOLZE & PAMPLONA, 2019). O Direito de Família nesse período foi imbuído pela determinação estatal dos procedimentos do casamento, divórcio, parentesco, filiação e regime de bens, mas a forma como seria cumprida era particular de cada família vassala dos reis e sacerdotes que legislavam acerca do assunto (PALMA, 2022).
Desta forma, até o Período Helenístico, as normas familiaristas respeitavam a não intervenção no que tange a forma como cada chefe da família cumpriria o direito e o processo, no entanto, o Estado ainda dispunha sobre o planejamento familiar e todas as regras de sua existência e procedimentos matrimoniais (DIAS, 2021). Outra criação foi a submissão dos procedimentos legais de família a um sistema de registros em contratos privados e escrituras públicas (SIQUEIRA & SIQUEIRA, 2000).
Por conseguinte, as normas que eram orais e baseadas nos costumes pré-históricos foram codificadas pelas Civilizações Orientais, criando o que hoje nós conhecemos como Códigos Legais (REALE, 2001). Estes códigos eram redigidos pelos reis, nobres ou sacerdotes, e até em conselhos conjuntos entre políticos e clero, a fim de manter as famílias em ordem para evitar a autonomia dos indivíduos ante o poder real, além de reforçar o ideal do nacionalismo, que estava gradualmente se desenvolvendo com a delimitação estatal.
Assim, as codificações, além de servir como instrumento de controle real, ordem social e identidade nacional, transformaram as famílias com seus atos e litígios em um dos focos principais da tutela jurisdicional da época, tomando a resolução interna do monopólio dos patriarcas e compartilhando-a com os juízes e reis, pois a família era o reflexo do funcionamento do governo (ENGELS, 2023).
2.1. O Direito de Família na Mesopotâmia
A civilização mais antiga conhecida é a dos sumérios, que habitaram a Mesopotâmia (atual Iraque) entre 5.500 e 1.800 a.C., criaram o mais antigo sistema de escrita do mundo, o cuneiforme, método usado em seu idioma antigo, o acadiano, bem como inventaram a roda, o sistema de numeração sexagesimal e compilaram coleções de leis que já dispunham sobre o Direito de Família (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1991).
No Cemitério Real Ur, os arqueólogos britânicos descobriram em 1928 algumas inscrições do reinado de Ur-Pabilsag (r. 2.610 – 2.558 a.C.) e seu filho Meskalamdug (r. 2.558 – 2.522 a.C.) com sua esposa Puabi (r. 2.558 – 2.536 a.C.), iniciando com estes reis se intitulando como “Pai do Reino” (acadiano: A-a lugal), e a rainha Puabi como “Mãe do Povo” (acadiano: Ama niĝ-en) (CDLI, 2019).
Nos trechos recuperados, o rei Ur-Pabilsag decretou o livre planejamento familiar, determinou que o pai (acadiano: A-a) e a mãe (acadiano: Ama) deveriam arranjar os casamentos dos filhos (acadiano: Dumu), que a idade núbil para os homens começava a correr do nascimento dos pelos faciais para os homens e para as mulheres a partir da menstruação (CDLI, 2015).
Já o rei Meskalamdug, dispôs que o casamento era livre, homens (acadiano: Lu) e mulheres (acadiano: Munus) poderiam ter o número que quisessem de consortes, os pais eram obrigados a proteger e cuidar dos filhos até o casamento, e a rainha Puabi determinou que homens e mulheres possuíam os mesmos deveres familiares, rompendo com a tradição patriarcal vigente na época (CDLI, 2004).
Outra referência legal é encontrada na Estela dos Abutres, do rei Eannatum de Lagash (r. 2.502 – 2.468 a.C.), que apesar de um monumento militar, traz uma inscrição informando que o rei proibiu a poliandria – uma mulher com vários maridos –, o primeiro impedimento matrimonial registrado na história (CDLI, 2012).
Na mesma época, são compilados os primeiros conjuntos legais propriamente ditos, as Leis de Ebla, outorgadas pelo rei Kun-Damu (r. 2.488 – 2.430 a.C.), um conjunto de tabuletas com vários códigos de Direito Privado, mas um que se destaca é a Tabuleta CDLI Lexical 000008 – Ex. 002, com 18 artigos referentes as castas familiares, ao casamento e seu registro pelos escribas e como os notários deveriam realizar esses registros familiares, além de trazer a primeira menção ao divórcio na história:
"“Quando os elevados Anu[12] e Enlil[13], os divinos senhores dos céus e da terra, decretaram os destinos das nações, erigindo o próspero reino de Ebla, e quando, sob a égide dos deuses, a cidade floresceu em poder e justiça, os luminares dos Anunaki[14] voltaram seus olhos sobre mim, Kun-Damu, o filho de Eshar-Malik, o pai escolhido, o pastor dos homens, para trazer equidade à terra, extirpar o mal e proteger o fraco do jugo do forte. Eu, Kun-Damu, servo devoto dos deuses, fui designado para instituir leis que guardassem a ordem e a harmonia em nosso próspero domínio, e que assegurassem a paz e a justiça a todos os súditos de Ebla, desde os nobres até os mais humildes.”
1º - Se alguém nasce na casta dos Lugal[15], cuja estirpe é da mais alta nobreza e detentora de vastas terras e riquezas, do pleno gozo das bênçãos dos deuses celestias, esse deverá gozar dos privilégios e responsabilidades que tal posição confere, sendo-lhes permitido contrair matrimônio apenas com aqueles de linhagem igualmente nobre, sob pena de perda de privilégios e confisco de terras.
2º - Se alguém da casta dos Ensi[16] violar os ditames sagrados de sua função, abusando de seu poder para oprimir o povo, esse deverá ser julgado pelo conselho dos anciãos e, se culpado for, destituído de sua posição e banido da cidade, suas posses sendo redistribuídas entre os necessitados.
3º - Se um Awilu[17] contrair núpcias com alguém de casta inferior, tal matrimônio deverá ser registrado pelos escribas, e as proles deste casamento serão consideradas parte da casta dos Mushkenu[18], não tendo direito a herdar as propriedades ou títulos de nobreza de seus ascendentes.
4º - Se um Mushkenu, pela força do trabalho e da astúcia, adquire riquezas consideráveis, deverá ser reconhecido pelo conselho dos anciãos e elevado à casta dos Awilu, mas não poderá, sob pena de severas sanções, reivindicar títulos de nobreza ou cargos de governança que sejam reservados aos Lugal e Ensi.
5º - Se um escravo, pertencente à casta dos Wardu[19], for libertado por seu senhor em ato solene registrado pelos escribas, esse será considerado Mushkenu e deverá, dentro de um ciclo completo de lua, apresentar-se ao templo principal para receber as bênçãos dos deuses e sua nova posição ser formalmente reconhecida.
6º - Se um homem deseja desposar uma mulher, deverá apresentar seu desejo ao pai da donzela, e, se o pai consentir, ambos os nubentes deverão comparecer ao templo de Inanna[20], onde os escribas registrarão o pacto matrimonial em tabuletas de argila, seladas com o selo do sumo sacerdote, para que tal união seja reconhecida pelos deuses e pelos homens.
7º - Se um Awilu toma uma esposa e não registra tal união pelos escribas, e posteriormente reclama o direito sobre a herança ou propriedades de sua esposa, tal reclamação será considerada nula e sem efeito, e o homem será multado em prata, equivalente a um terço do valor da propriedade reivindicada.
8º - Se um Lugal desposa uma mulher de casta inferior, sem o consentimento de seu conselho familiar, tal união não será reconhecida, e qualquer prole nascida dessa união será considerada Mushkenu, sem direito a herança ou títulos nobiliárquicos.
9º - Se uma mulher, estando casada, é acusada de adultério por seu esposo, e tal acusação é levada perante os deuses em julgamento pelo rio, se a mulher for tragada pelas águas, será considerada culpada e seu esposo poderá tomar outra esposa sem que esta união seja dissolvida. Se a mulher sair ilesa das águas, seu acusador será punido, e a esposa inocente poderá reivindicar metade das posses do esposo.
10º - Se um homem deseja a separação de sua esposa, deverá apresentar sua causa perante os anciãos e, se justo motivo for encontrado, os escribas deverão registrar a dissolução do matrimônio, restituindo à mulher todos os bens e dotes que trouxe à união.
11º - Se um homem ou mulher, de qualquer casta, for encontrado culpado de violar o leito conjugal, o culpado será entregue à fúria dos deuses, e a parte ofendida poderá, conforme seu direito, exigir a morte do infrator ou sua venda como escravo, sendo os ganhos da venda entregues ao ofendido.
12º - Se alguém, casado com alguém de casta inferior, tentar elevar a casta de sua prole sem o devido registro pelos escribas, tal tentativa será considerada uma afronta à ordem divina, e o ofensor será multado em prata, equivalente ao valor de três escravos, devendo a prole ser considerada Mushkenu por todos os dias de sua vida.
13º - Se um homem casado toma outra esposa sem o consentimento da primeira, e tal ato não é registrado pelos escribas, a primeira esposa poderá repudiar o homem e reivindicar metade de seus bens, sendo livre para tomar outro esposo sem impedimento.
14º - Se um homem ou mulher morrer sem deixar herdeiros legítimos, os bens e propriedades serão entregues ao templo de Enlil, e o sumo sacerdote distribuirá as riquezas entre os Mushkenu da cidade, conforme os ditames dos deuses e a vontade do falecido.
15º - Se um escravo, libertado e elevado à casta dos Mushkenu, desposa alguém de casta superior sem o devido registro e consentimento, tal união será considerada nula, e o escravo retornará à condição de servidão, seus bens confiscados e entregues ao templo.
16º - Se um escriba falsificar um registro matrimonial ou alterar os ditames do pacto, tal escriba será levado perante os deuses e, se considerado culpado, será lançado ao fogo, para que sua alma seja purificada pelos deuses.
17º - Se um escriba negligencia seu dever de registrar uma união ou separação, e tal negligência causa disputa entre as partes, o escriba será punido com uma multa de prata equivalente a um Wardu, e será proibido de exercer sua função por um ciclo completo de lua.
18º - Se um escriba é encontrado culpado de conspirar com alguém para alterar a casta de um indivíduo sem o devido processo, tal escriba será condenado à servidão, suas posses confiscadas e entregues ao templo de Inanna.
“E assim, por ordem dos deuses, estas leis foram instituídas para manter a ordem e a justiça no reino de Ebla, e para assegurar que todos, desde os Lugal até os mais humildes Wardu, conheçam seus direitos e deveres perante os deuses e os homens. Que as bênçãos de Anu, Enlil e Inanna recaiam sobre todos que cumprem estas leis, e que a ira dos deuses alcance aqueles que as violarem.” " [21]
O primeiro Código propriamente dito é o do rei Urukagina de Lagash (r. 2.380 – 2.360 a.C.), contando com 36 artigos, criando o casamento civil, determinando um valor mínimo para o dote (acadiano: Níg-díb) e as regras para adquirir concubinas (acadiano: Sal-me), uma relação contratual e servil onde uma mulher se prestava a manter relações sexuais com a única finalidade de conceber filhos ao seu mestre (CASTRO, 2010). O Código mais extenso é o de Ur-Nammu de Ur (2.200 – 2.150 a.C.), composto por 57 artigos, cujo parte do conteúdo é voltado em parte ao Direito de Família:
"PRÓLOGO
“Após Anu e Enlil terem transferido a realeza de Ur para Inanna, naquele tempo Ur-Nammu, filho nascido de Ninsun, para sua amada mãe que o deu à luz, de acordo com seus princípios de equidade e verdade. Então Ur-Nammu, o poderoso guerreiro, rei de Ur, rei de Suméria e Acádia, pelo poder de Inanna, senhora da cidade, e de acordo com a verdadeira palavra de Utu[22], estabeleceu a equidade na terra; ele baniu a maldição, a violência e o conflito, e fixou as despesas mensais do Templo em 90 gur[23] de cevada, 30 ovelhas e 30 sila[24] de manteiga. Ele forjou a medida de bronze sila, padronizou o peso de uma mina, e padronizou o peso da pedra de um shekel[25] de prata em relação a uma mina[26]. O órfão não foi entregue ao homem rico; a viúva não foi entregue ao homem poderoso; o homem de um shekel não foi entregue ao homem de uma mina.”
DAS LEIS DO REINO DE UR
1º - Se um homem seduz com astúcia uma mulher prometida ainda não casada e a leva para (sua) família, este homem será morto.
2º - Se a esposa de um homem, por sua própria iniciativa, seduz outro homem, dorme com ele, (e) um pessoa matar a mulher, ela será libertada.
3º - Se um homem seduz com astúcia uma escrava solteira e a leva para sua casa, esse homem irá pague cinco siclos de prata.
4º - Se um homem se divorciar de sua esposa favorita, ele pagará sessenta siclos de prata.
[...]
19º - Se um homem casou-se e sua esposa se divorcia dele, somente depois de ela ter esperado seis meses pela seu benefício, a mulher pode casar com o cônjuge da sua escolha.
[...]
23º - Se um escravo se casar com uma pessoa livre, ele deverá entregar o seu primogênito ao seu dono.
24º - Se um homem casar com uma viúva de quem ele se divorciar, ele deverá pagar-lhe meia mina de prata.
25º - Se um homem dormir com uma viúva e coabitar com ela sem que houvesse qualquer contrato de casamento, ele não precisa pagar nenhuma prata como compensação.
[...]
28º - Se um futuro genro entrar na casa do seu futuro sogro, mas este mais tarde entregar a sua filha a outro homem, o sogro deverá devolver ao genro rejeitado o dobro do valor dos presentes de casamento que ele havia trazido.
[...]
34º - Se um escravo se casar, ele não pode ser libertado e forçado a deixar a casa para que o proprietário possa economizar as despesas de sustentar a família do escravo.
35º - Os escravos precisavam do consentimento de seus senhores para se casar, então para que não sejam simplesmente expulsos.
36º - Se o escravo se casar e agora for um liberto, ele ainda é membro da casa de seu senhor e ele e sua família serão sustentados pelo senhor.
[...]" [27]
Em 1.930 a.C., foram outorgadas as Leis de Eshnunna, na cidade de mesmo nome, estipulando as ações dos juízes diante dos litígios familiares, o procedimento do divórcio sendo administrativo e realizado pelo marido ou esposa, e o exercício da tutela dos órfãos pelos familiares paternos em preferência aos maternos (CDLI, 2015).
O último código legal sumério foi o compilado pelo rei Lipit-Ishtar de Isin (r. 1.870 – 1.854 a.C.), trazendo a primeira norma de reconhecimento dos filhos e filhas concebidos fora do casamento, ordenando que o suposto pai fornecesse a mãe, fosse prostituta ou concubina, e aos filhos condição equitativa ao dos seus filhos e esposas, inclusive garantindo o direito sucessório desses filhos, que não poderiam ser considerados inferiores (CDLI, 2005).
Em 2.332 a.C., a Suméria foi controlada pela primeira vez por uma dinastia estrangeira, o Império Acádio, fundado por Sargão, o Grande (r. 2.334 –2.279 a.C.), conhecido como o primeiro imperador da história (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Os acádios herdaram a escrita e muitos aspectos culturais dos sumérios, e também adotaram suas leis e seu Direito de Família.
Após isso, os sumérios foram gradualmente governando poucas cidades, até que seu último reduto, a cidade de Ur, foi conquistada e saqueada por Sumu-Abum (r. 1.897 – 1.883 a.C.), um sheik tribal que liderava os amoritas (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Os amoritas, povos de origem árabe que falavam acadiano, assimilaram a cultura suméria aos seus costumes e fundaram na Mesopotâmia o Primeiro Império Babilônico de 1.894 até 1.595 a.C. (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Seu principal governante foi o rei Hamurabi (r. 1.810 – 1.750 a.C.), conhecido amplamente pelo seu Código extenso com 282 artigos tratando de Direito Civil, Penal, Administrativo e Tributário, gravado em uma enorme estela de diorito negro (PALMA, 2022). O Direito de Família amorita no Código – catalogado como Estela RIME 4.03.06.add21 – é disposto da seguinte maneira:
"PRÓLOGO
“Quando Anu, o Sublime, Rei dos Anunaki, e Bel[28], o senhor do céu e da terra, que decretou o destino da terra, atribuída a Marduk[29], o filho governante de Ea, Deus da justiça, domínio sobre o homem terreno, e o tornou grande entre os Igigi[30], eles chamaram Babilônia por seu nome ilustre, tornou-o grande na terra e fundou nela um reino eterno, cujos fundamentos estão tão solidamente como os do céu e da terra; então Anu e Bel chamou pelo meu nome, Hamurabi, o príncipe exaltado, o pastor do povo, que temia os deuses, para estabelecer o governo da justiça na terra, para destruir os ímpios e os malfeitores; para que os fortes não prejudiquem os fracos; para que eu governasse pessoas de cabeça preta[31] como Shamash, e iluminar a terra, para promover o bem-estar da humanidade. [...]”
CÓDIGO DE LEIS DE HAMURABI
[...]
V - DO CASAMENTO, DA FAMÍLIA E DA SUCESSÃO
§ 128. Se um homem tomar uma mulher como esposa, mas não tiver relações sexuais com ela, esta mulher não será sua esposa.
§ 129. Se a mulher de um homem for surpreendida com outro homem, ambos serão amarrados e lançados ao rio, mas o marido pode perdoar a sua esposa, segundo o mesmo procedimento pelo qual o rei perdoa seus escravos rebeldes.
§ 130. Se um homem violar a esposa (noiva ou esposa-criança) de outro homem, que nunca conheceu homem, e ainda mora na casa de seu pai, e dormir com ela e for surpreendido, esse homem será condenado à morte, mas a esposa é inocente.
§ 131. Se um homem apresentar queixa contra a sua esposa, mas ela não estiver com outro homem, ela deverá se divorciar dele.
§ 132. Se o dedo é apontado[32] para a esposa de um homem por causa de outro homem, mas ela não é pega dormindo com o outro homem, esse que faz a acusação pulará no rio e sua esposa será entregue ao marido da mulher acusada.
§ 133. Se um homem for feito prisioneiro de guerra, e houver sustento em sua casa, mas sua esposa sair de casa e da corte, e for para outra casa porque esta esposa não guardou seu retorno, e este for libertado de seu cativeiro, ela será condenada judicialmente e jogada no rio.
§ 134. Se alguém for capturado na guerra e não houver sustento em sua casa, se sua esposa for para outra casa, e este homem retornar vivo, esta mulher será considerada inocente.
§ 135. Se um homem for feito prisioneiro de guerra e não houver sustento em sua casa e sua esposa for para outra casa, mas eles tiverem filhos, e se mais tarde o marido voltar e for para sua casa, então ele poderá se divorciar da esposa e ela retornará para o seu sogro, mas os filhos seguirão o pai.
§ 136. Se alguém abandonar sua casa, e então sua esposa for para outra casa, e ele retornar e desejar levar sua esposa de volta, porque ele fugiu de sua casa e a abandonou, a esposa deste fugitivo não deverá voltar para o marido e deve se divorciar dele.
§ 137. Se um homem quiser separar-se de uma concubina que lhe deu filhos, ou se divorciar de sua esposa que lhe deu filhos, então ele deverá dar a essa esposa seu dote e uma parte do usufruto do campo, jardim e propriedade, e pagar um valor para que ela possa criar seus filhos. Quando os filhos estiverem adultos, uma parte de tudo o que for dado aos filhos, será dada a ela, igual a um filho. Ela poderá então se casar com o homem de seu coração, se não perderá direito à essa prestação. A concubina e os filhos nascidos dela terão direito somente ao valor para a criação deles, e ficando estes filhos adultos, ela não receberá mais nada.
§ 138. Se um homem desejar separar-se de sua esposa que não lhe deu filhos, ele deverá dar-lhe a quantia do dinheiro da compra e do dote que ela trouxe da casa de seu pai, e a deixará ir.
§ 139. Se não houve preço de compra[33], ele deverá dar-lhe uma mina de ouro como presente de liberação do casamento.
§ 140. Se não houve dote, deverá dar-lhe um terço de uma mina de ouro.
§ 141. Se a esposa de um homem, que é inquilino em sua casa, deseja abandoná-la, endivida-se, tenta arruinar a casa, negligencia o marido e é condenada judicialmente, se o marido lhe oferecer o divórcio, ela poderá seguir seu caminho, mas ele não lhe dará nada como presente de liberação do matrimônio. Se o seu marido não quiser liberá-la, e se ele tomar outra esposa, ela permanecerá ligada a ele, mas será reduzida à concubina, ficando na sua casa como serva dele e sua inquilina.
§ 142. Se uma mulher briga com o marido e diz: “Você não é agradável comigo”, devem ser apresentadas as razões do seu preconceito ao juiz. Se ela for inocente e não houver culpa da parte dela, mas ele a abandonar e a negligenciar, então nenhuma culpa será atribuída a esta mulher, ela deverá se divorciar dele, pegar seu dote e voltar para a casa de seu pai.
§ 143. Se ela não é inocente, mas abandona o marido e arruína a casa, negligenciando o marido, esta mulher será lançado no rio.
§ 144. Se um homem tomar uma esposa e esta mulher der ao seu marido uma serva, e ela lhe tiver filhos, mas este homem deseja tomar outra esposa, isso não lhe será permitido, ele não tomará uma segunda esposa.
§ 145. Se um homem tomar uma esposa e ela não lhe der filhos, e ele pretender tomar outra esposa, se ele tomar esta segunda esposa, e trazê-la para casa, esta segunda esposa não terá igualdade com sua primeira esposa.
§ 146. Se um homem tomar uma esposa e ela lhe der uma serva como esposa e ela lhe der filhos, e então esta empregada assumir a igualdade com a esposa, porque ela lhe deu filhos, seu senhor não a venderá por dinheiro, mas ele pode mantê-la como escrava, contando-a entre as servas. O casamento não libertará a escrava.
§ 147. Se ela não lhe deu filhos, então sua esposa pode vendê-la por dinheiro.
§ 148. Se um homem tomar uma esposa e ela for acometida por uma doença, se ele desejar tomar uma segunda esposa, ele não devera repudiar e se divorciar de sua esposa, que foi atacada pela doença, mas deverá mantê-la na casa que ele construiu e a sustenta enquanto ela viver.
§ 149. Se esta mulher doente não desejar permanecer na casa do marido com sua nova esposa, ela se divorciará dele e ele deverá indeniza-la pelo dote que ela trouxe da casa de seu pai, e ela poderá ir.
§ 150. Se um homem der a sua esposa um campo, um jardim, uma casa e uma escritura de um bem pela ocasião do noivado, se depois da morte do seu marido os filhos não reclamarem, então a mãe poderá legar tudo a um dos seus filhos a quem ela preferir, e não precisa deixar nada para seus irmãos.
§ 151. Se uma mulher que morava na casa de um homem fez um acordo com o marido, segundo o qual nenhum credor pode prendê-la, e deu documento para isso, se aquele homem, antes de se casar com aquela mulher, tinha uma dívida, o credor não pode prender a mulher por isso. Mas se a mulher, antes de entrar na casa do homem, tiver contraído uma dívida, o seu credor não poderá prender o seu marido por isso.
§ 152. Se depois de a mulher ter entrado na casa do homem, e ela sozinha contrair uma dívida, ambos deverão pagar ao credor dela.
§ 153. Se a esposa de um homem tiver seu marido e a esposa de outro homem executados por adultério, e ela e outro homem mantiverem relações sexuais, ambos serão empalados.
§ 154. Se um homem for culpado de incesto com sua filha, deverão levar esta notícia ao rei, e ele ordenará que ele saia do reino e vague pelo deserto, mas a filha será jogada no rio.
§ 155. Se um homem desposar uma menina e já tiver um filho da mesma idade dela, e seu filho tiver relações sexuais com ela, e o pai foi quem a deflorou, então o filho será amarrado e lançado no rio com ela.
§ 156. Se um homem desposar uma menina e já tiver um filho da mesma idade dela, e seu filho manter relações sexuais com ela, mas o pai não foi quem a deflorou ou não mantém relações sexuais com ela, o filho deverá pagar-lhe meia mina de ouro e ele deverá se divorciar dela, restituindo-lhe por tudo o que ela trouxe da casa de seu pai. Então ela pode se casar com o homem do seu coração.
§ 157. Se alguém for culpado de incesto com sua mãe ou com seu pai, ambos serão queimados.
§ 158. Se alguém for surpreendido por seu pai mantendo relações com a sua esposa principal, que deu à luz filhos, será expulso da casa de seu pai.
§ 159. Se alguém, que trouxe bens móveis para a casa do sogro e pagou o dinheiro da compra, procurar outra esposa e disser ao sogro: “Não quero a sua filha”, o pai da primeira esposa pode ficar com tudo o que ele trouxe para sua residência.
§ 160. Se um homem traz bens moveis para a casa de seu sogro e paga o preço de compra para sua esposa, se então o pai da mulher disser: “Não vou te dar minha filha”, ele lhe devolverá tudo o que trouxe consigo.
§ 161. Se um homem traz bens móveis para a casa de seu sogro e paga o preço de compra para sua esposa, se então seu amigo o calunia na intenção de tomar-lhe sua noiva, e seu sogro diz ao jovem marido: “Você não deve se casar com minha filha”, ele lhe devolverá integralmente tudo o que trouxe consigo; mas sua esposa não se casará com o amigo.
§ 162. Se um homem casar com uma mulher e ela lhe tiver filhos; se então esta mulher morrer, então seu pai não terá reivindicar seu dote; isso pertence aos filhos dela.
§ 163. Se um homem se casar com uma mulher e ela não lhe der filhos, se então esta mulher morrer, e o dote que ele pagou à casa de seu sogro lhe for reembolsado, o marido dela não terá direito ao dote desta mulher, pois pertence à casa de seu pai.
§ 164. Se o seu sogro não lhe devolver o valor do preço de compra, ele poderá subtrair o valor do dote e depois pagar o restante à casa de seu pai.
§ 165. Se um homem der a um de seus filhos a quem ele prefere um campo, jardim e casa, e uma lavrar uma escritura para isso, se mais tarde o pai morrer, e os irmãos dividirem a propriedade, então eles deverão primeiro dar-lhe o presente de seu pai, e ele o aceitará, e o resto da propriedade paterna eles dividirão.
§ 166. Se um homem tomar esposas para seu primogênito, mas não tomar esposa para seu filho menor, e se então ele morrer, e se os filhos dividirem a propriedade, eles deverão reservar além de sua parte o dinheiro para o dote do irmão menor que ainda não havia se casado, e garantiu uma esposa para ele.
§ 167. Se um homem se casar com uma esposa e ela lhe tiver filhos, e se esta esposa morrer e ele então tomar outra esposa e ela lhe tiver filhos, e então o pai morrer, os filhos não devem repartir os bens de acordo com as mães, eles deverão só desta forma repartir os dotes das suas mães. Os bens paternos repartirão igualmente entre si.
§ 168. Se um homem desejar expulsar seu filho de casa e declarar perante o juiz: “Quero expulsar meu filho”, então o juiz examinará suas razões. Se o filho não for culpado de nenhuma falta grave, pela qual possa ser legitimamente expulso, o pai não o expulsará.
§ 169. Se for culpado de uma falta grave, que por direito o deva privar da relação filial, o pai deverá perdoa-lo pela primeira vez, mas se ele for culpado de uma falta grave pela segunda vez, o pai poderá privar o filho de toda relação filial, e este não será mais considerado seu filho.
§ 170. Se a esposa deu à luz filhos, ou se a concubina deu à luz filhos, e o pai, ainda vivo, disser aos filhos que sua serva ou esposa deu à luz: “Meus filhos”, e ele os conta como sendo seus, se o pai morrer, os filhos da mulher e da serva repartirão em comum os bens paternos. O filho da esposa deve dividir e escolher.
§ 171. Se, porém, o pai, em vida, não disser aos filhos da serva: “Meus filhos”, e então o pai morrer, então os filhos da serva não compartilharão a herança com os filhos da esposa, mas a liberdade da empregada e de seus filhos será concedida. Os filhos da mulher não terão direito de escravizar os filhos da empregada, e a esposa receberá seu dote e o presente que seu marido lhe deu e lhe legou, separado do dote, ou do dinheiro de compra pago a seu pai, e viverá na casa de seu marido por quanto tempo quiser enquanto ela viver, ela o usará, o imóvel não será vendido por dinheiro nem por ela e nem pelos herdeiros. Tudo o que ela deixar pertencerá aos seus filhos.
§ 172. Se o marido não lhe fizer nenhuma doação, ela será compensada pela doação e receberá uma parte dos bens do marido, igual à de um filho. Se os filhos a oprimirem, para expulsa-la de casa, o juiz examinará o assunto, e se a culpa for dos filhos, a mulher não deverá sair da casa do marido. Se a mulher desejar sair de casa, deverá deixar aos filhos o presente que o marido lhe deu, mas poderá receber o dote da casa de seu pai Então ela poderá se casar com o homem do seu coração.
§ 173. Se esta mulher der filhos ao seu segundo marido, no local para onde foi, e depois morrer, o seu filho anterior e os filhos posteriores dividirão o dote entre eles.
§ 174. Se ela não tiver filhos do segundo marido, os filhos do primeiro marido terão o dote.
§ 175. Se um escravo do rei ou o escravo de um liberto se casar com a filha de um homem livre e nascerem filhos, o senhor do escravo não terá o direito de escravizar os filhos dos livres.
§ 176. Se, porém, um escravo do rei ou o escravo de um liberto se casar com a filha de um homem, e depois que ele se casar com ela, esta trouxer um dote da casa de seu pai, se então ambos desfrutarem dele e fundarem uma casa, e acumularem recursos, se então o escravo morrer, então aquela que nasceu livre poderá receber seu dote e tudo o que seu marido e ela ganhara; ela os dividirá em duas partes: metade o senhor tomará para a escrava, e a outra metade a mulher nascida livre tomara para seus filhos. Se a mulher nascida livre não tiver dote, ela pegará tudo o que seu marido e ela ganharam e dividirá em duas partes; e o senhor da escrava ficará com metade e ela ficará com a outra para seus filhos.
§ 177. Se a viúva, cujos filhos não são adultos, desejar casar novamente, não poderá se juntar a outro homem sem o conhecimento do juiz. Se ela casar, o juiz examinara o estado da casa de seu primeiro marido. Então a casa do primeiro marido será confiada ao segundo marido e à própria mulher como administradores. E um registro deve ser feito disso. Ela manterá a casa em ordem, criará os filhos e não venderá os utensílios domésticos. Quem comprar os utensílios dos filhos da viúva perderá o seu dinheiro, e os bens retornarão aos seus donos.
§ 178. Se uma irmã da deusa[34] ou uma prostituta a quem seu pai deu um dote e uma escritura para o mesmo, mas se nesta escritura não estiver declarado que ela pode lega-lo como quiser, e não tiver declarado explicitamente que ela tem o direito de disposição do valor, se então seu pai morrer, seus irmãos cuidarão de seu campo e jardim, e lhe darão trigo, óleo e leite de acordo com sua porção, e a fartarão. Se os seus irmãos não lhe derem trigo, azeite e leite de acordo com a sua parte, então o seu campo e a sua horta a sustentarão. Ela terá o usufruto do campo e da horta e de tudo o que seu pai lhe deu enquanto ela viver, mas ela não poderá vender ou ceder a outros. Sua posição de herança pertence a seus irmãos.
§ 179. Se uma irmã da deusa, ou uma prostituta, receber um presente de seu pai, e uma escritura na qual esteja explicitamente declarado que ela pode dispor dele como quiser, e dar-lhe total disposição, e então seu pai morrer, ela poderá deixar seus bens para quem ela quiser. Seus irmãos não podem reivindicar isso.
§ 180. Se um pai der um presente à sua filha, seja ela casada, irmã da deusa ou uma prostituta não casada, e depois morrer, então ela receberá uma parte como filho da propriedade paterna e gozará de seu usufruto enquanto viver. Sua propriedade pertence a seus irmãos.
§ 181. Se um pai consagrar uma empregada do templo ou uma virgem do templo à deusa e não lhe der nenhum presente, se então o pai morrer, ela receberá o terço da porção do filho da herança da casa de seu pai, e gozará de seu usufruto enquanto ela viver. Sua propriedade pertence a seus irmãos.
§ 182. Se um pai dedicar sua filha como esposa de Marduk da Babilônia (como na lei que foi dita antes dessa), e não lhe der nenhum presente, nem uma escritura, e então seu pai morrer, então ela receberá de seus irmãos um terço de sua porção como filha da casa de seu pai, mas Marduk poderá deixar sua propriedade para quem ela desejar, pois o Senhor é seu marido.
§ 183. Se um homem der à sua filha por um dote, um marido e uma escritura, e então o pai dela morrer, ela não receberá nenhuma parte dos bens paternos.
§ 184. Se um homem não der dote à filha de sua concubina e ela não tiver marido, se então o pai dela morrer, o irmão lhe dará um dote de acordo com a riqueza de seu pai e lhe garantirá um marido.
§ 185. Se um homem adotar uma criança e colocá-la em nome de filho, e criá-la, esse filho adulto não poderá ser exigido de volta e a adoção não se revogará.
§ 186. Se um homem adotar um filho e, depois de tê-lo levado, ferir seu pai e sua mãe adotivos, então este filho adotado filho retornará para a casa de seu pai natural.
§ 187. O filho reconhecido de uma irmã da deusa, ou de uma prostituta, não pode ser exigido de volta.
§ 188. Se um artesão se comprometeu a criar uma criança e a ensinar-lhe o seu ofício, não pode ser reclamado de volta.
§ 189. Se não lhe tiver ensinado o seu ofício, este filho adotivo poderá regressar à casa do pai.
§ 190. Se um homem não sustentar a criança que adotou como filho e criou com os outros filhos, então seu filho adotivo poderá retomar para a casa de seu pai.
§ 191. Se um homem, que adotou um filho e o criou, fundou uma família e teve filhos, deseja expulsar este filho adotivo, então este filho não devera simplesmente seguir o seu caminho. Seu pai adotivo lhe adiantará um terço da porção que seria de sua herança, e então ele poderá partir. Ele não lhe dará o campo, o jardim e a casa.
§ 192. Se o filho de uma filha sagrada ou de uma prostituta disser ao seu pai ou mãe adotivos: “Você não é meu pai, nem minha mãe”, sua língua será cortada.
§ 193. Se o filho de uma irmã da deusa ou de uma prostituta desejar a casa de seu pai, e abandonar seu pai adotivo e sua mãe adotiva, e for para a casa de seu pai, então seu olho será arrancado,
§ 194. Se um homem entregar o seu filho a uma ama de leite e a criança morrer nas mãos dela, mas a ama, sem o conhecimento do pai e da mãe, amamentar outra criança, então deverão condená-la por ter amamentado outra criança sem o conhecimento do pai e da mãe. e os seus seios serão cortados." [35]
Embora chamado de “Rei da Justiça” (acadiano: Šar-mīšarim), Hamurabi foi responsável por determinar em seu código a hierarquia da filiação, removendo os direitos dos filhos não concebidos na constância do matrimônio ou até mesmo na prática de adultério, surgindo a figura dos filhos espúrios, aqueles cujo não só o nascimento era indesejado, mas sua própria existência era rejeitada pela família paterna, crescendo como um indivíduo sem registro familiar e direito ao cuidado, afeto, patrimônio e sucessão (CDLI, 2014).
Mas a maior inovação trazida por Hamurabi foi a criação do instituto dos alimentos, prestados aos filhos e ao ex-cônjuge, o maior tema do Direito de Família a engordar as filas de processos nos tribunais contemporâneos:
"§ 137. Se um homem quiser separar-se de uma concubina que lhe deu filhos, ou se divorciar de sua esposa que lhe deu filhos, então ele deverá dar a essa esposa seu dote e uma parte do usufruto do campo, jardim e propriedade, e pagar um valor para que ela possa criar seus filhos. Quando os filhos estiverem adultos, uma parte de tudo o que for dado aos filhos, será dada a ela, igual a um filho. Ela poderá então se casar com o homem de seu coração, se não perderá direito à essa prestação. A concubina e os filhos nascidos dela terão direito somente ao valor para a criação deles, e ficando estes filhos adultos, ela não receberá mais nada." [36]
No governo do tataraneto de Hamurabi, o rei Samsu-Ditana (r. 1.562 – 1.531 a.C.), o Código de Hamurabi se estendeu por todo o Oriente, sendo adotado até mesmo pelos arameus da Síria, os fenícios e cananeus da Palestina e os amorreus da Transjordânia, moldando o Direito de Família aplicada por esses povos (PALMA, 2022).
Apesar desse sucesso jurídico, Samsu-Ditana não conseguiu impedir a invasão da Babilônia pelos hititas e a usurpação do poder pelos cassitas em 1.531 a.C., quando a Dinastia Amorita foi extinta. O Código de Hamurabi ainda era observado, até que a Babilônia foi saqueada em 1.326 a.C. pelos elamitas, que levaram o Código como um troféu de guerra para Susã, no Irã (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Apesar dos códigos e leis escritas, muitas normas familiares decorriam do Direito Consuetudinário dos povos, que emanava dos costumes a cada mudança no cenário cultural e social, algo bastante comum nas sociedades do oriente. Prevalecia sobre a lei dos reis os costumes das famílias, aplicado nos tribunais tribais pelos anciãos de forma mais prática e célere do que os juízes e árbitros que aplicavam os códigos à risca.
Mesmo já existindo procedimentos processuais detalhados acerca do agir dos magistrados, a população comum preferia recorrer aos sacerdotes e anciãos para dirimir suas questões familiares pela possibilidade de disporem de soluções mais participativas para as partes, o que quase não era possível nas cortes reais.
2.2. O Direito de Família no Egito
Na mesma época, floresceu a civilização egípcia, que mesmo sem códigos de lei como os sumérios e amoritas, desenvolveu um Direito de Família extremamente completo e inovador, até mais do que o da Mesopotâmia (PALMA, 2022).
Já na unificação do Alto e Baixo Egito durante o Reino Antigo, o primeiro Faraó Narmer (r. 3.150 – 3.125 a.C.), em seu primeiro decreto dispôs que todas as famílias estariam sob seu poder e direção, declarando a primazia do poder paterno (egípcio: Ḥeka en-it), sem retirar o poder feminino igualitário ao dos homens, estabelecendo a hierarquização das entidades familiares (REYNES, 2000).
No Egito o casamento (egípcio: Meni) era livre e ascendentes poderiam casar com descendentes, bem como irmãos germanos e unilaterais – a forma de casamento mais incentivada para manter a “pureza genética” –, não havia divórcio como procedimento administrativo ou judicial, bastava que tanto o marido (egípcio: Ḥem) quanto a esposa (egípcio: Ḥemet) se retirasse da casa do casal e retornasse ao lar da antiga família, com o dote sendo devolvido a família do cônjuge, o que era chamado por eles de repúdio (egípcio: Shemḥemet). Como explica Rodrigo Freitas Palma:
"Se não há juridicidade para o ato do casamento, igualmente não haverá em se tratando de divórcio. Aliás, de acordo com Andreu, aqui há que se falar, tão somente, em “repúdio puro e simples”, podendo-se prescindir automaticamente “da intervenção de qualquer instância jurídica ou religiosa”. O autor esclarece que “nenhum texto rege as convenções do divórcio”, sem embargo de ele ser admitido em três circunstâncias específicas: nos casos de “adultério”, “infidelidade” e “esterilidade da mulher”." [37]
No período chamado Reino Médio, foi outorgado em 2.021 a.C. o Édito de Denderah (encontrado no Papiro Judicial de Turim), a primeira codificação de questões cíveis, criminais e administrativas do Egito pelo Faraó Mentuhotep II (2.040 – 2.009 a.C.), tratando também do Direito de Família, ainda que de forma bem ampla e geral:
"POR ORDEM DE NEBHEPETRE[38] MENTUHOTEP SHEMATAWY[39], FARAÓ DE KEMET[40], SENHOR DAS DUAS TERRAS, AMADO DE ÍSIS[41] E PTAH[42], E HERDEIRO DE RÁ[43] E DE LORDE HÓRUS[44]. EM SEU 39º ANO, AS SEGUINTES ORDENAÇÕES SÃO DADAS EM NOME DA ETERNA PROSPERIDADE E HARMONIA DO REINO:
[...]
QUE TODOS OS MATRIMÔNIOS NA TERRA DE KEMET, SEJAM SAGRADOS E REALIZADOS SOB OS AUSPÍCIOS DA DIVINA ÍSIS, MÃE DE TODOS, PROTETORA DO LAR E DA FAMÍLIA. NENHUMA UNIÃO SERÁ CONSIDERADA LEGÍTIMA, A MENOS QUE SEJA PRESIDIDA POR SEUS SACERDOTES, NOS TEMPLOS CONSAGRADOS A ELA, NA PRESENÇA DOS DEUSES E DOS ANTEPASSADOS.
NÃO HAVERÁ NADA QUE IMPEÇA O CASAMENTO DOS QUE DEVEM CASAR, POIS É PELA VONTADE DOS DEUSES QUE OS CORAÇÕES SE UNEM. O VÍNCULO DO HOMEM COM A MULHER SERÁ CONSIDERADO PURO E INVIOLÁVEL, SELADO PELO PODER DA DEUSA, E ABENÇOADO PARA TRAZER FORÇA E PROSPERIDADE À TERRA E AOS MUITOS FILHOS QUE DELA SURGIREM.
[...]
MANTÉM-SE O DIREITO DO MARIDO E DA ESPOSA AO REPÚDIO, COMO PRATICADO DESDE OS TEMPOS ANTIGOS, SEM NECESSIDADE DE JUSTIFICATIVA PERANTE QUALQUER AUTORIDADE TERRENA. QUE AQUELES QUE SE SEPAREM, O FAÇAM COM A DEVIDA CONSIDERAÇÃO ÀS BÊNÇÃOS OUTRORA RECEBIDAS, MAS QUE LHES SEJA PERMITIDO, SEM DEMORA, CASAR-SE NOVAMENTE, PARA QUE POSSAM ENCONTRAR RENOVAÇÃO E CONCEBAM AINDA MAIS FILHOS.
[...]
AOS FILHOS INCAPAZES DE CUIDAR DE SI MESMOS, QUE SUA CUSTÓDIA E PROTEÇÃO SEJAM CONCEDIDAS UNICAMENTE À MÃE, A QUEM OS DEUSES CONFIARAM A RESPONSABILIDADE E A TERNURA DO CUIDADO. QUE A MÃE SEJA O PORTO SEGURO, O GUIA E A PROTETORA, ATÉ QUE O FILHO OU FILHA ALCANCE A FORÇA E A SABEDORIA PARA CAMINHAR POR CONTA PRÓPRIA.
NENHUM OUTRO SERÁ ADMITIDO NO CUIDADO DOS FILHOS, EXCETO EM CASOS EM QUE A MÃE SEJA MORTA, QUE DEVERÃO SER AVALIADOS PELOS JUÍZES DO TRIBUNAL, COM A MAIS PROFUNDA REVERÊNCIA À MAAT[45] E À COMPAIXÃO.
[...]
QUE SEJA CONHECIDO POR TODA KERMET QUE OS ATOS FEITOS POR AQUELES QUE SOFREM DE DOENÇAS MENTAIS, QUE OFUSQUEM A RAZÃO OU O ENTENDIMENTO, SERÃO SEM VALOR, A MENOS QUE ESTES SEJAM ACOMPANHADOS POR UM PARENTE PRÓXIMO QUE LHE SEJA COMO PAI E MÃE, QUE VELE POR SEUS INTERESSES E BEM-ESTAR.
QUE O DEVER DO CUIDADO E DA PROTEÇÃO DESSES DÉBEIS RECAIA SOBRE TODOS OS PARENTES, COMO UMA SAGRADA RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA, PARA QUE A ORDEM FAMILIAR E A DIGNIDADE DE CADA UM SEJAM MANTIDAS, CONFORME O DESEJO DE HATHOR[46]. NENHUM PARENTE PODERÁ ABDICAR DESTE DEVER SEM JUSTA CAUSA, SOB PENA DE MALDIÇÃO DIVINA E DESONRA PERANTE TODOS, DEVENDO SER EXILADO DA TERRA." [47]
Em 1.650 a.C., um grupo de povos asiáticos chamados de Hicsos invadiram o Egito, executaram o Faraó egípcio, tomando o poder e iniciando a 17ª Dinastia (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Os Hicsos trouxeram para os egípcios o ferro, a cavalaria e o Direito Consuetudinário Siro-Cananeu, construído inteiramente pelo Código de Hamurabi (PALMA, 2022). Com isso, o repúdio praticado pelos egípcios se transforma no procedimento do divórcio judicial, com a devolução do dote e o pagamento de pensão alimentícia aos filhos incapazes.
Um grupo de nobres egípcios se rebelou contra os Hicsos e os derrotou, dando início ao período conhecido como Novo Reino (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). A Faraó Hatshepsut (r. 1.479 – 1.458 a.C.), a primeira mulher a se tornar faraó, promulgou inúmeros decretos tratando de regulamentar o Direito de Família, principalmente para aproveitar o que os hicsos trouxeram do Levante (PALMA, 2022).
O divórcio foi mantido judicial, necessitando de um juiz (egípcio: Sbaꜣ) para homologar a carta de repúdio, os filhos (egípcio: Sa) ficariam com os pais e as filhas (egípcio: Sat) com a mãe, os aquestos eram partilhados de forma igualitária entre o casal e o matriarcado se fortaleceu, com as mulheres até possuindo mais direitos que os homens.
No entanto, todo o legado legislativo da rainha Hatshepsut foi suprimido pelo seu enteado e sucessor, o Faraó Tutmés III (r. 1.458 – 1.425 a.C.), que promoveu a autocracia faraônica na tutela das famílias com o intuito de promover o patriarcado sobre o matriarcado, já que o governo de Hatshepsut foi um golpe político contra ele por ainda ser criança quando seu pai faleceu (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Revogando todos os decretos da antiga Faraó, Tutmés modificou as regras do divórcio, que seria imotivado somente para os homens e no caso das mulheres somente após a comprovação da culpa (egípcio: Medw) do marido, os filhos ficariam sempre sob a guarda do pai e só poderiam se casar com a autorização dele, além de que os nobres poderiam atuar como magistrados e solucionar conflitos familiares como se fossem juízes (PALMA, 2022).
Foi o Faraó Tutmés III que também criou o cargo dos Magiaí (egípcio: “Inspetores”), servidores públicos ligados ao Faraó cujas funções seriam denunciar os indivíduos que cometiam crimes contra a Coroa e fiscalizar o exercício do cumprimento da lei (VELLANI, 1996).
Outra função era intervir nas ações judiciais que envolvessem crianças, órfãos e viúvas, principalmente as de Direito de Família e Sucessões, basicamente um Ministério Público primitivo com funções federais e estaduais mistas, no entanto, mais como forma de controle judicial do que de proteção das partes (PALMA, 2022).
Ainda no Novo Reino, um general chamado Horemheb (r. 1.323 – 1.292 a.C.) ascendeu ao trono após a morte precoce do famoso Faraó Tutancâmon (r. 1.332 – 1.323 a.C.) sem deixar herdeiros (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Assim como Tutmés, Horemheb realizou uma ampla reforma legal a fim de apagar o legado da 18ª Dinastia outorgando novos éditos revogando todos os dispositivos anteriores, incluindo o Direito de Família, que se tornou mais patriarcal e rígido. Essas modificações estão expressas em longos textos escritos na sua tumba, identificada como Túmulo KV57:
"QUANDO UM QUEIXOSO VEM DO ALTO OU DO BAIXO EGITO, É A TI QUE CUMPRE CUIDAR QUE TUDO SEJA FEITO SEGUNDO A LEI, QUE TUDO SEJA FEITO SEGUNDO OS REGULAMENTOS QUE LHE DIZEM RESPEITO, FAZENDO COM QUE CADA UM TENHA O SEU DIREITO. UM VIZIR DEVE VIVER COM O ROSTO DESTAPADO. A ÁGUA E O VENTO TRAZEM-ME TUDO O QUE ELE FAZ. NADA DO QUE ELE FAZ É DESCONHECIDO. PARA O VIZIR, A SEGURANÇA É AGIR SEGUNDO A REGRA, DANDO RESPOSTA AO QUEIXOSO. AQUELE QUE É JULGADO NÃO DEVE DIZER: “NÃO ME FOI DADO MEU DIREITO”. NÃO AFASTES NENHUM QUEIXOSO SEM TER ACOLHIDO A SUA PALAVRA. QUANDO UM QUEIXOSO VEM QUEIXAR-SE A TI, NÃO RECUSES UMA ÚNICA PALAVRA DO QUE ELE DIZ; MAS SE O DEVES MANDAR EMBORA, DEVES FAZÊ-LO DE MODO QUE ELE ENTENDA POR QUE O MANDAS EMBORA. ATENTA NO QUE SE DIZ: “O QUEIXOSO GOSTA AINDA MAIS QUE SE PRESTE ATENÇÃO AO QUE ELE DIZ DO QUE VER A SUA QUEIXA ATENDIDA”. AS LEIS DE KERMET SERÃO ESTAS:
[...]
SE PAI OU MÃE DEMONSTRAREM QUALQUER FRAQUEZA DIANTE DOS FILHOS, O TRIBUNAL, COM RAPIDEZ E SEM PIEDADE, DESIGNARÁ UM TUTOR PARA ASSEGURAR A ORDEM E A DISCIPLINA. QUALQUER FALHA EM SUAS FUNÇÕES O LEVARÁ A PRISÃO NAS CAVERNAS.
NO CASO DE DIVÓRCIO, SEM UMA JUSTIFICATIVA QUE SATISFAÇA A SEPARAÇÃO, SERÁ FORÇADO QUEM PLEITEIA A PAGAR UMA COMPENSAÇÃO. AQUELA QUE INICIAR O DIVÓRCIO SEM CAUSA JUSTA SERÁ DESPOJADA DE TODOS OS BENS COMUNS E MARCADA COM INFÂMIA, SENDO ISOLADA DOS DEMAIS.
QUALQUER MEMBRO DA FAMÍLIA QUE DESOBEDEÇA AOS REGULAMENTOS SERÁ SUBMETIDO A UMA CERIMÔNIA PÚBLICA DE ADMOESTAÇÃO, ONDE SERÁ REPREENDIDO DIANTE DE TODO O POVO. SE A DESOBEDIÊNCIA PERSISTIR, A PENA SERÁ DE TRABALHO FORÇADO NAS PEDREIRAS DO DESERTO, ATÉ QUE O INDIVÍDUO PROVE SUA OBEDIÊNCIA E LEALDADE AO FARAÓ.
[...]
CASO UM HOMEM DIGA: “ESTE NÃO É MEU FILHO”, O TRIBUNAL DEVERÁ CHAMAR TESTEMUNHAS À PRESENÇA DOS JUÍZES. A PRESTAÇÃO DO JURAMENTO DETERMINARÁ A LEGÍTIMA PATERNIDADE. SE O QUESTIONADOR FALHAR EM PROVAR A VERACIDADE DE SUAS ALEGAÇÕES, SERÁ CONDENADO À SERVIDÃO.
OS FILHOS DEVEM DEMONSTRAR OBEDECER AOS PAIS ATÉ QUE SE CASEM, SOB PENA DE SEREM LANÇADOS AO FOGO. A FALTA DE RESPEITO SERÁ TRATADA COMO UM ATO DE REBELDIA CONTRA OS DEUSES, E OS CULPADOS SERÃO SUBMETIDOS A TRABALHOS PESADOS, E SE REITERADAMENTE CONTINUAREM NA DESOBEDIÊNCIA, SERÃO EMPALADOS.
QUEM ADULTERAR SERÁ MORTO, A NÃO SER QUE SEJA PERDOADO PELO FARAÓ NO DIA DE SUA EXECUÇÃO. O ADÚLTERO PERDOADO SERÁ MARCADO COM A MARCA DO DESONRADO, E A VÍTIMA SERÁ COMPENSADA COM PROPRIEDADES E TÍTULOS CONCEDIDOS DIRETAMENTE PELO FARAÓ.
OS MEMBROS DA FAMÍLIA NÃO PODERÃO MANTER RELAÇÕES OU CONVÍVIO COM ESTRANGEIROS SEM PERMISSÃO REAL. A VIOLAÇÃO DESTA REGRA RESULTARÁ EM PRISÃO E CONFISCAMENTO DE PROPRIEDADES, COM A POSSIBILIDADE DE DEPORTAÇÃO PARA RETJENU[48].
QUEM OFENDER SEU IRMÃO, SERÁ CONDENADO AO TRABALHO FORÇADO, E COMPENSARÁ EM PRATA. PERMANECENDO REITERADAMENTE NAS OFENSAS, O OFENSOR SERÁ OBRIGADO A INGRESSAR NO EXÉRCITO E SERÁ ENVIADO PARA A FRONTEIRA.
TODOS OS MEMBROS DA FAMÍLIA DEVEM PRESTAR UM JURAMENTO DE LEALDADE AO FARAÓ E À ESTAS LEIS. QUALQUER FALTA DE LEALDADE SERÁ CONSIDERADA UMA TRAIÇÃO, E O INFRATOR SERÁ MORTO.
[...]" [49]
O patriarcado atingiu seu ápice com a proibição das mulheres de se tornarem chefes de família e solicitarem o divórcio, os casamentos só poderiam ser realizados com autorização única do pai, os filhos permaneciam sob o pátrio poder até o casamento e a mulher sob o poder do marido até a morte ou divórcio requerido por ele (MACIEL & AGUIAR, 2022). Outro detalhe foi a forte militarização das famílias, pois a maior parte da população masculina estava entre as fileiras do exército egípcio, levando a dura disciplina da guerra para dentro dos núcleos familiares.
Mas o suprassumo do Direito de Família egípcio ocorre na 19ª Dinastia, especificamente com o Faraó Ramsés II, o Grande (r. 1.279 – 1.213 a.C.), responsável por instituir o novo ordenamento jurídico egípcio, que vigoraria até a conquista do Egito pelos persas (MACIEL & AGUIAR, 2022).
Nos Decretos de Pi-Ramsés, a família deixa de receber a interferência imotivada do Estado, com a exceção da resolução dos litígios que se daria somente na via judicial. A fertilidade passou a ser incentivada em lei, e principalmente na figura do Faraó, que concebeu 103 filhos com suas centenas de esposas e concubinas, cuja a relação deixa de ser laboral e passa a ser contada como membro da família.
Crianças poderiam se casar antes mesmo da puberdade e o arranjo deveria ser assistido por um juiz (HAREVEN, 1991). Os casamentos endogâmico e avuncular eram os mais incentivados, e era permitido até o casamento entre pais e filhos, o que Ramsés também praticou ao se casar com suas próprias filhas Bintanath, Meritamen, Nebettawy e Henutmire (REINKE, 2019). O Faraó se torna o modelo de chefe de família a ser seguido e ele próprio é considerado com encarnação das leis, deliberando pessoalmente o que era certo ou errado:
"A monarquia encontrava-se altamente centralizada na figura do rei – o faraó –, considerado pelo sistema de crenças egípcio uma espécie de divindade. [...]
[...] Como vimos, o faraó se pronunciava constantemente sobre o Direito ou o Maat. Isso quer dizer que ele mesmo julgava em última instância. Assim sendo, o proferir de seus lábios, pelo menos para os egípcios, exalava a justiça e a lei. Não significa dizer, porém, que as leis fossem registradas a todo momento, ou que os escribas se imbuíssem, a cada novo parecer, de reduzir à minuta o que era dito pelo rei. E não se pode esquecer que foram vários os monarcas a subir no trono no decurso de uma longa história, cada qual, certamente, com suas convicções particulares sobre a melhor forma de conduzir o cotidiano de seus súditos." [50]
A última reforma legislativa no ordenamento egípcio ocorre no Reino Tardio durante o reinado do Faraó Psamético I (r. 664 – 610 a.C.), que ao contrário do que faziam seus antecessores, ele promoveu uma ampla recuperação dos decretos e éditos nativos e os adaptou aos novos arranjos jurídicos surgidos das diversas intervenções estrangeiras no Egito (REINKE, 2019). Após a ocupação por filisteus, líbios e assírios, Psamético aproveitou o melhor do que esses povos trouxeram para suas terras e fundiu com os velhos decretos revogados da 19ª Dinastia.
O casamento poderia ser somente civil e registrado por um escriba, a guarda dos filhos homens era entregue ao pai e das filhas às mães, podendo estas requerem os filhos homens se o pai não demonstrasse condições, além de que a tutela dos órfãos só poderia ser atribuída à família extensa que demonstrasse também as melhores condições (PALMA, 2022). Por influência dos mercenários gregos que criaram a colônia de Naucrátis no Delta do Nilo, as famílias egípcias experimentaram por pouco tempo o Constitucionalismo do Direito de Família, cujas normas deveriam ser garantidoras de direitos igualitários a todos os seus membros.
Em 525 a.C., os persas invadiram o Egito e exilaram seu último faraó, Psamético III (r. 526 – 525 a.C.), transformado o reino em uma simples província aquemênida, abolindo suas leis e obrigando os egípcios a se submeterem ao direito persa (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Mas em 379 a.C., os egípcios se rebelaram sob a liderança de Nectanebo I (379 – 361 a.C.), que após ser coroado o novo Faraó, promulgou novamente os Éditos de Ramsés II.
A independência egípcia durou pouco, e Artaxerxes III (r. 359 – 338 a.C.), o imperador persa, liderou uma enorme campanha militar contra o Egito, derrotando seu último faraó, Nectanebo II (r. 358 – 340 a.C.) com ajuda dos mercenários gregos que traíram os egípcios (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Todas as leis egípcias foram novamente revogadas e o direito persa foi novamente implantado na região.
2.3. O Direito de Família Hebraico
Subindo para o Oriente Médio, outra civilização com amplo Direito de Família na Antiguidade foram os hebreus, os antepassados dos judeus, cuja história podemos encontrar na Bíblia Sagrada, o conjunto de escrituras religiosas dos judeus e cristãos (REINKE, 2021). Descendentes de uma congregação pantribal suméria e aramaica criada por Abraão (fl. 2.166 – 1.991 a.C.), originário da cidade de Ur, eles eram nômades que se fixaram em Canaã (onde atualmente ficam Israel, Palestina, Cisjordânia e parte da Jordânia), e formaram um Direito Consuetudinário baseado no Código de Ur-Nammu, rei que era contemporâneo de Abraão (HOMMERDING, 2021).
Em seu estágio inicial os hebreus foram governados pelos Patriarcas (hebraico: Avot), praticamente sheiks tribais e chefes supremos que lideravam as famílias e instituíam as normas a serem observadas (REINKE, 2021). A Era dos Patriarcas Hebreus ocorre durante a integração transcultural que aconteceu entre sumérios, acádios e amorreus na Mesopotâmia, e arameus, cananeus e egípcios na Palestina, sendo refletida nos costumes, leis e padrões familiares, principalmente pelo patriarca Israel (fl. 2.006 – 1.886 a.C.), nascido com o nome Jacó, que assimilou bastante dos costumes sírios quando morou em Harã e se casou lá com suas primas, que lhe deram 12 filhos (BÍBLIA, 2023).
O Direito Consuetudinário Familiar dos hebreus incluía o incentivo à prole numerosa, com permissão ao marido tomar outras esposas ou concubinas se sua esposa principal não concebesse um filho, e caso o problema geracional persistisse, ele poderia adotar como herdeiro legítimo qualquer filho que ele tivesse gerado por meio de uma escrava, o que Abraão fez ao gerar Ismael no útero da escrava egípcia Agar (BÍBLIA, 2023).
Caso os filhos falecessem antes do pai ou a infertilidade fosse no marido, era permitido perfilhar um servo pessoal com quem possuísse socioafetividade. As mulheres estavam sob o poder dos maridos, mas elas tinham ampla participação das decisões deles e liberdade na criação dos filhos (PALMA, 2022).
O filho mais velho não era o sucessor na liderança patriarcal da família, algo que era automático nas demais sociedades orientais, e o direito de nascimento poderia passar para outro filho em circunstâncias excepcionais, a exemplo de todos os patriarcas, que nomearam seus filhos mais novos para sucedê-los (BÍBLIA, 2023). Quanto ao arranjo matrimonial, os servos pessoais e irmãos possuíam permissão para redigir os contratos de noivado para o matrimônio das filhas dos patriarcas, embora elas possuíssem a liberdade de consentir ou se opor a escolha dos pretendentes, como evidenciado no livro bíblico de Gênesis:
"Abraão já era idoso, e o Eterno o havia abençoado de todas as formas.
E Abraão ordenou ao empregado mais antigo da casa, aquele que cuidava de tudo que Abraão possuía: “Coloque sua mão debaixo da minha coxa e jure em nome do Eterno, o Deus do céu e Deus da terra, que você não vai procurar esposa para meu filho entre as jovens cananeias daqui, mas que irá à minha terra natal e ali conseguirá uma esposa para Isaque”.
O empregado respondeu: “E se a moça não quiser sair de casa para vir comigo? Levo seu filho de volta para sua terra de origem”
Abraão respondeu: “Não! Isso nunca! Em hipótese alguma, você levará meu filho de volta para lá. O Eterno, o Deus do céu, tirou-me da casa de meu pai, da terra em que nasci, e me fez esta promessa solene: ‘Estou dando esta terra aos seus descendentes’. Esse mesmo Deus enviará o anjo dele à sua frente para que você consiga achar ali uma esposa para meu filho. Se a moça não quiser vir, você ficará desobrigado do juramento que me fez. Mas, em hipótese alguma, leve meu filho de volta para lá!”
Então, o empregado pôs a mão debaixo da coxa de Abraão, seu senhor, e fez o juramento solene.
O empregado carregou dez camelos de Abraão com presentes e saiu de viagem para Arã Naaraim, para a cidade de Naor. [...]
[...]
Certo dia, Diná, filha de Lia e Jacó, foi visitar algumas mulheres daquela terra. Siquém, filho de Hamor, o heveu, líder do local, viu Diná e a estuprou. Mas, depois, passou a sentir forte atração pela moça. Apaixonado por ela, tentava ganhar sua afeição. Por isso, foi pedir a seu pai, Hamor: “Consiga essa moça como esposa para mim”.
Jacó ficou sabendo que Siquém havia estuprado Diná. Como os filhos haviam saído para cuidar dos animais no campo, ficou esperando que eles chegassem em casa para discutir o assunto. Nesse meio-tempo, Hamor, pai de Siquém, procurou Jacó para tentar um contrato de casamento. Enquanto isso, no caminho de casa, os filhos de Jacó ficaram sabendo do que havia acontecido e ficaram furiosos. O estupro que Siquém havia cometido contra a filha de Jacó não era algo que podia ser tolerado nem suportado na família de Israel.
Hamor falou a Jacó e a seus filhos: “Meu filho Siquém está perdidamente apaixonado por sua filha. Peço que você a de em casamento a ele. Façamos casamentos entre nossas famílias. Entreguem suas filhas a nós, e entregaremos as nossas a vocês. Vocês podem viver no meio de nós, como uma família. Podem fixar residência aqui e viver como um de nós. Há boas oportunidades de prosperar aqui”.
Depois, Siquém falou em causa própria, dirigindo-se ao pai e aos irmãos de Diná: “Por favor, aceitem! Pagarei qualquer preço. Estipulem o preço que quiserem pela noiva, o céu é o limite! Mas permitam que essa moça seja minha esposa”.
Os filhos de Jacó deram uma resposta dissimulada a Siquém e ao pai dele. Afinal, a irmã havia sido vítima de estupro. A proposta deles foi esta: “Isso não é possível. Jamais daríamos nossa irmã a um homem incircunciso. Seria uma desgraça para nós. A única forma de chegarmos a um acordo é se todos os homens do seu povo forem circuncidados, como nós. Aí, sim, poderemos trocar livremente nossas filhas, e realizar outros casamentos entre nós. Só assim, ficaremos à vontade e poderemos ser uma família grande e feliz. Mas, se essa condição não for aceitável para vocês, pegaremos nossa irmã e iremos embora”.
A sugestão pareceu justa para Hamor e Siquém.
O moço estava tão apaixonado pela filha de Jacó que concordou em fazer o que eles estavam pedindo. Ele era o filho mais admirado da família de seu pai.
Na intenção de cumprir o acordo, Hamor e seu filho foram para a praça principal da cidade e falaram ao conselho de cidadãos: “Esses homens nos estimam, são nossos amigos. Devemos permitir que se estabeleçam aqui e fiquem à vontade. Há espaço de sobra para eles na terra. Poderemos até dar nossas filhas em casamento e receber as deles. Mas esses homens só aceitarão o convite para viver entre nós como uma grande família com uma condição: que todos os homens sejam circuncidados como eles. Trata-se de um ótimo negócio para nós. Essa gente é rica e tem grandes rebanhos de animais. Com essa aliança, tudo passará a ser nosso também. Portanto, vamos fazer o que eles nos pedem, para que se estabeleçam em nosso meio”.
Todos os que tinham influência na cidade concordaram com Hamor e com Siquém. Assim, todos os homens ali foram circuncidados." [51]
No entanto, os contratos de casamento celebrados pelo pai não exigiam o consentimento da filha, que deveria aceitar se casar com o pretendente escolhido, apesar de que as mães possuíam uma ampla influência nesta escolha junto aos pais (REINKE, 2021). São mencionadas em Gênesis as obrigações legais do levirato, onde o filho mais novo se casava com a cunhada viúva quando seu irmão mais velho morresse sem gerar filhos com ela (BÍBLIA, 2023).
A celebração de contrato de casamento não era dispensável, mas o pagamento do dote o era. Essa modalidade matrimonial assegurava a herança do marido falecido à viúva, perpetuava o nome do falecido no primeiro filho concebido (considerado como sendo do De Cujus), refletindo a cosmologia hebraica de manter a presença dos falecidos na família após a morte na pessoa de seus descendentes simulados.
O divórcio ainda não era um procedimento entre os hebreus, mas o marido podia repudiar sua esposa somente mediante alegação de culpa desta, e o dote pago pela família dela à família do marido deveria ser mantido em depósito, para servir de subsistência à mulher repudiada, mas também no caso em que ela enviuvasse e o levirato não fosse possível (MACIEL & AGUIAR, 2022).
A paternidade era absoluta e presumida, e todos os filhos nascidos na constância do matrimônio eram considerados do marido, além de existir hierarquia entre os filhos nascidos das esposas, das concubinas e os concebidos fora dessas relações. Mas no último caso, o homem deveria assumir a responsabilidade e se casar ou admitir a mulher como sua concubina, a fim de que essas crianças recebessem a mesma proteção que seus irmãos, como no caso de Judá, filho de Israel, que engravidou Tamar, sua nora viúva:
"Passado algum tempo, morreu a esposa de Judá, filha de Suá. Terminado o período de luto, Judá e seu amigo Hira, de Adulão, foram tosquiar ovelhas em Timna.
Alguém disse a Tamar: “Seu sogro foi tosquiar ovelhas em Timna”. Ela tirou as roupas de viúva, pôs um véu para se disfarçar e sentou-se à entrada de Enaim, que fica no caminho para Timna. A essa altura, Selá já havia crescido, e ela percebeu que jamais iria se casar com ele.
Judá viu Tamar e supôs que fosse uma prostituta, porque ela havia coberto o rosto com um véu. Ele foi até onde ela estava e disse: “Quero deitar com você”. Ele não tinha a menor ideia de que falava com sua nora.
Ela perguntou: “Como você vai me pagar?”
Ele respondeu: “Vou enviar a você um cabrito do meu rebanho”. Ela retrucou: “Só se você me der alguma garantia”.
“Que garantia você quer?” Ela disse: “Seu selo, o cordão de identificação pessoal e o cajado que você carrega”. Ele entregou o que ela pediu e deitou-se com ela. Como resultado, Tamar engravidou.
Depois de se deitar com o sogro, ela voltou para casa, tirou o véu e pôs de volta suas roupas de viúva.
Mais tarde, Judá mandou em mãos por seu amigo de Adulão o cabrito prometido à mulher, a ser trocado pelos objetos dados em garantia. Não conseguindo encontrá-la, indagou dos homens do lugar: “Vocês sabem onde está a prostituta que costuma sentar-se à beira da estrada aqui perto de Enaim?” Eles responderam: “Nunca vimos nenhuma prostituta aqui”.
Hira voltou para casa e informou Judá: “Não consegui encontrá-la. Os homens do lugar disseram que nunca viram nenhuma prostituta ali”.
Judá disse: “Pois que ela fique com a garantia. Se continuarmos a procurar, vamos virar piada na cidade. Já cumpri minha parte do acordo, enviando o cabrito, mas você não conseguiu encontrá-la”.
Cerca de três meses depois, vieram contar a novidade a Judá: “Sua nora bancou a prostituta, e agora é uma prostituta grávida!” Judá, enfurecido, ordenou aos gritos: “Tragam-na para fora e queimem-na viva!”
Enquanto era arrancada de casa, ela mandou um recado para o sogro; “Estou grávida do homem a quem pertencem estas coisas. Por favor, vejam de quem elas são. Quem é o dono deste selo, do cordão e do cajado?”.
Judá reconheceu de imediato os objetos e disse: “Ela está com a razão. Eu é que estou errado. Eu não ia deixar que ela se casasse com meu filho Selá”. E nunca mais se deitou com ela. [...]" [52]
A última evidência dos costumes jurídicos dos patriarcas hebreus é a possibilidade da paternidade socioafetiva, onde os netos e bisnetos poderiam ser considerados como filhos junto a seus pais com a finalidade de substituir outros filhos considerados indignos ou somente por questões de afeto e garantia de direitos sucessórios, o que foi praticado por Israel ao perfilhar Efraim e Manassés, seus netos e filhos de José:
"8 Quando Israel viu os filhos de José, perguntou: “Quem são estes?”
9 Respondeu José a seu pai: “São os filhos que Deus me deu aqui". Então Israel disse: "Traga-os aqui para que eu os abençoe”.
10 Os olhos de Israel já estavam enfraquecidos por causa da idade avançada, e ele mal podia enxergar. Por isso José levou seus filhos para perto dele, e seu pai os beijou e os abraçou.
11 E Israel disse a José: “Nunca pensei que veria a sua face novamente, e agora Deus me concede ver também os seus filhos!”
12 Em seguida, José os tirou do colo de Israel e curvou-se, rosto em terra.
13 E José tomou os dois, Efraim à sua direita, perto da mão esquerda de Israel, e Manassés à sua esquerda, perto da mão direita de Israel, e os aproximou dele.
14 Israel, porém, estendeu a mão direita e a pôs sobre a cabeça de Efraim, embora este fosse o mais novo e, cruzando os braços, pôs a mão esquerda sobre a cabeça de Manassés, embora Manassés fosse o filho mais velho.
15 E abençoou a José, dizendo: “Que o Deus, a quem serviram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que tem sido o meu pastor em toda a minha vida até o dia de hoje,
16 o Anjo que me redimiu de todo o mal, abençoe estes meninos. Sejam eles chamados pelo meu nome e pelos nomes de meus pais Abraão e Isaque, e cresçam muito na terra”.
17 Quando José viu seu pai colocar a mão direita sobre a cabeça de Efraim, não gostou; por isso pegou a mão do pai, a fim de mudá-la da cabeça de Efraim para a de Manassés,
18 e lhe disse: “Não, meu pai, este aqui é o mais velho; ponha a mão direita sobre a cabeça dele”.
19 Mas seu pai recusou-se e respondeu: “Eu sei, meu filho, eu sei. Ele também se tornará um povo, também será grande. Apesar disso, seu irmão mais novo será maior do que ele, e seus descendentes se tornarão muitos povos”.
20 Assim, Jacó os abençoou naquele dia, dizendo: “O povo de Israel usará os seus nomes para abençoar uns aos outros: Que Deus faça a você como fez a Efraim e a Manassés!” E colocou Efraim à frente de Manassés.
21 A seguir, Israel disse a José: “Estou para morrer, mas Deus estará com vocês e os levará de volta à terra de seus antepassados.
22 E a você, como alguém que está acima de seus irmãos, dou a região montanhosa que tomei dos amorreus com a minha espada e com o meu arco” ". [53]
Após migrarem para o Egito e permanecerem lá por 4 séculos na condição de servos sob o sistema de corveia, os hebreus foram guiados de volta para o Levante por Moisés (1.526 – 1.406 a.C.), figura histórica que criou o ordenamento jurídico hebraico propriamente dito (REINKE, 2021).
Agora como uma nação tribal chamada de Israel e organizada em 12 tribos lideradas por linhagens segmentárias unidas pela religião monoteísta em YHWH, os hebreus receberam de Moisés a Torah (hebraico: “Instrução”) – conhecida também como Lei de Moisés ou Pentateuco, um código legal que dispunha de questões religiosas, jurídicas e éticas, e também do Direito de Família israelita (BÍBLIA, 2023).
Logo em sua Parte Geral conhecida como Dez Mandamentos ou Decálogo (hebraico: Aseret ha'Dibrot), o Direito de Família se mostra presente nos 5º, 7º e 10º mandamentos:
"12 “Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor teu Deus te dá”.
[...]
14 “Não adulterarás”.
[...]
17 “[...] Não cobiçarás a mulher do teu próximo [...]”." [54]
Presentes nos livros bíblicos de Êxodo, Levítico e Deuteronômio, as leis familiares incluíam o casamento forçado entre o casal que mantivesse relações sexuais extraconjugais (hebraico: Isurei bi'ah), mas se o pai da mulher não permitisse o matrimônio, somente o dote era pago deveria ser pago pelo homem como indenização por retirar a virgindade da moça (BÍBLIA, 2023).
Em Levítico 18.1-23 (2023) pode ser encontrado o primeiro rol de impedimentos matrimoniais (hebraico: Negiah) da história, algo jamais encontrado em nenhuma sociedade da época. Apesar de tratar de envolvimento sexual, e como o sexo só era considerado lícito no casamento, tratam-se também de proibições para se casar:
"O Eterno disse a Moisés: “Fale com o povo de Israel e diga a eles: ‘Eu sou o Eterno, o seu Deus. Não ajam como o povo do Egito, com quem vocês conviveram, nem como os povos de Canaã, para onde estou levando vocês. Não façam o que eles fazem. Obedeçam às minhas leis e ajam de acordo com meus decretos. Eu sou o Eterno. Guardem meus decretos e leis. Quem obedecer a essas leis viverá por elas. Eu sou o Eterno.
Não tenham relações sexuais com parentes próximos. Eu sou o Eterno.
Não desonrem seu pai, tendo relações com sua mãe. Ela é sua mãe. Não tenham relações com ela.
Não tenham relações com a mãe de seu pai. Isso desonra seu pai.
Não tenham relações com sua irmã, filha de seu pai ou de sua mãe, tenha ela nascido na mesma casa ou não.
Não tenham relações com a filha de seu filho ou com a filha de sua filha. Isso desonraria o próprio corpo de vocês.
Não tenham relações com a filha da esposa de seu pai, nascida de seu pai. Ela é sua irmã.
Não tenham relações com a irmã de seu pai. Ela é sua tia, parenta próxima de seu pai.
Não tenham relações com a irmã de sua mãe. Ela é sua tia, parenta próxima de sua mãe.
Não desonrem o irmão de seu pai, seu tio, tendo relações com a esposa dele. Ela é sua tia.
Não tenham relações com sua nora. Ela é esposa de seu filho: não tenham relações com ela.
Não tenham relações com a esposa de seu irmão. Isso desonraria seu irmão.
Não tenham relações com uma mulher e a filha dela. E não tenham relações com as netas dela. São parentas próximas. Isso é perversão.
Não se casem com a irmã de sua esposa para que uma não se torne rival da outra e para que o homem não tenha relações com ela enquanto a esposa ainda está viva.
Não tenham relações com sua esposa durante o período menstrual, quando ela está impura.
Não tenham relações com a esposa do vizinho, contaminando-se com ela.
Não entreguem nenhum de seus filhos para ser queimado como sacrifício ao deus Moloque. É um ato de blasfêmia contra seu Deus. Eu sou o Eterno.
Não tenham relações com um homem como se tem com uma mulher. Isso é abominável.
Não tenham relações com um animal, contaminando-se com ele”." [55]
A honra aos pais (hebraico: Kibud), além de mandamento pétreo, era ordenada várias vezes nos dispositivos legais, demonstrando que a base do Direito de Família hebraico era o Poder Familiar (PALMA, 2022). Para os sacerdotes havia um impedimento matrimonial adicional, a proibição de se casarem com mulheres que não fossem mais virgens (BÍBLIA, 2023).
Prosseguindo com as leis gerais, há também a garantia do Bem de Família, que poderia ser regatado no Ano do Jubileu (hebraico: Yobel) por qualquer membro do núcleo familiar que habitou naquela casa, mas também era permitido entregar o imóvel aos sacerdotes como parte de um voto religioso, sendo também garantido o regresso mediante o pagamento do valor pelo qual o bem foi vendido, acrescido de ⅕ sobre o preço original (BÍBLIA, 2023).
Já às vésperas de entrar em Canaã, Moisés nomeou os primeiros juízes (hebraico: Shohphetim), que também seriam responsáveis pelos litígios familiares, que deveriam ser resolvidos a luz da Torah e da jurisprudência que se formaria nesses tribunais tribais (REINKE, 2021). As últimas normas da Lei Hebraica sobre Direito de Família estão contidas no livro bíblico de Deuteronômio, ditadas por Moisés antes de sua morte:
"Quando vocês guerrearem contra os seus inimigos e o Senhor, o seu Deus, os entregar em suas mãos e vocês fizerem prisioneiros, um de vocês poderá ver entre eles uma mulher muito bonita, agradar-se dela e tomá-la como esposa. Leve-a para casa; ela rapará a cabeça, cortará as unhas e se desfará das roupas que estava usando quando foi capturada. Ficará em casa e pranteará seu pai e sua mãe um mês inteiro. Depois você poderá chegar-se a ela e tornar-se o seu marido, e ela será sua mulher. Se você já não se agradar dela, deixe-a ir para onde quiser, mas não poderá vendê-la nem trata-la como escrava, pois você a desonrou.
[...]
Se um homem tiver duas mulheres e preferir uma delas, e ambas lhe derem filhos, e o filho mais velho for filho da mulher que ele não prefere, quando der a herança de sua propriedade aos filhos, não poderá dar os direitos do filho mais velho ao filho da mulher preferida se o filho da mulher que ele não prefere for de fato o mais velho. Ele terá que reconhecer como primogênito o filho da mulher que ele não prefere, dando-lhe porção dupla de tudo o que possui. Aquele filho é o primeiro sinal da força de seu pai e o direito do filho mais velho lhe pertence.
Se um homem tiver um filho obstinado e rebelde que não obedece ao seu pai nem à sua mãe e não os escuta quando o disciplinam, o pai e a mãe o levarão aos líderes da sua comunidade, à porta da cidade, e dirão aos líderes: “Este nosso filho é obstinado e rebelde. Não nos obedece! É devasso e vive bêbado”. Então todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. [...]
Se um homem casar-se e, depois de deitar-se com a mulher, rejeitá-la e falar mal dela e difamá-la, dizendo: “Casei-me com esta mulher, mas, quando me cheguei a ela, descobri que não era virgem”, o pai e a mãe da moça trarão aos juízes da cidade, junto à porta, a prova da sua virgindade. Então o pai da moça dirá aos juízes: “Dei a minha filha em casamento a este homem, mas ele a rejeita. Ele também a difamou e disse: ‘Descobri que a sua filha não era virgem’. Mas aqui está a prova da virgindade da minha filha”. Então os pais dela apresentarão a prova aos juízes da cidade, e eles castigarão o homem. Aplicarão a ele a multa de cem peças de prata, que serão dadas ao pai da moça, pois aquele homem prejudicou a reputação de uma virgem israelita. E ele não poderá divorciar-se dela enquanto viver.
Se, contudo, a acusação for verdadeira e não se encontrar prova de virgindade da moça, ela será levada à porta da casa do seu pai e ali os homens da sua cidade a apedrejarão até a morte. [...]
Se um homem se encontrar com uma moça sem compromisso de casamento e a violentar, e eles forem descobertos, ele pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata e terá que casar-se com a moça, pois a violentou. Jamais poderá divorciar-se dela.
Nenhum homem poderá tomar por mulher a mulher do seu pai, pois isso desonraria a cama de seu pai.
[...]
Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar mulher de outro homem, e este não gostar mais dela, lhe dará certidão de divórcio, e a mandará embora. Ou se o segundo marido morrer, o primeiro, que se divorciou dela, não poderá casar-se com ela de novo, visto que ela foi contaminada. [...]
Se um homem tiver se casado recentemente, não será enviado à guerra, nem assumirá nenhum compromisso público. Durante um ano estará livre para ficar em casa e fazer feliz a mulher com quem se casou.
[...]
Se dois irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a sua viúva não se casará com alguém de fora da família. O irmão do marido se casará com ela e cumprirá com ela o dever de cunhado. O primeiro filho que ela tiver levará o nome do irmão falecido, para que o seu nome não seja apagado de Israel.
Se, todavia, ele não quiser casar-se com a mulher do seu irmão, ela irá aos líderes do lugar, à porta da cidade, e dirá: “O irmão do meu marido está se recusando a dar continuidade ao nome do seu irmão em Israel. Ele não quer cumprir para comigo o dever de cunhado”. Os juízes da cidade o convocarão e conversarão com ele. Se ele insistir em dizer: “Não quero me casar com ela”, a viúva do seu irmão se aproximará dele, na presença dos líderes, tirará uma das sandálias dele, cuspirá no seu rosto e dirá: “É isso que se faz com o homem que não perpetua a descendência do seu irmão”. E a descendência daquele homem será conhecida em Israel como “a família do descalçado”." [56]
Com sua fixação em Canaã, o extermínio da maior parte dos nativos cananeus em suas guerras de conquista e a morte de seu último líder Josué (1.501 – 1.391 a.C.), os sacerdotes perderam a influência e força diante da independência política dos príncipes tribais, que por sua vez perderam a força política sobre as famílias hebraicas (REINKE, 2021).
Durante a chamada Era dos Juízes (hebraico: Shohphet), cada família israelita desenvolveu seu próprio Direito de Família Interno, e a observância da Torah se torna facultativa, influenciando até a religião monoteísta hebraica, que passa a admitir outros deuses. Exemplo é do Juiz Sansão (1.075 – 1.055 a.C.), que casou livremente com uma mulher filisteia sem o arranjo contratual e a permissão paternal considerados ritos imprescindíveis de habilitação para o casamento na Lei de Moisés (BÍBLIA, 2023).
Tudo muda quando Israel nomeia seu primeiro rei (hebraico: Melekh), o benjamita Saul (r. 1.050 – 1.010 a.C.), que retoma a aplicação da Torah como lei única, abolindo quaisquer sistemas legais paralelos, a fim de unificar a identidade hebraica (REINKE, 2021). Isso foi seguido por seu sucessor Davi (r. 1.010 – 970 a.C.), que fortaleceu o ordenamento jurídico israelita com a colaboração sacerdotal.
O próprio rei atuava como juiz em uma audiência pública realizada uma vez a cada sete anos nos chamados “Ano da Justiça” (hebraico: Shnat Ha'Tzedek), inclusive para conciliar os litígios familiares, como fez o rei Salomão (r. 970 – 930 a.C.) quando dirimiu um conflito acerca da guarda de uma criança por duas mulheres:
"Um dia, duas prostitutas compareceram diante do rei. Uma delas disse: “Meu senhor, esta mulher e eu vivemos na mesma casa. Enquanto estávamos juntas, eu tive um bebê. Três dias depois, ela também teve um bebê. Não tinha mais ninguém na casa, e o bebê desta mulher morreu durante a noite, quando ela, dormindo, deitou sobre a criança. Eu dormia profundamente, então, ela se levantou, pegou o meu filho e o pôs ao seu lado e, depois, acomodou o filho morto ao meu lado. Quando acordei, de madrugada, para amamentar meu filho, estava ali o bebê morto! Mas, depois de clarear o dia, percebi que não era o meu bebê”.
A outra mulher interrompeu: “Não foi assim. O bebê vivo é meu, o morto é que é seu!”. A primeira mulher protestou: “De jeito nenhum! Seu filho está morto, o meu é o que está vivo”. E começaram a bater boca diante do rei.
O rei disse: “O que devemos fazer? Você diz que o filho vivo é seu e o morto é dela. Ela diz que não, que o morto é seu e o vivo é dela”.
Depois de refletir alguns momentos, o rei ordenou: “Tragam-me uma espada". E trouxeram a espada para o rei.
Ele ordenou: “Cortem o bebê vivo em dois. Deem metade para uma e metade para a outra”.
A verdadeira mãe do bebê vivo, comovida pelo filho, disse: “Não, meu senhor! Dê a ela o bebê, mas não o mate!”. Mas a outra disse: “Se não posso ficar com ele, você também não ficará. Pode cortar o bebê!”.
O rei deu seu veredito: “Deem o bebê vivo à primeira mulher. Ninguém matará o bebê. Ela é a verdadeira mãe”.
A notícia sobre a perspicácia do rei se espalhou por todo o Israel. Todos ficaram admirados de sua capacidade de julgar, sabendo que era a sabedoria proveniente do Eterno." [57]
A decisão de Salomão fixou um precedente jurisprudencial que foi seguido pelos magistrados judeus até a outorga da Mishnah pelos Asmoneus no Século I a.C. (NETO, 2019). O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente passou a ser considerado nas disputas pela guarda de menores, devendo a mãe ou pai que mais possuísse afinidade com a criança e que realmente se preocupava com seu bem-estar ser nomeado o guardião, pois a criança deveria ser mantida segura e bem cuidada por quem realmente desejasse mantê-la sob seus cuidados.
Após a morte de Salomão em 930 a.C., o território hebreu se divide em dois reinos, o de Judá – formado por 2 tribos – governado pelos descendentes de Davi em Jerusalém, e o de Israel – formado por 10 tribos – governado por 8 dinastias diferentes tendo capital em Samaria, e que rompeu com a religião monoteísta e, consequentemente, com a Torah, que se tornou o código legal dos judaítas após seu reencontro durante o reinado do rei Josias (836–796 a.C.), responsável por restaurar o regime legal religioso de Moisés (REINKE, 2021).
O Direito de Família samaritano consistia em um amálgama do direito consuetudinário hebraico com normas e tradições egípcias, fenícias e assírias (HARTMAN, 2024). Exemplos são de óstracos[58] do reinado de Jeroboão II (r. 793–753 a.C.) encontrados nas ruínas de Samaria em 1910, muitos sendo documentos e contratos jurídicos, atestando que as famílias eram dominadas pelos homens e estratificada, não havia mais preferência pela virgindade no casamento, eram admitidas relações homoafetivas (hebraico: Mesolelot) entre homens e entre mulheres (mas não o casamento), o divórcio era imotivado e os filhos permaneciam sob o poder paterno enquanto moravam com o pai, mesmo se estivessem casados e possuíssem filhos (IMJ, 2024).
Mas um dos óstracos mais interessantes é um encontrado em 1973 na cidade de Mesad Hashavyahu (chamada na antiguidade de Yavne-Yam), no litoral sul de Israel, território que pertenceu ao antigo Reino de Judá. A inscrição datada do reinado de Ezequias de Judá (r. 739 – 682 a.C.), é literalmente uma petição inicial solicitando a busca e apreensão de uma criança, demonstrando que os nobres também dirimiam litígios familiares:
"Que o rei, meu senhor, ouça o apelo de seu servo. Seu servo está trabalhando na colheita; seu servo estava em Hasar-Asam (quando o seguinte incidente ocorreu). Seu servo fez sua colheita, terminou e armazenou (o grão) alguns dias atrás antes de parar (o trabalho). Quando seu servo terminou (sua) colheita e armazenou-a alguns dias atrás, Hoshayahu ben Shabay, o Príncipe (governador desta) cidade, veio e pegou o primogênito e filho único de seu servo. Quando eu terminei minha colheita, naquele momento, alguns dias atrás, ele pegou o filho de seu servo. Todos os meus companheiros irão atestar por mim, todos os que estavam colhendo comigo no calor do sol: Meus companheiros irão atestar por mim (que) verdadeiramente sou inocente de qualquer in[fração] e que há injustiça. Este (jovem), que é o sustento [de minha velhice] e o conforto de minha alma, foi levado à força para servir (nos palácios do) Príncipe, afastando-o do calor do lar e do amor de seu servo. Meu filho foi tirado dos braços de seu servo, e até agora fui impedido de vê-lo, nem mesmo uma palavra sobre o estado [do filho] (de seu servo) me foi dada; [(então) por favor, faça-o que devolva] meu filho, ordene aos vossos soldados [em Jerusalém] que busquem (meu filho) e o tragam de volta ao nosso de seu servo. Se o oficial não considerar uma obrigação devolver [o primogênito de seu servo, então tenha] piedade dele [e ordene-o que devolva] o [filho] de seu servo por essa motivação. Você, o senhor [de toda esta terra], não deve permanecer em silêncio [quando seu servo estiver sem o filho amado]. Que seu servo seja restituído do único filho (que tem), e que o sol da justiça brilhe sobre (sua) casa." [59]
Foi mantido em Israel e em Judá o sistema de “Tribunais da Porta” (hebraico: Bamat Ha'Sha'ar) da época dos Juízes, mesmo existindo magistrados (que não eram funcionários públicos, mas eram comissionados escolhidos pelos príncipes tribais), com os anciãos presidindo cortes de julgamento comunitárias que se instalavam na porta das cidades, sendo mais respeitados do que os juízes (REINKE, 2021).
O alto custo dos processos judiciais e dos emolumentos dos escribas acabava levando o povo a apresentar seus casos para os anciãos, que tomavam decisões baseadas na interpretação literal da Torah, sem levar em conta os interesses familiares ou se haveria algum benefício para a prole menor (PALMA, 2022).
O Reino de Israel foi destruído e reduzido a mera província em 722 a.C. pelo Império Assírio, e o Reino de Judá foi invadido e teve sua população exilada na Babilônia em 586 a.C. por Nabucodonosor II (r. 605 – 562 a.C.) (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Os judeus (como passaram a ser chamados os judaítas) foram permitidos a retornar para a Judeia (nome que os persas deram a Judá) em 538 a.C., e sob a liderança do sacerdote Esdras (fl. 480 – 440 a.C.) e do Sátrapa Neemias (gov. 445 – 403 a.C.), a observância da Torah foi restaurada e o Direito de Família judaico voltou a ser como na época de Moisés (BÍBLIA, 2023).
Observando o ordenamento jurídico-familiar dos antigos povos orientais é possível analisar a gradual intervenção estatal nas famílias por meio dos códigos e leis outorgadas a fim de regulamentar sua forma, relações, função e resolver seus litígios, tacitamente transformando a família de ente estatal como era na época dos hominídeos primitivos em instituto estatal a ser amparado, protegido e resguardado, mas acima de tudo controlado, pela nobreza e pelo sacerdócio.
As dinastias reais e tribais, centradas na figura da própria família real, ditavam os moldes de como as famílias da população geral deveriam ser, o que dificilmente flexionava de acordo com o contexto social dos indivíduos, visto que o legalismo e a interpretação literal das normas eram o que imperava nesse período.
A estrutura social na Antiguidade era em grande parte centrada no patriarcado, sendo composta de alguns níveis de organização que eram o reino, a tribo, o clã, a linhagem e a família. A unidade primordial e fundamental para o andamento da sociedade era a família, pois era onde se aplicaria as leis desenvolvidas para sua regularização.
Regidas pelo patriarca – o macho adulto responsável, e geralmente o mais velho –, as famílias patriarcais eram formadas em geral pela esposa (ou esposas e concubinas), os filhos e as esposas deles, os netos e outros dependentes, bem como a linhagem ou descendência passava para os filhos, de forma que as filhas casadas se incorporavam às famílias dos maridos. O patriarca era quem ensinava as leis familiares e demais normas e condutas a todos os membros, que deveriam o obedecer. Anacronicamente, o rei era o patriarca do reino, por isso também era honrado.
Apesar do patriarcado estender o poder paterno sobre todos os parentes que integravam a família, o papel da mulher foi transformado em secundário e muitas vezes as leis codificadas ou consuetudinárias tendiam a suplantar as suas funções, reduzindo-as a meras reprodutoras. No entanto, se irresignando contra o sistema, as mulheres tiveram uma participação ampla nas famílias, principalmente em virtude da complacência ou omissão dos patriarcas na gerência do lar, pois eram elas quem verdadeiramente cuidavam da família.
A educação dos filhos ficava totalmente sobre o encargo delas, que os alfabetizavam, ensinavam matemática, atividades domésticas e controle financeiro. Nos arranjos contratuais para o noivado, as mães que de fato escolhiam os pretendentes dos filhos e filhas, influenciando nas decisões do pai, mostrando que elas eram quem cuidava da manutenção da família de fato.
2.4. O Direito de Família Assírio
Outro povo que possuía um ordenamento jurídico que tinha como foco o Direito de Família são os assírios, que habitaram o atual Iraque entre 2.025 – 609 a.C. (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Herdeiros legais dos amoritas, eles possuíam um grande compilado de normas conhecidas como Leis Assírias Médias, cuja sigla é MAL (do inglês, Middle Assyrian Laws), outorgadas incialmente pelo rei Ashur-nadin-ahhe I (r. 1.452 – 1.431 a.C.) (CDLI, 2005). Apesar de semelhante ao Código de Hamurabi, o Direito de Família nas MAL era bem mais detalhado e um tanto mais brutal, ao colocar o pai como figura principal sobre todos os demais familiares.
Após a última reforma realizada por Tukulti-Ninurta I (1.243 – 1.207 a.C.), as MAL passaram a tratar em maior parte de leis criminais, mas suas normas familiares foram acrescentadas regras acerca do noivado, casamento, sexo, planejamento familiar, gravidez, poder familiar, guarda dos filhos, violência e abuso familiar, e a representação das pessoas incapazes, como se depreende do texto recuperado em 1921 da Tabuleta RIMA 2.0.087, encontrada em Nínive pela Sociedade Oriental Americana:
"A16 Se um homem se divorciar de sua mulher, se ele quiser, ele pode dar-lhe algo; se ele não quiser, ele não precisa dar-lhe nada. Vazia ela sairá.
A17 Se um homem disser a outro homem: “Sua esposa é promíscua”, mas não houver testemunhas, eles deverão fazer um contrato e ir ao rio (para a provação do rio).
A18 Se um homem disser a outro homem, em particular ou em uma briga: “Sua esposa é promíscua; eu mesmo apresentarei acusações contra ela”, mas ele não for capaz de comprovar a acusação e não puder prová-la, ele deverá ser açoitado (quarenta golpes), sentenciado a um mês de trabalhos forçados para o rei, ser cortado, e pagar um talento de chumbo.
[...]
A22 Se um homem (que não seja pai, irmão ou filho) tiver feito uma mulher casada viajar com ele, desde que ele não soubesse que ela era casada, ele deve jurar a esse respeito e pagar dois talentos de chumbo ao marido. Se ele soubesse que ela era casada, ele deve pagar esta multa e jurar: “Juro que não fizemos sexo”. No entanto, se a mulher disser: “Fizemos sexo”, mesmo que ele tenha pago a multa, ele deve enfrentar a provação do rio, sem contrato. Se ele recusar a provação do rio, ele deve ser tratado como o marido da mulher escolhe tratar sua esposa.
A23 Se uma mulher casada convidou outra mulher casada para sua casa e a deu a um homem para fazer sexo, desde que o homem soubesse que ela era casada, ele deve ser tratado como qualquer pessoa que fez sexo com uma mulher casada e a situação deve ser tratada como o marido escolher tratar sua esposa adúltera. Portanto, se o marido não fizer nada à sua esposa adúltera, nada deve ser feito ao adúltero ou à alcoviteira; eles devem ser libertados. Alternativamente, se ela não sabia o que estava acontecendo, mas a primeira mulher a trouxe para sua casa sob pressão e a deu a um homem que fez sexo com ela, desde que, quando ela saiu de casa, ela fez uma reclamação de que tinha sido forçada, ela será libertada; ela é inocente; o adúltero e a alcoviteira devem ser executados. Se a mulher não fez uma reclamação, no entanto, seu marido pode impor qualquer punição que ele preferir à sua esposa, mas o adúltero e a alcoviteira ainda devem ser executados.
A24 Se uma mulher casada abandonou seu marido e foi morar com um assírio, seja na mesma cidade ou em uma cidade vizinha, e ele a instalou em uma casa onde ela ficou com a dona daquela casa três ou quatro noites (enquanto o dono da casa não sabia que uma mulher casada estava hospedada lá), então, se ela for pega, o marido abandonado deve cortar as orelhas de sua esposa, mas levá-la de volta. A anfitriã casada também deve ter suas orelhas cortadas; seu marido pode resgatá-la por três talentos e trinta minas de chumbo ou, se preferir, ela deve ser levada embora. No entanto, se o anfitrião soubesse que uma mulher casada estava hospedada em sua casa com sua esposa, ele deve pagar um terço extra. Se ele negar, dizendo: “Eu não sabia”, eles usarão a provação do rio. Se o anfitrião recusar a provação do rio, ele deve pagar o terço extra, a menos que o marido abandonado também recuse a provação do rio; nesse caso, o anfitrião está “fora do gancho” — é como se ele tivesse sido exonerado pelo rio. Se o homem abandonado escolher não cortar as orelhas de sua esposa e levá-la de volta, não haverá punição infligida a ninguém.
A25 Se uma mulher ainda estiver morando na casa de seu pai, mas seu marido tiver morrido, os irmãos de seu marido (desde que ainda não tenham dividido a herança e não haja filho) devem pegar quaisquer ornamentos que seu marido lhe deu e que ela ainda tenha. Eles devem passar o que resta diante dos deuses e reivindicá-lo formalmente. Eles não devem ser obrigados a passar pela provação do rio ou fazer o juramento.
A26 Se uma mulher ainda estiver morando na casa de seu pai, mas seu marido tiver morrido, se seu marido tiver filhos, eles tomarão quaisquer ornamentos que seu marido lhe deu, mas se ele não tiver filhos, ela mesma os tomará.
A27 Se uma mulher ainda estiver morando na casa de seu pai, e seu marido tiver feito visitas frequentes, ele poderá tomar de volta como seu qualquer presente de casamento que ele tenha dado a ela, mas ele não poderá tomar o que vem da casa de seu pai.
A28 Se uma viúva se casou novamente na casa de um homem, trazendo seu filho pequeno com ela, e esse filho cresceu na casa de seu padrasto, mas nunca houve uma escritura de adoção, ele não deve receber da herança de seu padrasto, ou ser responsável por suas dívidas. Ele deve receber sua parte apropriada do patrimônio de seu pai natural.
A29 Se uma mulher se mudou com seu marido, seu dote, tudo o que ela trouxe da casa de seu pai e tudo o que seu sogro lhe deu quando ela se mudou, são reservados para seus filhos. Seus cunhados não têm direito a ele. Mas, se seu marido sobreviver a ela, ele pode distribuí-lo como quiser para seus filhos.
A30 Se um pai trouxe (ou enviou) o presente de noivado ao futuro sogro de seu filho, mas eles ainda não se casaram, e então outro de seus filhos (do pai) teve relações sexuais com aquela mulher, ele deve ser cortado e a mulher do pai do noivo deve ser morta. Se um outro homem seduziu e teve relações sexuais com essa mulher, o pai do noivo deve tratá-lo como preferir, mas a mulher deve ser executada.
[...]
A58 Se uma mulher grávida for acusada de adultério, ela deve provar sua inocência por meio de um juramento e da provação do rio. Se ela for condenada, tanto ela quanto o homem devem ser executados.
A59 Se uma mulher casada, que é virgem, for estuprada, o estuprador será executado. Se a mulher não for virgem, o estuprador será multado, e o valor da multa será dado ao marido ou pai da mulher.
A60 Se uma mulher, após a morte do marido, deseja retornar à casa de seu pai, ela pode fazê-lo, mas deve deixar seus filhos na casa do marido, a menos que o pai dela assuma a responsabilidade financeira por eles.
A61 Se um homem, durante seu casamento, tiver filhos com outra mulher, esses filhos serão reconhecidos como herdeiros legítimos, mas eles devem compartilhar a herança com os filhos do primeiro casamento.
[...]
A104 Se um homem está mentalmente incapacitado ou é criança, seu pai deve representá-lo legalmente em todas as questões do reino. Se o pai estiver morto, então o seu irmão mais velho o representará.
[...]
A126 Se uma mulher cujo marido morreu após a morte de seu marido não sair de casa, se seu marido não lhe deixou nada, ela deverá morar na casa de um de seus filhos. Os filhos de seu marido a sustentarão; sua comida e sua bebida, como para uma noiva que eles estão cortejando, eles concordarão em prover para ela. Se ela for uma segunda esposa e não tiver filhos próprios, com um dos filhos de seu marido ela deverá morar e o grupo deverá sustentá-la. Se ela tiver filhos próprios, seus próprios filhos a sustentarão, e ela fará seu trabalho. Mas se houver um entre os filhos de seu marido que se case com ela, os outros filhos não precisarão sustentá-la.
A127 Se um homem bater na esposa de outro homem, no primeiro estágio da gravidez, e fizer com que ela deixe cair o que está dentro dela, é um crime; ele deverá pagar dois talentos de chumbo.
A128 Se um homem ferir uma prostituta e fizer com que ela derrame o líquido que está dentro dela, golpe por golpe eles lhe aplicarão; ele restituirá uma vida.
A129 Se uma mulher por sua própria vontade deixar cair o que está dentro dela, eles a processarão, eles a condenarão, eles a crucificarão, eles não a enterrarão. Se ela morrer por deixar cair o que está dentro dela, eles a crucificarão, eles não a enterrarão.
[...]
A149 Se uma virgem por sua própria vontade se entregar a um homem, o homem fará um juramento, contra sua esposa eles não se aproximarão. O violador pagará três vezes o preço de uma virgem. O pai fará com sua filha o que lhe agrada.
A150 A menos que seja proibido nas tábuas, um homem pode bater em sua esposa, puxar seus cabelos, sua orelha ele pode machucar ou furar. Ele não comete nenhuma infração por isso." [60]
Dessa forma, as MAL eram amorais e destinadas a assegurar o curso pacífico da família nos moldes do que os reis acreditavam ser o correto, além de que o amplo poder paterno, inclusive ao permitir legalmente a prática de violência doméstica e familiar, justificavam a brutalidade das políticas assírias, visto que o rei assírio era entendido como sendo o pai de todos os cidadãos do império.
Ofensas contra a lei eram consideradas ofensas contra a família e ao poder do pai, de forma que o Direito de Família assírio acabava por servir de propaganda política para a realiza. Como coleções de leis, as MAL eram infestadas de informações promovendo o poder dos deuses e reis, e seus desenvolvimentos teóricos regularizavam as formas que a família poderia ser organizada, não se admitindo quaisquer modificações particulares (HAREVEN, 1991).
Uma reforma judicial foi anunciada pelo imperador Assurbanipal (669 – 631 a.C.), mas ele morreu na mesma semana em que a corte foi convocada para auxilia-lo na atualização das MAL (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). 22 anos após a morte de Assurbanipal, o Império foi conquistado pelos caldeus, descendentes dos antigos amoritas que agora governavam a Babilônia. As MAL foram revogadas e a lei babilônica foi implantada na Assíria, mas seu conteúdo permaneceu como Direito Consuetudinário nas comunidades, mesmo após a conversão dos assírios ao Cristianismo no século I d.C.
A antiguidade passa por grandes transformações com a chegada da Antiguidade Clássica (800 – 333 a.C.), quando ocorre em grande parte uma ruptura entre a religião e o direito, com a família governada por regras jurídicas, pois os Estados (principalmente na Ásia) procuravam manter a ordem entre o povo, e nada seria mais efetivo do que regular um direito capaz de organizar as linhagens e promover a obediência ao rei (PALMA, 2022).
Essa regularização privava até certo ponto que houvesse uma deliberação livre dos patriarcas dentro de suas famílias, pois ao permitir que cada pai decidisse como sua família deveria ser dirigida, este poderia se rebelar contra o rei ou incentivar que sua família buscasse independência, o que era mais temido pelos nobres.
Essa utilização do Direito de Família como método de controle social para manter a estabilidade da população acabava ocasionando um conflito entre o Poder Real e o Poder Familiar, pois a criação de leis e mais leis dispondo sobre a família, mesmo que promovendo o patriarcado, contraditoriamente restringia a autonomia da vontade familiar, justamente o que os códigos antigos pretendiam promover. Exemplos desse paradoxo eram as normas do Código de Hamurabi, Torah e MAL, que promoviam o poder do pai sobre as esposas e filhos, mas previam punições a ele se descumprisse as leis determinadas pelo trono.
Em termos processuais, o Direito de Família antigo já possuía o amparo jurisdicional necessário para promoção de conciliações e resolução de litígios, ainda que não houvessem juízos de família específicos para este fim (DIAS, 2021). Ainda havia a competência compartilhada entre os juízes seculares, a nobreza e os sacerdotes, o que também resultava em conflitos e invasões nos julgamentos, sem analisar o que mais beneficiaria os requerentes.
O procedimento judicial antigo nas questões de família era comum e público, com os atos do processo se movimentando com ritos determinados pelo Estado que nem o juiz ou as partes poderia se desviar porque o Direito de Família era considerado interesse público, mas o processo era privado, e a resolução dos litígios competia a trazer soluções somente às partes na busca da pretensão jurisdicional. O processo de execução também era público, pois os reis antigos consideravam a família um patrimônio estatal, e o descumprimento das obrigações familiares era tido como desobediência não a lei, mas ao próprio rei.
2.5. O Direito de Família Persa
No que hoje é o Irã, surgiram em 900 a.C. um grupo de povos indo-arianos chamados persas, inicialmente nômades pastoris que se tornaram sedentários e construíram um extenso império que se estendia da atual Turquia à Índia, conhecido como Império Aquemênida (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Os primeiros registros legais do Direito de Família persa datam do reinado de seu primeiro imperador, Ciro II o Grande (550–530 a.C.), que aproveitou as leis neobabilônicas – que utilizavam as MAL como base – para regulamentar as famílias persas, mas não passavam de tratados jurídicos morais e quase jurisprudenciais contidos nas ordens imperiais, que eram encaradas pela população como recomendações, e não leis (PALMA, 2022).
Tudo muda no reinado de Dario I o Grande (522 – 486 a.C.), que reformou o ordenamento persa reorganizando-o nos moldes das Avestan, as escrituras sagradas do Zoroastrismo, uma religião monoteísta criada por Zarathushtra Spitama, o Zoroastro (fl. 624 – 522 a.C.), que tinha como divindade principal Ahura Mazda, o “Bem Encarnado”, criando uma visão dualista do bem contra o mal que se enraizou no Direito Persa (PALMA, 2022).
Imbuídas de normas morais (muito semelhante à Torah Hebraica), as leis persas estabeleceram o Khwēdōdah (Persa: “Casamento Puro”), o modelo de casamento estatal constituído pela união endogâmica entre um homem com sua prima (MĀDAYĀN, 1997). Contudo, caso o pai/tio não permitisse o casamento, o homem poderia se casar com uma de suas tias, e havendo impossibilidade, seguia-se para a irmã, mãe e sua própria filha, que já estava sob seu poder familiar e não poderia se recusar a casar com o pai.
A reforma trouxe também as disposições sobre a idade núbil, principalmente para as garotas, visto que a proteção às filhas (ainda que contraditoriamente as mulheres estivessem sob o controle masculino) era prezada pela legislação aquemênida:
"CAPÍTULO XXVIII: DA IDADE NÚBIL DAS DONZELAS
DA IDADE DA DONZELA PARA O CASAMENTO
1.1. No que tange à idade que uma donzela deve alcançar para o zanīh (enlace matrimonial), deve ocorrer somente até o alcance a idade de quinze anos. Tal idade é considerada a plenitude da maturidade física e espiritual necessária para a contração do matrimônio.
1.2. A idade de quinze anos é estipulada como a barreira mínima para garantir que a jovem tenha atingido seu pleno desenvolvimento físico e esteja apta para o casamento.
1.3. Mesmo a menstruarão, que ocorre geralmente entre os nove e doze anos, não é suficiente para a consideração da maturidade completa necessária para o zanīh.
1.4. Uma menina pode ser legalmente casada aos nove anos de idade. A consumação do matrimônio, no entanto, deve ser adiada até que a jovem atinja a idade de quinze anos, especialmente se ela manifestar desejo carnal.
1.5. É imperativo que a jovem se case antes de completar quinze anos de idade. Caso recuse o casamento após essa idade, comete um pecado capital.
1.6. Se o pai ou tutor não conseguir providenciar o noivado da jovem após ela completar quinze anos, também será considerado culpado de um pecado grave.
DOS TRÂMITES MATRIMONIAIS
2.1. O consentimento da donzela é essencial para a validade do zanīh. Em conformidade com a lei vigente, ela não pode ser dada em casamento, seja de forma legítima ou stūrīh (procuração), contra sua vontade.
2.2. Se um irmão assume a conduta de stūrīh em lugar de sua irmã, ele está autorizado a dar sua irmã em casamento, mesmo contra sua vontade, desde que o casamento seja sancionado pelo pai ou tutor da jovem.
2.3. Menores têm a capacidade de contrair casamento legítimo ou stūrīh. Além disso, um filho menor pode casar-se com sua mãe legítima, se ela tiver se divorciado de seu pai.
2.4. Após atingir a maioridade, um filho ou filha pode revisar e, se necessário, desconsiderar casamentos previamente arranjados. A prática predominante permite que o indivíduo faça sua própria escolha, respeitando a vontade na formação de vínculos matrimoniais.
2.5. O casamento deve ser também sancionado pelo pai ou sālār (guardião) da jovem, garantindo que a união esteja em conformidade com as normas familiares e sociais.
JURISPRUDÊNCIA DOS SÁBIOS
3.1. O jurista Sōšyāns admite que a consumação do matrimônio pode ocorrer já aos nove anos, desde que a menina seja considerada fisicamente madura pela família e pelo juiz. A idade para a consumação deve ser ajustada conforme a maturidade física da jovem antes dos quinze anos. Cada tribunal deve observar este parecer à luz deste livro e dos demais sábios.
3.2. O jurista Abarag sustenta que, em casos de stūrīh, a filha deve obedecer à escolha de seu pai, pois a remuneração pela conduta de stūrīh pertence ao pai. Contudo, seu precedente se encontra em desacordo com a manutenção da vontade da moça expressa nesta lei, mas o Shahanshah (Imperador) observou que, caso aplicada, deve esta visão ser interpretada de acordo com o poder garantido ao Kadag-xwadāy (chefe da família) desde os tempos imemorais desta lei.
3.3. O jurisconsulto Mēdōgmāh discorda sobre o direito de uma criança após a maioridade de desconsiderar casamentos pré-arranjados, pois tal seria anular o poder do Kadag-xwadāy. Sua jurisprudência não possui predominância, mas sua aplicabilidade é reconhecida se houver prejuízo as famílias que arranjaram o zanīh.
3.4. Conforme os preceitos do jurista Weh-Hormizd, a prática predominante quando estas leis foram estabelecidas parece ter sido que o noivo fizesse sua própria escolha, ocasionando em duxt-ē kē šōy xwad kunēd (relacionamento para fazer sexo), o que não agrada Ahura Mazda. Para Weh-Hormizd, casar-se com quem se deseja é ferir a ordem do que os Céus e todos os Celestes estabeleceram. Esta precedente é chancelado pelo Shahanshah e deve ser observado por todos. Quem descumprir este parecer será considerado indigno perante a comunidade." [61]
As leis familiares persas foram posteriormente compiladas junto a outras de Direito Cível em 618 d.C. pela Corte Sassânida[62], sob a liderança do jurista e Ministro da Justiça Farroxmard i Wahrāmān (fl. 562 – 639), no Mādayān ī hazār dādestān (persa: “Livro dos Mil Julgamentos”), que é a única codificação das leis persas, cuja maior sessão de leis e estatutos foi a de Direito de Família, mostrando a preocupação dos antigos iranianos em proteger as famílias (PALMA, 2022).
Apesar de sua lei ser essencialmente religiosa e ter como fonte as Escrituras Sagradas Zoroastristas, o casamento persa era civil e presidido por um juiz (persa: Dādwar), que encaminhava o termo de casamento para ser homologado por um sacerdote (MĀDAYĀN, 1997). Admitia-se também o casamento por procuração (persa: Stūrīh), principalmente nos casos em que o noivo era militar em campanha e temia a morte, lavrando uma procuração ao seu pai, tio ou irmão para que sua noiva recebesse os direitos de esposa, que incluíam sua herança.
Os persas não reconheciam a união estável, chamada por eles de Duxt-ē kē šōy xwad kunēd (persa: “Casamento pela vontade de estar na cama”), encarado por eles como concubinato impuro que não poderia ser amparado em hipótese alguma pela lei civil ou religiosa (MĀDAYĀN, 1997). Mas caso houvesse geração de filhos, as normas persas obrigavam o homem a pagar pensão alimentícia e manter a mulher e seus filhos até a maioridade destes, mesmo que não fossem permitidos a se casar.
Mesmo com o casamento endogâmico fosse determinado em lei, não havia proibição para se casar com pessoas de outras famílias, clãs ou religiões, sendo comum o casamento entre persas com citas, indianos e judeus, e um marido não poderia obrigar sua esposa a abandonar sua religião ancestral, permitindo a ela requerer o divórcio (PALMA, 2022). As normas persas foram as primeiras a determinar os deveres conjugais (persa: Dāsr ī wīr-masāy) e os atos do poder familiar (persa: Ahlawdād):
"CAPÍTULO XXXIV: DOS DEVERES DO MATRIMÔNIO E DA AUTORIDADE DO KADAG-XWADĀY
DOS DEVERES DO MATRIMÔNIO
1.1. No sagrado vínculo do matrimônio, é incumbência da esposa submeter-se ao seu senhor, pois é ele o protetor e guia de sua casa. A esposa deverá, com toda devoção e diligência, cuidar das responsabilidades do lar, garantindo a ordem e o bem-estar da família, conforme os mandamentos divinos e as tradições dos antepassados.
1.2. O marido, como Kadag-xwadāy (chefe da família), deve prover a sua esposa e assegurar-lhe sustento e proteção. Ele deve tratar sua esposa com justiça, porém, sempre recordar que sua palavra é lei no lar, e a obediência de sua esposa é um dever sagrado.
1.3. Cabe à esposa zelar pela prole e educá-la nos princípios da fé zoroastriana, mantendo a honra da família e preservando os costumes dos seus ancestrais. A esposa que desviar-se desses deveres trará desonra à sua casa e será julgada conforme as leis estabelecidas pelos sábios.
[...]
CAPÍTULO XLVII: DO PODER DO KADAG-XWADĀY
SOBRE SEUS FILHOS
1.1. O Kadag-xwadāy, como chefe supremo de sua casa, detém autoridade absoluta sobre seus filhos, tanto em assuntos de conduta quanto em decisões vitais para a linhagem familiar. Ele tem o direito de discipliná-los conforme julgar necessário, utilizando os meios que sua sabedoria lhe indicar como apropriados para garantir a ordem e o respeito.
1.2. O Kadag-xwadāy pode dispor do futuro de seus filhos, decidindo sobre seus casamentos, ofícios, e demais compromissos sociais, de acordo com o melhor interesse da família e da preservação da sua honra. Suas decisões, uma vez tomadas, devem ser acatadas sem contestação.
1.3. Se um filho, por desobediência ou rebeldia, violar as diretrizes impostas pelo Kadag-xwadāy, este poderá aplicar punições que julgar justas, incluindo, se necessário, a exclusão do filho da herança e dos privilégios familiares.
1.4. Em casos de extrema gravidade, o Kadag-xwadāy tem o direito de levar o caso ao tribunal dos anciãos para que sua autoridade seja reforçada pela lei, garantindo que a ordem e a honra da casa sejam mantidas intactas." [63]
No cuidado das crianças e adolescentes, somente os pais eram os guardiões naturais de sua prole, no entanto, em caso de falecimento do pai, um tutor (persa: Sālār) era nomeado para cuidar das crianças e da mulher, já que a autoridade parental pertencia somente ao homem (PALMA, 2022). A tutela descrita nas leis persas possuía um procedimento muito semelhante com o que há em nosso Código Civil Brasileiro de 2002:
"CAPÍTULO XV - DA SAGRADA TUTELA E DOS GUARDIÕES
DO GUARDIÃO LEGAL, DESIGNADO E NOMEADO
1.1. Após o passamento do Kadag-xwadāy (chefe da família), quando o destino da família se encontra à mercê dos desígnios celestiais do Senhor, recai sobre o membro mais preeminente e autoritário a sagrada responsabilidade de ser o sālār (guardião). Este é incumbido de velar pela proteção e bem-estar das mulheres e infantes, conforme ordenam as tradições ancestrais e a vontade divina de Ahura Mazda.
1.2. Em conformidade com a lei dos antigos, distinguem-se três categorias de stūrs (tutelas), cada qual investido de poderes e deveres específicos, segundo a sua natureza: o būdag (guardião por direito e lei), o kardag (guardião designado pelo chefe da casa) e o gumārdag (guardião nomeado pela assembleia familiar ou pela decisão do juízo).
1.3. O būdag é guardião por direito, é estabelecido pela lei devido ao seu vínculo de sangue e a obrigação natural que deriva da ordem divina. Este guardião deve ser o irmão mais velho, ou o esposo da irmã mais velha, que deve assumir a tutela não apenas dos menores e das mulheres, mas também a gestão dos bens e propriedades do falecido, garantindo que a casa permaneça próspera e em harmonia.
1.4. O guardião por direito é também aquele que, ao tomar posse da administração da herança, não necessita de estipêndio adicional, pois sua recompensa é a própria continuidade da linhagem e a preservação do nome da família. Ele é investido do direito de participar da abarmānd (herança), cumprindo seu dever sagrado sem requerer compensação material.
1.5. Este guardião é o pilar da família, sustentando a chama sagrada do lar e garantindo que os preceitos dos ancestrais e do falecido Kadag-xwadāy sejam observados em todas as circunstâncias, mantendo a ordem e a justiça dentro do círculo familiar.
DOS DEVERES E PRERROGATIVAS DO GUARDIÃO DESIGNADO
2.1. O kardag é guardião designado, é aquele escolhido em vida pelo Kadag-xwadāy para sucedê-lo na tutela e cuidado dos seus, após o seu passamento. Este guardião deve ser o parente mais próximo, escolhido por sua sabedoria, retidão, e pela confiança que lhe foi depositada pelo falecido.
2.2. Na ausência de parentes idôneos ou quando o Kadag-xwadāy julgar apropriado, o kardag pode ser selecionado de fora do clã, sendo um homem de estirpe nobre e digno de confiança, a quem será delegado o dever de proteger os interesses da família e zelar pelos membros mais vulneráveis.
2.3. A escolha de um kardag é um ato solene, que deve ser registrado e testemunhado, para que não restem dúvidas sobre a legitimidade de sua autoridade e sobre a intenção do falecido em delegar tal responsabilidade. Este guardião designado assume seus deveres imediatamente após a morte do chefe da casa, devendo conduzir-se com retidão e justiça.
2.4. O kardag tem a prerrogativa de gerir os bens e propriedades do falecido, administrando-os em benefício dos menores e das mulheres sob sua proteção. Ele deve agir com prudência e sabedoria, assegurando que os recursos da família sejam preservados e multiplicados.
2.5. Caso o kardag falhe em cumprir suas responsabilidades, ou se for constatado que sua administração tem causado prejuízos à família, ele pode ser destituído de sua função, sendo substituído por outro guardião mais apto, conforme decisão da assembleia familiar ou do juízo.
2.6. Se o Kadag-xwadāy, em vida, não designar um kardag, ou se o designado recusar a incumbência, a tutela dos menores e das mulheres recairá sobre o gumārdag, guardião nomeado pela comunidade ou pelos juízes, assegurando que ninguém fique sem proteção ou amparo.
DA NOMEAÇÃO E OBRIGAÇÕES DO GUARDIÃO NOMEADO
3.1. O gumārdag é o guardião nomeado, escolhido pela assembleia familiar, pela comunidade ou pelo juízo, em circunstâncias onde não haja um guardião por direito ou designado. Este sālār é investido de autoridade pela necessidade de proteção dos membros vulneráveis da família.
3.2. A nomeação de um gumārdag ocorre quando as mulheres e crianças menores são deixadas sem um tutor devido à falta de designação por parte do falecido chefe da casa ou pela recusa do kardag em assumir tal responsabilidade. Neste caso, a comunidade tem o dever sagrado de intervir, nomeando um guardião que possa proteger e guiar a família.
3.3. O gumārdag é, muitas vezes, escolhido entre os agnados mais próximos, mas, na ausência destes, pode ser alguém de fora da família, desde que seja considerado digno e capaz de cumprir as responsabilidades do cargo.
3.4. A nomeação de um gumārdag é um processo formal, que requer a consulta aos membros da família paterna. O guardião nomeado deve aceitar o encargo com humildade e devoção, ciente de que sua tarefa é proteger e promover o bem-estar daqueles sob sua tutela.
3.5. Ao gumārdag é concedido um estipêndio para sustento e execução de suas funções, fixado em 60 stērs[64] ou 240 drahms[65], quantia mantida em usufruto até que os menores alcancem a maioridade ou as mulheres sejam desposadas.
3.6. Se o gumārdag causar prejuízos financeiros ou negligenciar seus deveres, sua nomeação poderá ser revogada, e ele será substituído por outro guardião mais competente. Neste caso, os juízes ou a assembleia familiar devem atuar rapidamente para assegurar que a proteção da família seja restabelecida.
3.7. Em circunstâncias onde não haja nenhum parente próximo disponível para assumir a tutela, a viúva sobrevivente tem o direito de delegar a stūrīh (procuração) de seu falecido marido a um indivíduo de sua escolha, assegurando que a família permaneça sob a proteção de um guardião capaz.
3.8. Se a viúva também falecer sem deixar um testamento, ou se ela se desviar dos preceitos da fé, tornando-se apóstata[66], os santos e sagrados Magi (magos), e a stūr será exercida no Templo do Fogo da cidade.
DA RESPONSABILIDADE COLETIVA E DO PAPEL DA COMUNIDADE
4.1. Quando todas as outras formas de stūrs falharem, seja por falta de parentes ou pela recusa dos designados em assumir a responsabilidade, a comunidade tem o dever sagrado de intervir, nomeando um gumārdag que será responsável pelo cuidado e proteção dos desamparados.
4.2. Esta responsabilidade coletiva assegura que nenhum membro da comunidade seja deixado à mercê do destino, sem proteção ou amparo. A nomeação de um guardião é um ato de caridade e justiça, conforme ordenam os preceitos de Ahura Mazda.
4.3. Os cidadãos da comunidade devem reunir-se para escolher um guardião que seja digno e capaz, supervisionando suas ações e assegurando que ele cumpra com seus deveres de forma justa e honrada. A ō hamsālārīh (supervisão conjunta) garante que a stūr seja exercida em benefício de todos os membros da família.
4.4. Se não houver parentes paternos e se a família materna for incapaz de escolher um guardião, a decisão final recairá sobre os juízes, que devem nomear um gumārdag com base em seu discernimento e sabedoria, assegurando que a lei seja cumprida e que a justiça prevaleça." [67]
Os persas também já possuíam um sistema complexo de filiação, dividido em legítima (persa: Pādixšāyīhā), adotiva (persa: Padīriftag), substitutiva (persa: Pad dūdag zād), ilegítima (persa: Anēr) e não-livre (persa: Ag-dēn) (MĀDAYĀN, 1997).
A filiação substitutiva dizia respeito ao levirato, mas também a barriga solidária, prática regulamentada pela lei aquemênida, onde a irmã da esposa infértil engravidava e gerava um filho para ela, sem que a criança fosse considerada filho da gestante e sem estabelecer concubinato com o cunhado. O procedimento de adoção entre os persas era administrativo e religioso, e havia igualdade entre o filho natural e o adotivo:
"CAPÍTULO XVIII - DA IGUALDADE DE DIREITOS ENTRE OS FILHOS ADOTADOS E OS LEGÍTIMOS
DA IGUALDADE ENTRE OS FILHOS
1.1. Que seja estabelecido por este edito, e inscrito nas tábuas da lei, que toda criança adotada por um homem ou uma mulher deste reino gozará dos mesmos direitos e prerrogativas que os filhos legítimos, sem distinção de sangue ou origem. Em todas as hambāyīh (alianças) firmadas entre pais e filhos adotivos, estes deverão ser considerados como descendentes legítimos, com plenos direitos de participação e propriedade.
1.2. Os pus ī padīriftag (filhos adotivos) e as duxt ī padīriftag (filhas adotivas) gozarão de igualdade perante a lei no que diz respeito à herança e à sucessão de bens. Tal igualdade estende-se a todos os legados, concessões e doações que o pai adotivo destine a seus pādixšāyīhā (filhos de sangue). Que nenhum herdeiro ou conselheiro do falecido possa contestar essa partilha, sob pena de punição e desonra perante a corte.
1.3. A aplicação desta igualdade legal, contudo, está sujeita à condição de que o filho adotivo tenha atingido a idade e a capacidade de assumir as responsabilidades que lhe são conferidas por este status. Caso o filho adotivo venha a falecer antes de alcançar tal maturidade, a sua herança reverterá para a sua família natural, conforme prescrito no Mādayān, parte primeira, e devidamente confirmado pelos sábios.
DA ADOÇÃO DE FILHAS
2.1. Seja conhecido que, se uma filha foi dada em adoção por seu pai natural, ela terá direito a herdar dos seus pais adotivos, assim como um filho de sangue. Tal direito, porém, não se estenderá a uma filha adotiva que seja bandag paristār (escrava), ag-dēn (não-livre), ou anēr (ilegítima), visto que estas condições invalidam o direito de herança, conforme estabelecido pelos costumes e leis do reino desde os tempos antigos.
2.2. Além disso, se uma filha for dada em adoção parcial, nenhuma das partes envolvidas poderá transferir ou renegociar a adoção sem o consentimento expresso da outra parte. Este acordo deve ser registrado publicamente, e qualquer tentativa de violação do mesmo será considerada uma transgressão grave, sujeita a sanções severas.
2.3. Se, por qualquer razão, o pai adotivo desejar renunciar à adoção, ele deverá fazê-lo de acordo com as disposições legais, mediante consulta com os sábios e com o consentimento da mãe adotiva, se esta ainda estiver viva. A renúncia deve ser registrada e testemunhada por notáveis locais para garantir a sua legitimidade.
DA ADOÇÃO FINANCEIRA
3.1. Em tempos de extrema necessidade, como quando o pai ou mãe se vejam ameaçados por indigência ou morte iminente, a lei permite, por exceção, que o pai possa vender sua esposa e seus filhos menores, sejam eles legítimos ou adotivos. Esta ação, no entanto, deve ser considerada apenas como último recurso, e a sua execução está sujeita à aprovação dos anciãos e sábios do reino, para evitar abusos e injustiças.
3.2. O pai ou a mãe que se encontrarem em tal estado de pobreza terão o direito de renunciar à sua posição como stūr (guardião), caso não possam mais cumprir suas obrigações. Esta renúncia, porém, deve ser formalizada perante um tribunal de justiça, e as responsabilidades de tutela deverão ser transferidas para um parente próximo ou um guardião nomeado pelo tribunal.
3.3. Se um pai ou mãe pādixšāyīhā vier a encontrar-se em situação de extrema necessidade, os filhos, legítimos ou adotivos, serão obrigados a prover para o seu sustento, conforme os mandamentos da lei. Negligenciar tal obrigação será considerado uma grave violação dos deveres filiais e será punido severamente, de acordo com as leis do reino.
DOS EFEITOS DA ADOÇÃO
4.1. Na morte do pai adotivo, um filho menor será considerado, por todos os efeitos legais, como descendente direto do falecido, e terá direito à sua herança e à proteção legal como qualquer filho legítimo. Contudo, a gestão de seus bens e responsabilidades deverá ser confiada a um tutor designado, até que o filho menor atinja a idade apropriada para assumir seus direitos e deveres.
4.2. Um filho adotivo que tenha atingido a maturidade e capacidade plena será o legítimo sucessor de seu pai adotivo, carregando seu nome e linhagem. Em caso de disputa, o tribunal deverá garantir que a vontade do falecido seja respeitada, considerando todas as evidências e testemunhos pertinentes.
4.3. Quando um pai ou mãe, sendo senhor ou senhora de uma casa sem descendência masculina, adotar um filho, tal ação será considerada como suficiente para evitar a necessidade de stūrīh. O filho adotivo será então reconhecido como um dos quatro sālār ī būdag (guardião por direito) da família, com plenos direitos e responsabilidades.
JURISPRUDÊNCIA DOS SÁBIOS
5.1. Apesar da prática comum desde os tempos antigos, o jurisconsulto Mardag sustentou que um filho adotivo só poderia ser elegível para a stūr da família ou para assumir o stūrīh do Kadag-xwadāy (chefe da família) na ausência de parentes próximos da família paterna. Este parecer, embora não seja a visão predominante dos sábios, deve ser respeitado e considerado em casos específicos onde as circunstâncias o justifiquem, assegurando que a justiça seja feita conforme as leis e os costumes do reino." [68]
Um grande destaque na legislação persa é a existência do Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, contido nas leis que ordenavam o cuidado mútuo dos pais e mães com os filhos, mas também a ordem de que a comunidade também prezasse pelo bem-estar dos menores e impedisse qualquer injustiça de ser cometida contra os infantes pelos seus pais ou terceiros (PALMA, 2022).
As garotas possuíam uma proteção ainda mais especial, sendo vedada qualquer prática de violência sexual ou abuso físico por quaisquer parentes. Havia também a garantia do bem de família (persa: Xwāstag), mas revertido em benefício das crianças e adolescentes, sendo vedada a alienação e a penhora do imóvel enquanto persistisse a menoridade dos filhos (MĀDAYĀN, 1997).
O ordenamento jurídico persa era o único no mundo antigo que promovia a igualdade entre os filhos, com exceção dos ilegítimos e não-livres, que possuíam tratamento igual somente no tratamento familiar, mas eram excluídos da sucessão. Apesar dos homens sucederem os pais nas obrigações familiares ante a ausência ou morte, a filha mais velha (persa: Dādestān-duxt) era legitimada a quitar essas obrigações familiares que eram atinentes ao patriarca, contudo, se ela possuísse um filho homem maior (a maioridade na Pérsia era 16 anos para os homens), ele é quem sucederia seu avô na liderança da família, devendo se casar imediatamente, seguindo o esquema incestuoso da Khwēdōdah (MĀDAYĀN, 1997).
É importante destacar que as leis persas eram somente para os povos iranianos (persas, medos, partos, bactrianos, etc.) e para quem fosse zoroastrista, os demais povos sob a autoridade aquemênida – como os judeus, assírios, indianos e gregos – eram permitidos a observar suas leis nativas e códigos, contudo, havia uma exceção aos egípcios e citas, pois, durante o governo do Shahanshah Cambises II o Déspota (r. 530 – 522 a.C.), seus sistemas legais foram abolidos e a lei persa era única que poderia viger nessas províncias (REINKE, 2019).
Mesmo Cambises morrendo e sendo sucedido por imperadores mais complacentes, o Direito Administrativo persa impedia a revogação de decretos imperiais outorgados por um Shahanshah mesmo que pelos seus sucessores, assim os egípcios e citas eram os únicos não-iranianos que eram obrigados a seguir e obedecer às leis persas.
Uma reforma política e judicial foi planejada pelo Shahanshah Dario III Codomano (r. 336 – 330 a.C.), mas não ela sequer saiu do papel, pois o imperador precisava lidar com o desembarque do exército macedônico na Ásia, e na assustadora campanha que o Príncipe da Macedônia estava realizando em seu território (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Os persas foram derrotados em 333 a.C. pelos soldados macedônios, e o Império Aquemênida agora era parte do Império Macedônico de Alexandre, o Grande (r. 336 – 323 a.C.), que permitiu que as leis persas continuassem a ser observadas pelos zoroastristas e pelos iranianos.
O Direito de Família antigo se destaca pela possibilidade de resoluções administrativas dos litígios, se desviando da morosidade da intervenção judicial, o que foi possibilitado pelo surgimento da classe dos notários de direito civil (PALMA, 2022).
Diferente dos notários de direito público, cujas funções eram restritas ao registro público, os notários de direito civil eram escribas que atuavam no direito privado não contencioso, redigindo instrumentos de título extrajudicial executivos para legitimar atos ou resolver os conflitos entre as partes, como casamento, adoção, divórcio e guarda de crianças. Esses profissionais eram encontrados em todos os Estados antigos, mas sua atuação era mais ampla entre os sumérios, egípcios e persas, e são considerados os precursores da advocacia privada.
A tipologia dos procedimentos judiciais familiaristas na antiguidade era primordialmente oral, mas a escrita desempenhou um papel fundamental no registro das informações processuais pelos juízes ou julgadores da nobreza ou sacerdócio, surgindo também a figura dos escrivães, escribas que registravam os atos processuais com a finalidade de dar perpetuidade às sentenças e transformar as decisões judiciais em precedentes jurisprudenciais.
A combinação dos procedimentos orais com o escrito trouxe uma base do que o processo é hoje, ainda que a oralidade persistisse entre os povos de organização judiciária tribal como preferencial ao procedimento escrito. Tanto a via administrativa com os notários como na via judicial com os juízes, nobres e sacerdotes, o procedimento oral era o que impulsionava o processo, mas o procedimento escrito era o que testificava sua tramitação e finalidade, fosse a redação do título executivo ou da sentença.
2.6. O Direito de Família Védico
A Índia é um dos lugares da Ásia cuja a religião é uma das mais antigas do mundo, e cujo ordenamento jurídico passou a maior parte da história atrelado à Religiões Védicas, sendo elas o Hinduísmo, a religião majoritária dos indianos até hoje, e o Jainismo, até ascensão do Budismo no século IV a.C. e sua gradual evolução até o colapso com a chegada dos conquistadores muçulmanos na Idade Média (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
O Direito de Família hindu já era praticado como costume jurídico nas comunidades, até que em por volta de 1.250 a.C. foi compilado no Reino Védico (localizado no norte da Índia) o Manusmṛti (sânscrito: “Código de Manu”), o primeiro texto legal promulgado na região (LAGES, 2010). A tradição védica afirma que ele foi criado por Swayambhuva Manu, o primeiro ser humano criado por Brahma, a maior divindade do panteão védico na época até sua substituição por Shiva no século VI a.C. com a invasão ariana.
Organizado em artigos apenas em 123 da nossa era, no reinado do imperador kushan Vima Kadphises (r. 113 – 127) e em livros e capítulos pelos indo-sassânidas em 623, seu conteúdo foi organizado baseado no Madayan iraniano, ganhando um Livro (sânscrito: Adhyayas) dedicado somente ao Direito de Família:
"LIVRO NONO
XIX - DOS DEVERES DO MARIDO E DA MULHER
Art. 418º Eu vou declarar os deveres imemoriais de um homem e de uma mulher, que ficam firmes no caminho legal, quer separados, quer reunidos.
Art. 419º Dia e noite, as mulheres devem ser mantidas num estado de dependência por seus protetores; e mesmo quando elas têm demasiada inclinação por prazeres inocentes e legítimos, devem ser submetidas por aqueles de quem dependem à sua autoridade.
Art. 420º Uma mulher está sob a guarda de seu pai, durante a infância, sob a guarda de seu marido durante a juventude, sob a guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais se conduzir à sua vontade.
Art. 421º Um pai é repreensível se não dá sua filha em casamento no tempo conveniente; um marido é repreensível, se não se aproxima de sua mulher na estação favorável; depois da morte do marido, um filho é repreensível se não protege sua mãe.
Art. 422º Deve-se sobretudo cuidar e garantir as mulheres das más inclinações, mesmo as mais fracas; se as mulheres não fossem vigiadas, elas fariam a desgraça de suas famílias.
Art. 423º Que os maridos, por mais fracos que sejam, considerando que é uma lei suprema para todas as classes, tenham grande cuidado de velar pela conduta de suas mulheres.
Art. 424º Com efeito, um marido preserva sua linhagem, seus costumes, sua família, a si próprio e seu dever, preservando sua esposa.
Art. 425º Um marido, fecundando o elo de sua mulher, nela renasce sob a forma de um feto e a esposa é chamada Diaya, porque seu marido nasce nela uma segunda vez.
Art. 426º Uma mulher põe sempre no mundo um filho dotado das mesmas qualidades que aquele que o engendrou; eis porque, a fim de assegurar a pureza de sua linhagem, um marido deve guardar sua mulher com atenção.
Art. 427º Ninguém chega a manter as mulheres no dever por meios violentos; mas consegue-se perfeitamente isto com o socorro dos expedientes que seguem.
Art. 428º Que o marido designe para função à sua mulher a receita das rendas e despesa, a purificação dos objetos e do corpo, o cumprimento de seu dever, a preparação do alimento e a conservação dos utensílios do lar.
Art. 429º Encerrada em sua casa, sob a guarda de homens fiéis e decididos, as mulheres não estão em segurança; só estão completamente em segurança aquelas que se guardam a si mesmas por sua própria vontade.
Art. 430º Beber licores inebriantes, frequentar má companhia, separar-se de seu esposo, correr de um lado e de outro, entregar-se ao sono em hora indevida e ficar em casa de outra, são seis ações desonrosas para mulheres casadas.
Art. 431º Tais mulheres não examinam a beleza, não consultam a idade; que seu amante seja belo ou feio, pouco importa; é um homem e elas o gozam.
Art. 432º por causa de sua paixão pelos homens, da inconstância de seu humor e da falta de afeição que lhes é natural, escusado, é, aqui em baixo, guardá-las com vigilância, eles são infiéis a seus esposos.
Art. 433º Conhecendo assim o caráter que lhes foi dado no momento da criação pelo Senhor das Criaturas, que os maridos prestem a maior atenção em vigiá-las.
Art. 434º Manu deu em partilha às mulheres o amor do seu leito, de sua residência e do enfeite, a concupiscência, a cólera, as más inclinações, o desejo de fazer mal e a perversidade.
Art. 435º Nenhum sacramento é, para as mulheres, acompanhado de orações, como prescreveu a lei; privadas do acontecimento das leis e das orações expiatórias, as mulheres culpadas são a falsidade mesma; tal é a regra estabelecida.
Art. 436º Com efeito, se lê nos Livros Santos muitas passagens que demonstram seu verdadeiro natural; conhecei agora as dos Textos Sagrados que podem servir de expiação.
Art. 437º Este sangue que minha mãe, infiel ao seu esposo, maculou indo a casa de um outro, que meu pai o purifique! Tal é o teor da fórmula sagrada que deve recitar o filho, que conhece a falta de sua mãe.
Art. 438º Se uma mulher pode conceber em seu espírito um pensamento qualquer prejudicial a seu esposo, essa oração tem sido declarada a expiação perfeita dessa culpa pelo filho e não pela mãe.
Art. 439º Quaisquer que sejam as qualidades de um homem ao qual uma mulher se uniu por um casamento legítimo, ela adquire essas qualidades, do mesmo modo que o rio por sua união com o oceano.
Art. 440º Aksmala, mulher de baixo nascimento, sendo unida a Vasishtha e Sarangi sendo unida a Mandapala, obtiveram uma posição muito honrosa.
Art. 441º Essas mulheres e outras igualmente de baixa extração, chegam do mundo à elevação, pelas virtudes de seus senhores.
Art. 442º Tais são as práticas sempre puras da conduta civil do homem e da mulher; aprendei as leis que concernem às crianças e das quais depende a felicidade neste mundo e no outro.
Art. 443º As mulheres que se unem a seus esposos no desejo de ter filhos, que são perfeitamente felizes, dignas de respeito e que fazem a honra de suas casas, são verdadeiramente as deusas da fortuna; não há diferença.
Art. 444º Dar à luz a filhos, criá-los quando eles têm vindo ao mundo, ocupar-se todos os dias dos cuidados domésticos; tais são os deveres das mulheres.
Art. 445º Só das mulheres procedem os filhos, o cumprimento dos deveres piedosos, os cuidados diligentes, o mais delicioso prazer e o céu para os Manes dos antepassados e para o próprio marido.
Art. 446º Aquele que não atraiçoa seu marido e cujos pensamentos, palavras e corpo são puros, chega depois da morte à mesma morada que seu marido e é chamada virtuosa pelas pessoas de bem.
Art. 447º Mas por uma conduta culpada com seu esposo, uma mulher é, neste mundo exposto à ignomínia; depois de sua morte, ela renascerá no ventre de um chacal e será atormentada de moléstias como a consunção pulmonar e a elefantíase.
Art. 448º Conhecei agora, relativamente aos filhos, essa lei salutar que concerne a todos os homens, e que tem sedo declarada pelos sábios e pelos Maharkis, nascidos desde o princípio.
Art. 449º Eles reconhecem o filho masculino como o filho do senhor da mulher; mas a Escritura Santa apresenta, relativamente ao senhor, duas opiniões: segundo uns, o senhor é aquele que engendrou o filho; segundo outros, é aquele a quem pertence a mãe.
Art. 450º A mulher é considerada pela lei, como o campo, o homem como a semente; é pela cooperação do campo e da semente que tem lugar o nascimento de todos os seres animados.
Art. 451º Em certos casos o poder prolífico do macho tem uma importância especial; em outros casos é a mãe da fêmea; quando há igualdade nos poderes, a raça que daí provém é muito estimada.
Art. 452º Se se compara o poder procriador masculino com o poder feminino, o macho é declarado superior porque a progenitura de todos os seres animados é distinta pelos sinais do poder masculino.
[...]
Art. 462º Só é um homem perfeito, o que se compõe de três pessoas reunidas: sua própria esposa, ele e seu filho; e os Brâmanes têm declarado esta máxima: o marido faz com sua esposa uma mesma pessoa.
Art. 463º Uma mulher não pode ser libertada da autoridade de seu marido, nem por venda nem por abandono; nós reconhecemos assim a lei outrora promulgada pelo Senhor das Criaturas.
Art. 464º Uma só vez é feita a partilha de uma sucessão; uma só vez a rapariga é dada em casamento; uma só vez o pai diz: eu a concedo; tais são as três coisas que, para as pessoas de bem, são feitas uma vez por todas.
Art. 465º O proprietário do macho que engendrou com vacas, jumentas, camelas, raparigas, escravas, búfalas, cabras e ovelhas, não tem nenhum direito à primogenitura: a mesma coisa tem lugar para as mulheres dos outros homens.
Art. 466º Aqueles que não possuem campo, mas que têm sementes e vão atirá-la na terra de outrem, não percebem nenhum proveito do grão que germinar.
[...]
Art. 473º Eu vos tenho declarado a importância e a não importância do campo e da semente; agora vou expor as lei sobre as mulheres que não têm filhos.
Art. 474º A mulher de um irmão mais velho é considerada como a sogra de um irmão mais moço e a mulher do mais novo como a nora do mais velho.
Art. 475º O irmão mais velho, que conhece carnalmente a mulher de seu irmão moço e o irmão moço a de seu mais velho irmão, são degradados, ainda que tenha sido a isso convidados pelo marido ou por parentes, a menos que o casamento seja estéreo.
Art. 476º Quando não se tem filhos, a progenitura que se deseja pode ser obtida pela união da esposa, convenientemente autorizada, com um irmão ou com um outro parente.
Art. 477º Regado de manteiga líquida e guardando silêncio, que o parente encarregado desse ofício, se aproximando durante a noite de uma viúva ou de uma mulher sem filhos, engendre um só filho, mas nunca um segundo.
Art. 478º Alguns daqueles que conhecem esta questão, se fundando em que o fim dessa disposição pode não ser perfeitamente atingido pelo nascimento de um só filho, são de parecer que as mulheres podem legalmente engendrar dessa maneira um segundo filho.
Art. 479º O objeto dessa comissão, uma vez obtida segundo a lei, que as duas pessoas, o irmão e a cunhada se comportem, uma para a outra, como pai e nora.
Art. 480º Mas, um irmão, quer o mais velho, quer o mais moço, que encarregado de cumprir esse dever, não observa a regra prescrita, e só pensa em satisfazer seus desejos, será degradado nos dois casos, se é o mais velho, como tendo maculado o leito de sua nora; se é o novo, o de seu pai espiritual.
Art. 481º Uma viúva ou uma mulher sem filho, não deve ser autorizada por Dvijas a conceber pelo fato de outro; porque aqueles que lhe permitem conceber por fato de outro, violam a lei primitiva.
Art. 482º Não há questão de maneira alguma de uma tal comissão nas passagens da Escritura Santa, que tem relação com o casamento, e nas leis nupciais não se disse que uma viúva pudesse contratar uma outra união.
Art. 483º Com efeito, essa prática que só convém aos animais, tem sido censurada pelos Brâmanes instruídos; entretanto, ela se diz ter tido curso entre os homens, sob o reinado de Vena.
Art. 484º Este rei, que reuniu outrora toda a terra sob seu domínio e que foi considerado, por causa disso somente, o mais distinto dos rajarsi, tendo o espírito perturbado pela concupiscência, fez nascer a mistura das classes.
Art. 485º Desde esse tempo as pessoas de bem censuram o homem que, por desvio, convida uma viúva ou uma mulher estéreo a receber as carícias de um outro homem para ter filhos.
Art. 486º Todavia, quando o marido de uma rapariga vem a falecer, após os esponsais, que o próprio irmão do marido a tome por mulher, segundo a regra seguinte:
Art. 487º Depois de haver desposado, segundo o rito, essa rapariga, que deve ser vestida de uma roupa branca e pura em seus costumes, que sempre ele se aproximo dela uma vez na estação favorável até que ela tenha concebido.
Art. 488º Que um homem de senso, depois de ter concebido sua filha a alguém, não resolva dá-la a um outro; porque dando sua filha quando já a tenha concebido, é tão culpado quanto aquele que deu um falso testemunho em negócio relativo a homem.
Art. 489º Mesmo depois de tê-la desposado regularmente, deve um homem abandonar uma rapariga que tenha sinais funestos, ou moléstias, ou poluída ou que o tenham feito tomá-la por fraude.
Art. 490º Se um homem dá em casamento uma filha tendo qualquer defeito, sem prevenir coisa alguma, o esposo pode anular o ato do mau que lhe concedeu essa rapariga.
Art. 491º Quando um marido tem negócio em país estrangeiro, que ele só se ausente, depois de ter segurando à sua mulher meios de subsistência; porque uma mulher, ainda que virtuosa, atormentada pela miséria, pode cometer uma falta.
Art. 492º Se, antes de partir, seu marido lhe deu com que subsistir, que ela viva tendo uma conduta austera; se ele não lhe deixou nada, que ela ganhe sua vida exercendo um ofício honesto, como o de fiar.
Art. 493º Quando seu marido tenha partido para cumprir um dever piedoso, que ela o espere durante oito anos; quando ele se ausentou por motivo de ciência ou de glória, que ela o espere durante seis anos; por seu prazer, durante três anos somente; depois desse termo, que ela vá encontrá-lo.
Art. 494º Durante um ano inteiro, que o marido suporta a aversão de sua mulher, mas, depois de um ano, se ela continua a odiá-lo, que ele tome o que ela possui em particular, lhe dê somente o que subsistir e vestir-se, e deixe de habitar com ela.
Art. 495º A mulher que despreza um marido, apaixonada pelo jogo, gostando dos licores alcoólicos, ou atormentada de uma moléstia, deve ser abandonada durante três meses e privada de seus enfeites e de seus móveis.
Art. 496º Mas, aquela que tem aversão por um marido insensato ou culpado de grandes crimes, ou eunuco ou impotente, ou atormentado de elefantíase ou de consunção pulmonar, não será abandonada nem ser privada de seu bem.
mulher dada aos licores inebriantes, tendo maus costumes, sempre em contradição com seu marido, atacada de uma moléstia incurável, como a lepra, ou de um gênio mau e dissipa seu bem, deve ser substituída por outra mulher.
Art. 498º Uma mulher estéril deve ser substituída no oitava ano; aquela cujos filhos têm morrido, no décimo; aquela que só põe no mundo filhas, no undécimo; aquela que fala com azedume, imediatamente.
Art. 499º Mas, aquele que, embora doente, é boa e de costumes virtuosos, não pode ser substituída por outra, senão por seu consentimento e não deve jamais ser tratada com desprezo.
Art. 500º A mulher substituída legalmente, que abandona com cólera a casa de seu marido, deve no mesmo instante ser detida ou repudiada em presença da família reunida.
Art. 501º Aquela que depois de ter recebido a proibição, bebe em uma festa licores inebriantes, ou frequenta os espetáculos e as assembleias, será punida com multa de seis krishnalas.
Art. 502º Se Dvijas tomam mulheres em sua própria classe e nas outras, a procedência às considerações e ao alojamento devem ser regulados conforme a ordem das classes.
Art. 503º Para todos os Dvijas, uma mulher da mesma classe e não de uma classe diferente, deve ocupar-se dos cuidados oficiosos que respeitam à pessoa do marido, e cumprir os atos religiosos de cada dia.
Art. 504º Mas, aquele que, levianamente, faz cumprir seus deveres por uma mulher de sua classe, em todo tempo tem sido considerado como um Cháudala, engendrado por um Brâmane e um Sudra.
Art. 505º É a um mancebo distinto, de exterior agradável e da mesma classe, que um pai deve dar sua filha em casamento, segundo a lei, embora ela não tenha chegado ainda à idade de oito anos em que a devam casar.
Art. 506º ë preferível, para uma senhorita, em idade de ser casada, ficar na casa paterna até sua morte, do que ser dada por seu pai a um esposo desprovido de boas qualidades.
Art. 507º Que uma rapariga, ainda que núbil, espere durante três anos; mas depois desse termo, ela escolha um marido da sua classe.
Art. 508º Se uma rapariga, não sendo dada em casamento, toma, motu próprio, um marido, ela não comete nenhuma falta, nem aquele que ela vai procurar.
Art. 509º A senhorita que escolheu um marido não deve levar consigo os enfeites que ela recebeu de seu pai, de sua mãe ou de seus irmãos; se ela os leva, comete um furto.
Art. 510º Aquele que desposa uma rapariga núbil não dará gratificação ao pai; porque o pai perdeu toda autoridade sobre a filha, retardando para ela o momento de se tornar mãe.
Art. 511º Um homem de trinta anos deve desposar uma rapariga de doze que lhe agrade; um de vinte e quatro, uma de oito; se ele acabou antes seu noivado, para que o cumprimento de seus deveres de dono da casa não seja retardado, que ele se case logo.
Art. 512º Quando mesmo tome o marido uma mulher, que lhe é dada pelos Deuses e para a qual ele não tem inclinação, deve sempre protegê-la, se ela é virtuosa; a fim de agradar aos Deuses.
Art. 513º As mulheres foram criadas para dar à luz os filhos, e os homens para gerá-los; por consequência, obrigações comuns que devem ser cumpridas pelo homem em conjunto com a mulher, são ordenadas no Vedas.
Art. 514º Se uma gratificação foi dada para obter a mão de uma senhorita e se o pretendente vem a falecer antes da consumação do casamento, a senhorita deve ser casada com o irmão do pretendente, quando ela nisso concorde.
Art. 515º Um Sudra mesmo não deve receber gratificação dando sua filha em casamento; porque o pai que recebe uma gratificação, vende sua filha de maneira tácita.
Art. 516º Mas, o que as pessoas de bem, antigas e modernas, nunca fizeram, foi, depois de haver prometido uma rapariga a alguém, dá-la a outrem.
Art. 517º E mesmo nas criações precedentes, nunca ouvimos falar que houvesse venda tácita de uma rapariga, por meio de um pagamento chamado gratificação, feita por um homem de bem.
Art. 518º Que uma fidelidade mútua se mantenha até a morte, tal é, em suma, o principal dever da mulher e do marido.
Art. 519º Eis porque um homem e uma mulher unidos por casamento devem se abster de viver desunidos e faltar à fé um do outro.
Art. 520º O dever cheio de afeição do homem e da mulher acaba de ser declarado, assim como o meio de ter filhos, em caso de esterilidade do casamento; aprendei agora como se deve fazer a partilha de uma sucessão." [69]
O Código de Manu demonstra como a família no ordenamento jurídico védico é extremamente patriarcal, com consequências negativas para as mulheres:
"As mulheres eram condicionadas pela sociedade hindu a se casarem muito cedo, muitas vezes ainda na infância. Essa prática ocorre ainda hoje, principalmente no interior do País, não obstante a interdição legal (Child Marriage Restraint Act, 1929) quanto ao feito: Um homem de trinta anos deve desposar uma rapariga de doze que lhe agrade; um de vinte e quatro, uma de oito; se ele acabou antes seu noivado, para que o cumprimento de seus deveres de dono da casa não seja retardado, que ele se case logo (art. 511)
[...]
No passado, a Lei de Manu só amparava a mulher em situações extraordinárias. Na maioria das vezes, ela se sujeitava totalmente aos desmandos emanados de qualquer figura masculina dentre os membros de sua parentela." [70]
É perceptível que o Direito de Família védico é permeado pelo Sistema de Castas (sânscrito: Varna), que se dividia em Brâmanes, Kshatryas (Xátrias), Vaishyas (Vaixás) e Sudras, além dos Dalits, que eram párias sem direito algum (LAGES, 2010). O Manusmṛti garantia o casamento, filiação, poder familiar e sucessão apenas aos que possuíssem Varna, ao passo que os Dalits não poderiam se casar e ter acesso ao Direito de Família hindu, pois eram considerados mero pó dos pés de Brahma.
O Código de Manu passou por inúmeras alterações, principalmente pela troca cultural com o Zoroastrismo e o Budismo com as invasões persas e gregas na Índia, mas as maiores mudanças foram trazidas pelo domínio islâmico, que durou 700 anos e suprimiu boa parte do sistema de castas no subcontinente indiano (LAGES, 2010).
O Direito de Família védico passou por muitas regulamentações legais conforme a Índia ia sendo dominada por diferentes estados, sendo as principais mudanças trazidas pelos britânicos quando toda a Índia foi transformada em colônia, principalmente proibindo o casamento entre crianças e permitindo o divórcio direto e imotivado (PALMA, 2022).
Mesmo tendo boa parte de seu texto revogado tacitamente ao longo dos séculos, o Código de Manu é observado ainda hoje pelas comunidades hindus e jains na Índia, onde a Constituição Federal Indiana de 1950 recepcionou o Manusmṛti como Lei Ordinária até ser inteiramente revogado pela promulgação do Código Civil Indiano, mas por ser um país de Common Law (por influência do Reino Unido), foi colocado totalmente ao controle constitucional difuso pela jurisprudência da Suprema Corte Indiana (PALMA, 2022).
Contudo, até hoje a Congresso Indiano ainda não propôs um Código Civil unificado – o único existente é o Código Civil de Goa de 1837, outorgado pelos portugueses quando a cidade indiana estava incorporada ao seu império ultramarino –, de forma que o Código de Manu é aplicado como se fosse o Código de Direito Privado entre os hindus e jains, mas com os dispositivos discriminatórios abolidos pelo texto constitucional indiano (PALMA, 2022). O Manusmṛti é um dos três textos legais da Antiguidade (ao lado da Torah e da Mishnah) em vigor no Século XXI, portanto seu Direito de Família é um dos mais antigos vigentes.
2.7. O Direito de Família Grego
No Ocidente, o direito que daria origem ao nosso sistema jurídico em Direito de Família era o dos gregos, que construíram uma das civilizações mais organizadas na Europa durante o século V a.C. (REINKE, 2019). Em contraste com os Estados Orientais contemporâneos, a Grécia não era unificada e tampouco possuía um único sistema legal, cada Cidade-Estado possuía um governante ou uma liga com um dirigente em comum, consequentemente, formando vários Direitos de Família (ROSA, 2021). Os mais conhecidos são os de Atenas, Esparta, Tebas, Corinto e Gortina, cidades que promulgaram códigos e estatutos legais que tinham previsão acerca do Direito de Família grego.
As primeiras Constituições promulgadas no âmbito da democracia ateniense pelos Arcontes Draco (gov. 625 – 600 a.C.) e Sólon (gov. 594 – 560 a.C.), cuja Constituição regulamentou o Direito de Família e também o Direito das Sucessões, conforme os registros do historiador e filósofo grego Plutarco (fl. 46 – 120) na sua obra Vidas Paralelas:
"13.4-5: Na verdade, todo o povo estava endividado para com os ricos. É que ou cultivavam a terra e entregavam a estes a sexta parte do produto obtido — pelo que eram chamados hektemorioi[71] e thetes[72] — ou então contraíam dívidas, sob garantia pessoal, e ficavam sujeitos à escravidão pelos credores; uns levavam ali mesmo existência de servidão, outros eram vendidos para o estrangeiro. Muitos chegavam mesmo a ser forçados a traficar os próprios filhos (nenhuma lei o proibia) e a fugir da cidade, tal a dureza dos credores.
[...]
20.2-5: Parece igualmente estranha e ridícula a lei que permite à epikleros[73], quando o homem de quem ela depende e é seu kyrios[74] por lei se revela impotente, unir-se aos parentes mais próximos do marido. Também esta lei está correcta, na opinião de alguns, para os que forem impotentes, pois casaram com as epikleroi somente por causa dos bens e, ao abrigo da lei, contrariaram a natureza. Na verdade, ao verem que a epikleros pode unir-se com quem lhe aprouver, ou renunciarão ao casamento ou com vergonha o manterão, sofrendo a pena por essa avidez e descaro. Além disso, tem-se por bem que a epikleros se junte não a todos, mas àquele que, entre os parentes do marido, ela prefira, de forma que a coisa se mantenha em família e a prole pertença à mesma raça. Para o mesmo fim contribui também que a esposa se feche no quarto com o esposo, depois de ter comido um marmelo, e que o marido da epikleros se encontre com ela ao menos três vezes por mês. Pois, mesmo que não nasçam filhos, ainda assim este é um gesto de respeito e de amizade do marido para com uma mulher honesta, que evita, de cada vez, a acumulação de contrariedades e não deixa que, por causa das discussões, se instale um total abandono.
[...]
22.1: Constatou que a cidade se enchia de forasteiros que não paravam de afluir de todos os lados, atraídos pela segurança da Ática. Porém, como a maior parte da terra era improdutiva e de baixa qualidade e, para mais, os que se dedicam ao comércio marítimo geralmente nada trazem a quem nada tem a oferecer, Sólon exortou os cidadãos a aprenderem um ofício; além disso, escreveu uma lei, segundo a qual o filho deixava de ter obrigação de alimentar o pai que lhe não tivesse ensinado um mester.
[...]
21.3-4: Contribuiu também para a sua reputação a lei relativa aos testamentos; na verdade, anteriormente não havia a possibilidade de fazer testamento e os bens e a casa tinham de permanecer na família do falecido. Sólon, ao deixar transmitir a quem se desejasse os próprios bens, na condição de se não ter filhos, privilegiou a amizade sobre o parentesco e o afecto sobre a necessidade, fazendo com que os bens fossem verdadeiramente propriedade de quem os possui. Em todo o caso, não permitiu a prática indiscriminada e aleatória de doações, mas somente quando não fossem feitas sob o efeito da doença, de drogas, de prisão ou por coacção ou ainda por instigação de uma mulher.
[...]
22.4: Ainda mais severa é aquela cláusula que dispõe que os filhos nascidos de uma prostituta não tenham sequer a obrigação de manter os pais, tal como referiu Heráclides Pôntico. Na verdade, um homem que, no casamento, descura a dignidade deixa claro que, ao ligar ‑se a uma mulher, o faz não por causa dos filhos mas à conta do prazer, pelo que obtém a sua paga e não lhe fica o direito de se pronunciar sequer em relação aos filhos, cujo nascimento representa, em si mesmo, uma afronta.
[...]
23.1: E se prostituir a mulher livre, paga a multa de vinte dracmas, com excepção daquelas que ostensivamente andam para cima e para baixo, referindo-se às rameiras: estas, na verdade, buscam às claras quem lhes ofereça dinheiro.
23.2: Além disso, não permite a ninguém vender as filhas ou irmãs, a não ser que se descubra que estiveram com um homem e já não sejam virgens.
[...]
23.53: Se alguém comete um homicídio sem intenção durante os jogos ou abate um atacante na estrada ou na guerra, por engano, ou ao apanhar um adúltero em flagrante com a esposa ou com a mãe ou com a irmã ou com a filha ou com a concubina, que tomara para ter filhos livres, em casos destes o homicida não será exilado.
[...]
43.51: Quem falecer sem ter feito testamento, se deixar filhas a herança será para elas; se as não tiver, herdarão os bens os seguintes parentes: se os houver, irmãos do mesmo pai e, se existirem filhos legítimos dos irmãos, herdarão eles a parte do pai; se não houver irmãos nem filhos dos irmãos, deles herdarão da mesma forma. Os parentes do sexo masculino e os seus descendentes também do sexo masculino terão precedência, quer sejam familiares directos quer de parentesco mais recuado. Se não houver ninguém do lado do pai até ao grau de filhos de primos, herdarão, da mesma forma, os parentes da mãe do falecido. E se não houver ninguém dos dois lados abrangido por estes graus, então herdará o parente mais próximo do lado do pai. Nem o filho nem a filha bastardos terão direito de parentesco, tanto em matéria religiosa como profana. Promulgado durante o arcontado de Euclides.
[...]
46.18: A mulher que o pai ou o irmão filho do mesmo pai ou o avô paterno der em casamento será esposa de acordo com a legalidade e os filhos que dela nascerem serão legítimos. Se nenhum destes existir e se ela for epikleros, que a tome por esposa o kyrios [de direito]; se este não existir, quem a sustentar tornar-se-á seu kyrios.
[...]
46.20: Se a epikleros gerar um filho, assim que ele ultrapassar em dois anos a puberdade ficará senhor dos bens, na condição de garantir o sustento à mãe.
[...]
140.30: Porque os filhos adoptados não eram senhores de regressar à casa paterna, a não ser que deixassem filhos legítimos no oikos do adoptante, como afirma Antifonte no Contra Calístrato, num processo de tutela, e Sólon na vigésima primeira lei.
[...]
1353.1: Mas cá entre nós, as aves, há uma lei antiga nos kyrbeis[75] das cegonhas: depois que o pai cegonha prontos a voar deixou e a todos os filhotes alimentou, importa que os novatos ao pai, por sua vez, alimentem." [76]
A base da família grega era a oikos (grego: “Lar”), que era mais um sentido de clã do que de família (ROSA, 2021). A oikos era formada pela eístion (grego: “Reunião do Fogo”), a família propriamente dita, cuja existência na cosmovisão grega era de que todos aqueles que se reuniam ao redor do fogo sagrado, cultuava as divindades domésticas e apresentava oferenda a antepassados em comum era família. Isso rompe com a noção da família como surgindo do sangue, como na concepção oriental, abrindo na sociedade grega a possibilidade de reconhecimento de outros vínculos familiares (ENGELS, 2023).
O casamento, no entanto, era considerado por todos os gregos como uma responsabilidade social que não decorria de desejos sexuais ou afetivos, ele era o cumprimento contratual para gerar a família, mas em oposição a cultura asiática, eles deveriam ser monogâmicos, e as leis de Esparta e Corinto puniam o adultério e a bigamia com a morte, enquanto em Atenas e Gortina eram motivos de exílio (PALMA, 2022).
O Código de Gortina (uma cidade grega localizada em Creta), o único texto legal grego preservado em sua integridade, descreve como era o procedimento de noivado, habilitação e celebração do casamento:
"O casamento era geralmente arranjado entre os pais da noiva e do noivo. Um homem escolheria sua esposa com base em três coisas: o dote, que era dado pelo pai da noiva ao noivo; sua fertilidade presumida; e suas habilidades, como tecelagem. Normalmente não havia limites de idade estabelecidos para o casamento, embora, com exceção dos casamentos políticos, esperar até a idade fértil fosse considerado decoro adequado. Muitas meninas se casavam aos 14 ou 16 anos, enquanto os homens geralmente se casavam por volta dos 30 anos.
O genro e o sogro tornaram-se aliados (ἔται, etai, "membros do clã") através da troca de presentes em preparação para a transferência da noiva. Os presentes (δῶρα dora) significavam a aliança entre as duas famílias. A troca também mostrava que a família da menina não estava simplesmente vendendo-a ou rejeitando-a; os presentes formalizavam a legitimidade de um casamento. Os presentes da esposa prometida (ἕδνα hedna) geralmente consistiam em gado.
Um marido podia ter uma esposa e uma concubina. Se a esposa desse consentimento, os filhos gerados pela concubina seriam reconhecidos como herdeiros do marido. Esta prática era principalmente confinada a homens ricos de alto status, permitindo-lhes múltiplas concubinas e amantes, mas apenas uma esposa.
Os casamentos também eram arranjados através do encontro dos pais do jovem casal, baseando o casamento nos seus interesses em expandir um negócio ou em forjar uma aliança entre as famílias, com pouca preocupação sobre o que o noivo pensava da situação e nenhuma consideração pelo que a esposa desejava.
Independentemente de quaisquer considerações públicas, havia também razões privadas ou pessoais (particulares para os antigos) que tornavam o casamento uma obrigação. A Lei de Gortina menciona uma delas como o dever incumbido a cada indivíduo de prover a continuidade de representantes para sucedê-lo como ministros da Divindade (toi Theoi hyperetas an' hautou paradidonai). Outra era o desejo sentido por quase todos, não apenas de perpetuar seu próprio nome, mas também de evitar que sua herança fosse desolada, e seu nome fosse cortado, e de deixar alguém que pudesse fazer as oferendas costumeiras em seu túmulo. Com isso em mente, pessoas sem filhos às vezes adotavam crianças indesejadas, incluindo crianças que haviam sido deixadas para morrer.
Pela lei gortinense, um cidadão não tinha permissão para se casar com uma mulher estrangeira, nem vice-versa, sob penalidades muito severas. No entanto, a proximidade por sangue (anchisteia), ou consanguinidade (syngeneia), não era, com poucas exceções, uma barreira ao casamento em qualquer parte da Grécia; a descendência linear direta era. Assim, os irmãos tinham permissão para se casar mesmo com irmãs, se não fossem homometrioi ou nascidas da mesma mãe, como Cimon fez com Elpinice, embora uma conexão desse tipo pareça ter sido vista com aversão.
Não há evidências que sugiram que o amor tenha desempenhado um papel significativo na seleção de um cônjuge legal, embora os estudiosos tenham afirmado que é provável que tenha havido casos devido ao amor. Os gregos antigos se casavam principalmente no inverno, durante o mês de Gamelion, o equivalente ao mês de janeiro. Gamelion se traduz como "Mês do Casamento". Isso era feito em homenagem à deusa do casamento, Hera. Também havia sacrifícios especiais feitos a ela durante todo o mês.
O casamento entre os antigos permaneceu fora do domínio da regulamentação política e legal. Isso foi deixado inteiramente ao cuidado e à premeditação dos pais, ou das mulheres que faziam disso uma profissão e que, portanto, eram chamadas de promnestriai ou promnestrides. A profissão, no entanto, não parece ter sido considerada muito honrosa ou tida em boa reputação, por estar muito intimamente ligada à de um cafetão (proagogos).
A antiga celebração do casamento grego consistia em uma cerimônia de três partes que durava três dias: a proaulia, que era a cerimônia pré-casamento, o gamos, que era o casamento real, e a epaulia, que era a cerimônia pós-casamento. A maior parte do casamento era focada na experiência da noiva. Em Atenas especificamente, a maior parte do casamento acontecia à noite.
Proaulia
A proaulia era o momento em que a noiva passava seus últimos dias com sua mãe, parentes do sexo feminino e amigos se preparando para seu casamento. A proaulia era geralmente uma festa realizada na casa do pai da noiva. Durante esta cerimônia, a noiva faria várias oferendas, chamadas proteleia, a deuses como Ártemis, Atenas e Afrodite. "Brinquedos seriam dedicados a Ártemis por meninas adolescentes antes do casamento, como um prelúdio para encontrar um marido e ter filhos. Mais significativo como um rito de passagem antes do casamento era o ritual do corte e dedicação de uma mecha de cabelo." Também é provável que ela tenha oferecido o cinto usado desde a puberdade a essas deusas. Essas oferendas significavam a separação da noiva da infância e a iniciação na idade adulta. Elas também estabeleciam um vínculo entre a noiva e os deuses, que forneciam proteção para a noiva durante essa transição.
Gamos
O gamos era o dia do casamento, onde uma série de cerimônias cercavam a transferência da noiva da casa de seu pai para a de seu novo marido. Começava com um sacrifício, proteleia (pré-marital), que era para os deuses abençoarem os dois que estavam se casando. Os rituais do dia começavam com um banho nupcial que era dado à noiva. Este banho simbolizava purificação e fertilidade, e a água teria sido entregue de um local especial ou tipo de recipiente chamado loutrophoros. A noiva e o noivo então faziam oferendas no templo para garantir uma vida futura frutífera. Uma festa de casamento na casa do pai da noiva seria assistida por ambas as famílias. No entanto, homens e mulheres sentavam-se em mesas diferentes, as mulheres sentavam-se e esperavam até que os homens terminassem. O ritual mais significativo do dia do casamento era o anakalypteria, que era a remoção do véu da noiva. Isto significou a conclusão da transferência para a família do marido.
A mulher consagrou o casamento mudando-se para os aposentos dos pretendentes. Uma vez que a mulher entrou na casa, o συνοικεῖν (synoikein, 'viver juntos') legalizou a engysis que o pretendente e o kyrios fizeram. No dia seguinte ao casamento, era típico que os amigos da noiva visitassem a nova casa. Embora o motivo seja desconhecido, acredita-se que isso pode ter sido para facilitar a transição para sua nova vida.
A parte mais importante era a procissão do casamento; uma carruagem conduzida pelo noivo trazendo a noiva ainda velada para sua, e agora dela, casa. Eles seriam seguidos por parentes trazendo presentes para o casal. Todo o caminho seria iluminado por tochas. Os presentes dados geralmente eram pintados com imagens românticas de casamento e recém-casados. É provável que essas imagens tenham sido escolhidas para aliviar o medo da noiva de seu casamento com um homem que muitas vezes seria um estranho. Ao chegar em casa, elas seriam recebidas pela sogra e levadas diretamente para a lareira da casa. Nesse ponto, o casal seria regado com frutas secas e nozes para abençoá-los com fertilidade e prosperidade. Era nesse ponto que o noivo conduzia a noiva para a câmara nupcial e seu véu seria ritualmente removido.
Epaulia
A epaulia acontecia no dia seguinte ao gamos. Era quando os presentes eram apresentados pelos parentes do casal e formalmente levados para dentro da casa. Os presentes geralmente faziam referência ao novo papel sexual e doméstico da esposa. Alguns presentes comuns eram joias, roupas, perfumes, potes e móveis." [77]
Já em Esparta apenas o noivado seguia o padrão comum aos demais gregos, a lei estabelecia uma forma de casamento um tanto inusitado, em uma cerimônia “surpresa”, organizada em estrutura militar, com o objetivo de consumar o matrimônio:
"O casamento espartano não tinha a cerimônia de Gortina e Atenas. As mulheres espartanas eram capturadas voluntariamente e vestidas como um homem, também tendo o cabelo raspado como um homem faria. Com esse traje, a noiva seria deitada sozinha no escuro, onde um noivo sóbrio entraria furtivamente, tiraria seu cinto e a levaria para a cama. Como os homens eram obrigados a dormir no quartel, ele sairia logo depois. Esse processo de entrada furtiva continuaria todas as noites. A noiva ajudaria nesse processo planejando quando e onde seria seguro para eles se encontrarem.
Às vezes, esse processo continuava por tanto tempo que os casais tinham filhos antes de se encontrarem à luz do dia. Também é provável que as mulheres espartanas não se casassem tão jovens quanto as atenienses, pois os espartanos queriam que a noiva estivesse no auge com um corpo desenvolvido, não de uma estrutura frágil ou imatura. No casamento médio, as noivas espartanas tinham provavelmente cerca de 18 anos e os noivos cerca de 25. Não há evidências que sugiram se o consentimento das famílias foi obtido antes deste tipo de casamento, mas, até onde as fontes sugerem, foi aceito por todos os espartanos." [78]
Em Tebas, a lei estipulava a idade núbil de 16 anos para os homens e 15 anos para as mulheres, e foi a primeira a estabelecer também uma idade limite: 35 anos para os homens e 30 anos para as mulheres (PALMA, 2022). Quem desejasse se casar após essa idade, deveria se retirar de Tebas e procurar outra Pólis grega onde fosse aceito essa “união sinistra” (grego: (Hypognōmōn gamos), como em Atenas, que não possuía limite de idade, mas a idade núbil era de 21 anos para homens e 19 anos para mulheres.
Os Espartanos permitiam o casamento entre crianças, mas o sexo só era permitido após a primeira polução do menino e da primeira menstruação da garota, seguindo a cerimônia de “casamento surpresa” padrão (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
O casamento grego era tido como de interesse público, pois a família era encarada como a base da sociedade grega, e todas as leis gregas conhecidas traziam punições para quem não desejava se casar ou aos que viviam em união estável, o que os gregos denominavam de Pallakē (grego: “Concubinato”) (ROSA, 2021). A principal função do casamento era a concepção, e a infertilidade era motivo de anulação do casamento (grego: Akýrosis) pelas legislações de Atenas, Corinto e Gortina, ao passo que em Esparta e Tebas ocasionavam o divórcio (grego: Diazygion).
Os deveres conjugais (grego: Hypochreōseis) variavam para cada sistema legal, como por exemplo o isolamento social da mulher em Atenas enquanto o marido focava no trabalho, a dedicação doméstica e administrativa total das espartanas enquanto os maridos permaneciam nos quartéis militares, e a equidade e valorização da manutenção da felicidade feminina pelos maridos em Gortina e Corinto (ENGELS, 2022).
Os tebanos não previam nenhuma obrigação conjugal, mas registros demonstram a mesma prática de isolamento social da esposa, e a prática de relações extraconjugais sendo permitida aos maridos, desde que fossem homoafetivas.
As relações homoafetivas, diferente do tabu oriental, eram encorajadas na Grécia em todas as Cidades-Estados, muito embora o casamento fosse reservado somente ao homem e a mulher (PALMA, 2022). A prática mais popular era a pederastia (grego: Erastēs), onde um homem mais velho se envolvia sexualmente com outro mais novo ou até mesmo adolescente, mas também relacionamentos entre adultos de forma romântica eram presentes, como no caso da Banda Sagrada de Tebas, um regimento militar formado por soldados amantes que derrotou Esparta em batalha (PLUTARCO, 2012).
As mulheres gregas, em virtude de seus direitos reduzidos, não poderiam manter relações homoafetivas umas com as outras, apesar de inúmeros registros, como o caso de Safo de Lesbos (630 – 570 a.C.), que era bissexual e se envolvia romanticamente com outras mulheres, se tornando o símbolo atual do movimento lésbico e sáfico (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Os gregos não possuíam o divórcio como um procedimento judicial ou administrativo, mas desenvolveram a anulação do casamento para os casos de adultério, bigamia, erro sobre pessoa, ausência de sexo, esterilidade e coação, e nesse caso a anulação poderia ser requerida tanto pelo casal como por quaisquer parentes próximos (PALMA, 2022).
Quanto ao procedimento do divórcio, ele era arranjado somente entre o casal, mas variava para cada localidade:
"Já na obra de Homero, em sua Odisseia, sentimos a presença, no Direito Grego, do divórcio automático, quando Ulisses parte para suas aventuras e, passados cinco anos de sua ausência, sua mulher Penélope recebe pedidos de casamento, porque estava divorciada por esse afastamento prolongado de seu marido do lar conjugal. Na Grécia antiga, o processo de iniciar o divórcio era muito mais simples para os homens do que para as mulheres. Em Atenas, tudo o que o marido tinha que fazer era mandar a esposa de volta para a casa do pai e pagar o dote dela. Quando uma esposa era descoberta por ter cometido adultério, esperava-se que o marido se divorciasse dela para evitar problemas de legitimidade de uma criança nascida. Para uma mulher, o divórcio era mais complicado. Primeiro, ela precisava apresentar seu pedido diante de um arconte (um dos principais magistrados da cidade) e então ter o apoio do pai ou parente mais próximo do sexo masculino. O pai da esposa também tinha a capacidade de forçar o divórcio (mesmo que nem o marido nem a esposa quisessem), se o casamento se mostrasse infértil. De acordo com Heródoto no Livro Seis de As Histórias , o mesmo princípio era seguido em Esparta; a infertilidade era motivo para o divórcio" [79]
Após as Guerras Médicas (499 – 449 a.C.), ocorre uma intensa troca cultural entre os gregos e os persas, e muitas das normas familiares do Avestan zoroastrista e das leis imperiais aquemênidas foram incorporadas tacitamente aos estatutos gregos, principalmente em Atenas e Esparta (MACIEL & AGUIAR, 2022). Essas modificações incluíam a nomeação de magistrados e notários de direito civil para resolver judicialmente e extrajudicialmente os litígios familiares, que antes eram resolvidos no âmbito do clã e comunitário, principalmente na figura do Arconte, o governante da Pólis grega.
O filósofo Platão (427 – 348 a.C.) critica essas judicialização dos procedimentos familiares em sua obra As Leis (grego: Nómoi), argumentando que a medida era intervenção do Estado na integralidade e manutenção privada das famílias.
Durante o governo do Arconte ateniense Péricles (gov. 461 – 429 a.C.), foi promulgada a Nova Constituição de Atenas, registrada pelo filósofo Aristóteles (fl. 384 – 322 a.C.) em sua obra Athenaion Politeia (grego: “Constituição dos Atenienses”), mantendo o Direito Privado da Constituição de Sólon com algumas alterações, cujo conteúdo está no chamado Papiro 131, encontrado no Egito em 1879 e reservado na Biblioteca Britânica:
"21.2: A sua primeira medida consistiu em repartir todos os Atenienses por dez tribos, em vez das antigas quatro, com o intento de os misturar, a fim de que um maior número acedesse aos direitos cívicos. Daí provém o dito de que “não deve cuidar das tribos” quem quiser indagar sobre a sua estirpe.
[...]
55.3: Durante o exame, levanta-se, em primeiro lugar, esta questão: “Quem é o teu pai e a que demo pertence? Quem é o pai do teu pai, a tua mãe, o pai da tua mãe e a que demos pertencem?” Em seguida, pergunta-se ao candidato se pertence a algum culto de Apolo pátrio e de Zeus protetor do lar, e aonde ficam os seus santuários; depois, se possui túmulos de família e onde se situam; depois, se trata bem os pais, se paga os impostos e se cumpriu o serviço militar. Apuradas estas questões, o presidente diz: “Chama as testemunhas destas declarações.”
[...]
56.6-7: Há ações públicas e privadas que recaem na sua alçada, cabendo-lhe analisá-las antes de as remeter ao tribunal:233 maus tratos infligidos aos pais (a ação pode ser movida por qualquer cidadão, sem exposição a multa); maus tratos infligidos aos órfãos (a ação é contra os tutores); maus tratos infligidos a mulheres herdeiras234 (a ação é contra os tutores e contra os coabitantes); má gestão dos bens de um órfão (a ação é também contra os tutores); insanidade mental (se alguém é acusado de dissipar os bens familiares, por demência); para a designação de partidores (se alguém se opõe à partilha de bens comuns); para a instituição de tutela; para a disputa de tutela; para a exibição de bens; para inscrição como tutor; para a disputa de heranças e de herdeiras. Zela ainda pelos órfãos, pelas herdeiras e pelas mulheres que, após a morte do marido, declararam estar grávidas. Tem poder para aplicar multas ou levar a tribunal quem prejudicar aquelas pessoas; arrenda os bens dos órfãos e das herdeiras até estas atingirem a idade de catorze anos;235 trata das garantias dos bens arrendados. E se os tutores não fornecerem a alimentação aos pupilos, o arconte obriga-os a pagar.
[...]
2. Léxico de Patmos, 152 s.v.: Outrora, antes de Clístenes ter organizado as tribos, a massa dos Atenienses encontrava-se dividida em camponeses e artesãos. Havia quatro tribos e cada uma delas continha três partes, as chamadas frátrias e trítias. Cada uma destas partes era constituída por trinta clãs (gene) e cada um dos clãs englobava trinta homens, organizados por clã, aos quais se dava o nome de “membros do clã” (gennetai). Foi entre eles que se repartiram à sorte os sacerdócios ligados a cada clã, como é o caso dos Eumólpidas, dos Cerices e dos Eteobútadas; isso mesmo relata Aristóteles, na Constituição dos Atenienses, da seguinte maneira: «encontravam-se distribuídos por quatro tribos, por imitação das estações do ano; cada uma das tribos subdividia-se em três partes, pelo que formavam doze partes ao todo, tal como os meses do ano, e a essas partes chamavam trítias e frátrias: a cada frátria eram atribuídos trinta clãs, à semelhança dos dias do mês; cada clã comportava trinta homens.
[...]
3. Epítome de Heráclides Lembo: 1. No início, os Atenienses possuíam uma realeza; depois do sinecismo efetuado por Íon, eles começaram, pela primeira vez, a chamar-se Iónios (cf. frg. 1). Pandíon, que reinou depois de Erecteu, dividiu o governo pelos dois filhos, que passaram o tempo a guerrear-se um ao outro. Teseu fez uma proclamação e reuniu-os, com a mesma igualdade de termos. Este, ao dirigir-se a Esciros, acabaria por perecer, ao ser precipitado de uns penhascos por Licomedes, receoso que ele usurpasse o poder da ilha. Mais tarde, a seguir às Guerras Médicas, os Atenienses trasladaram os seus restos mortais (frgs. 3-4). Os Atenienses deixaram de escolher os reis a partir dos Códridas, pois eles pareciam tornar-se efeminados e fracos. Contudo, Hipómenes, um dos Códridas, que desejava repelir essa calúnia, apanhou um adúltero em flagrante com a sua filha Limone; matou-o, então, atrelando-o ao seu carro, e encerrou a filha com um cavalo, até à morte." [80]
Agora, haviam somente dois tipos de filiação: a legítima (grego: Gónos) e a espúria (grego: nóthos), formada pelos filhos adotivos, nascidos foram do casamento e por adultério (STOLZE & PAMPLONA, 2019). Esses filhos eram não só excluídos da família paterna, mas a Nova Constituição de Atenas sequer os reconhecia como filhos. Esse modelo de filiação foi seguido por Tebas e Corinto. Mas em Esparta e Gortina, os filhos adotivos tinham os mesmos direitos que os legítimos, mas os nascidos foram do casamento eram espúrios e não poderiam ser reconhecidos pelo pai (HOMMERDING, 2021).
A adoção (grego: Eispiisis) era bastante comum entre os gregos, mas era permitida apenas em circunstâncias especiais (PLUTARCO, 2012). Em Atenas, somente órfãos poderiam ser adotados e somente por casais que não tinham filhos ou que não conseguiam conceber, sendo realizada de forma administrativa pelos notários de direito civil e o reconhecimento do Arconte. O procedimento em Esparta era bem mais privado, restrito ao âmbito familiar, e a adoção poderia se dar simplesmente pelo desejo de ter a criança ou adulto como integrante da família, apenas modificando o registro familiar.
Insta salientar que foi entre os antigos gregos que surgem os primeiros advogados chamados de Synegoros (grego: “Representantes”), que atuavam amplamente nos litígios e acordos familiares e nas ações criminais (NEVES, 2020). Os synegoroi representavam uma das partes quando a autodefesa se tornava impossível pelo desconhecimento da lei que amparava seu pleito, incapacidade, impossibilidade de comparecer em audiência e se estivesse em ostracismo ou presa.
Conforme a judicialização das questões familiares foi se tornando mais gradual, mais se utilizavam do serviço dos synegoroi, que passaram a cobrar honorários pela sua atuação, até que em 373 a.C. a maior parte das cidades gregas seguiram o decreto aprovado pelos Arcontes da Liga de Delos (liderada por Atenas) proibindo a cobrança de honorários pela defesa técnica (CASTRO, 2010).
Os gregos se desgastaram na Guerra do Peloponeso (431 – 404 a.C.), cuja vencedora foi Esparta, que passou a difundir seu Direito de Família em toda a Grécia, até mesmo sobre Atenas, levando sua democracia ao colapso (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Por um breve tempo, a hegemonia espartana foi desafiada pelos tebanos, que contavam principalmente com recursos advindos de empréstimos feitos na Pérsia e na Macedônia.
Contudo, em 338 a.C., se aproveitando desse eclipse do poder espartano, o rei Filipe II da Macedônia (r. 359 – 336 a.C.), pai de Alexandre, o Grande, cuja monarquia se assemelhava muito ao despotismo asiático, derrotou todas as Cidade-Estado gregas e se autodeclarou “Senhor Soberano de toda a Grécia”, transformando toda a Hélade em província da Macedônia, mas ele permitiu que cada um observasse suas leis e pegou o que havia de melhor do Direito Grego e adicionou ao ordenamento jurídico macedônico.
Assim, a Antiguidade em seus estágios finais consolidou um Direito de Família patriarcal, mas equilibrado, onde as mulheres e os filhos eram sujeitos de amparo e cuidado pelo pai, cuja lei procurava não só fixar e ordenar deveres, mas garantir direitos e limitar os abusos, abrindo caminho para a formação, de um constitucionalismo centrado no balizamento da sociedade, afetando as famílias, uma consequência da democracia ateniense.
Como base das civilizações e o espelho da relação entre o Estado e o indivíduo, a família era somente matrimonial e nenhum outro tipo era admitido, como forma de alusão da relação entre o cidadão e o reino, e o reino com os deuses, visto que a fidelidade deveria ser unicamente a eles.
3. DIREITO DE FAMÍLIA NO PERÍODO HELENÍSTICO (333 – 31 a.C.)
"A nobreza que governa os homens,
acreditando-se encarnação da própria lei,
transforma as casas em criações para o Estado,
e o rei, em sua sede por poder e expansão,
vê cada nascimento como um novo soldado
para marchar sob seu estandarte."
– Sobre as Leis (Diógenes da Babilônia), 193 a.C.
Chama-se de Período Helenístico a era de integração da cultura grega, disseminada pelo Império Macedônio fundado por Alexandre, o Grande (r. 336 – 323 a.C.), com as culturas e civilizações milenares do Oriente, criando uma cultura globalizada sob o prisma greco-macedônico (REINKE, 2019). Alexandre governava um império gigantesco que se estendia da atual Bulgária ao Punjabi indiano, tendo como um de seus objetivos criar um ordenamento jurídico misto, inclusive o Direito de Família.
A política de Alexandre em combinar as culturas asiáticas e greco-macedônica tendo como base os costumes iranianos foi chamada de Helenismo (grego: Hellēnistḗs), a “Cultura da Hélade[81]”, um fenômeno que acabou influenciando todo o Oriente e Ocidente até hoje, da Península Ibérica ao Japão, afetando inclusive o ordenamento jurídico e processual como conhecemos hoje (PALMA, 2022).
Pouco sobrou de registro documental do direito unificado durante o reinado de Alexandre, mas o que há pode ser encontrado nas obras Anábase de Alexandre, do historiador Arriano de Nicomédia (fl. 86 a.C. – 146 d.C.), Sobre o Império dos Macedônios, de Críton de Pieria (fl. Século II a.C.), Biblioteca Histórica, de Diodoro Sículo (fl. Século I a.C.) e Vidas Paralelas de Plutarco (LÉVÊQUE, 1987).
Os códigos e leis consuetudinárias de cada povo inserido no território macedônico referentes a casamento, divórcio, patrimônio familiar, filiação e cuidado com os filhos poderiam ser observadas, editadas e criadas sem nenhuma intervenção dos governantes gregos, mas o processo e o procedimentos deveriam observar o rito grego e se adaptar ao contexto cultural da localidade (PALMA, 2022).
Em cada Estado haviam cidades helenizadas ou construídas no modelo grego da Pólis (como as 50 Alexandrias espalhadas desde o Egito até a fronteira com a China), e nelas haviam tribunais (grego: Dichastērion) com juízes gregos que colaboravam com os tribunais locais para submeter as leis nativas ao processo helênico (LÉVÊQUE, 1987).
Um exemplo era o divórcio, que em muitos locais – e na própria Grécia – não era um procedimento, e foi transformado pelas Leis de Alexandre em um processo judicial que necessitava de tramitação sob o crivo dos tribunais gregos, mesmo que realizados pelas leis ou costumes nativos. Os Diádocos (Sucessores) de Alexandre foram os primeiros a utilizar o divórcio judicial estabelecido por ele, a exemplo de Lisímaco da Trácia (r. 306 – 281 a.C.), que se divorciou judicialmente de sua esposa persa Amastris imotivadamente para se casar com a princesa ptolomaica Arsinoé II.
Após a morte precoce do “Rei do Mundo”, Alexandre ainda possuía um filho nascituro como herdeiro do Império, que ficou sendo administrado por regentes, o que acabou resultando em uma guerra sangrenta entre os seus sucessores (grego: Diádochoi) (ARRIANO, 2017). As amplas reformas legislativas realizadas por cada um desses Diádocos tocaram também o Direito de Família, fosse o grego ou os nativos.
A mais impactante foi a realizada por Antígono I Monoftalmo (r. 321 – 301 a.C.), quando governou a Macedônia, Grécia, Síria e Palestina (PLUTARCO, 2000). Ele promulgou decretos revogando cada dispositivo legal que não fosse o grego, e o Direito de Família greco-macedônio foi aplicado, gerando inúmeras revoltas, principalmente dos judeus, que o traíram na Batalha de Gaza em 312 a.C., que resultou na expulsão dele da Ásia e na revogação de seus decretos revogatórios por Ptolomeu I Sóter, então Sátrapa do Egito.
Um detalhe bastante predominante no Direito de Família helenístico é a promoção do Juspositivismo, teoria da filosofia jurídica desenvolvida pelos juristas gregos e espalhada pelo Oriente pelo helenismo (REALE, 2001). O Juspositivismo helenístico acabou se integrando ao Direito de Família, apagando os traços morais e éticos que permitiam a atuação ampla dos próprios membros da família em como dirigi-la.
O Direito de Família positivado pelos Diádocos e dinastias locais helenizadas permitiu a intervenção cabal do Estado na família, permitindo o controle social total, o que era bastante almejado pelos reis na Antiguidade. Com isso, o Direito de Família sai do âmbito do Direito Privado e se torna Direito Público, pois a família passa a ser considerada interesse público e sua organização era encarada como definição da ordem social, além da intensa participação do Estado por intermédio das leis e do processo. A família helenística deixa de ser comandada pelo pai (e em alguns lugares pela mãe ou conjuntamente) para ser controlada pelos reis, usando o patriarcado como fantoche político.
Alexandre, o Grande ditou uma nova ordem mundial nas famílias, principalmente na Ásia, que se tornou o centro cultural e de promoção do helenismo, algo que em vida sempre fora seu propósito e que só se concretizou com os Diádocos (REINKE, 2019). Essa nova ordem consistia na inserção do Estado dentro das famílias por intermédio das leis e normas, utilizando a proteção jurídica e até celestial atribuída, para que os reis atuassem como magistrados efetivos, detendo um poder completo de controle da população, pois eles já governavam e legislavam (LÉVÊQUE, 1987).
O patriarcado mais uma vez era promovido pelas coroas helenísticas como propaganda real, agora com um viés mais religioso, pois a maior parte dos imperadores e reis que sucederam a Alexandre, assim como o próprio, se portavam como pais do povo por serem descendentes de deuses do panteão grego, ou até mesmo das divindades cultuadas pelos povos asiáticos que dominavam (PALMA, 2022).
Como o Oriente era o centro da difusão cultural helênica, o modelo da “Família Oriental” surge como o padrão a ser seguido até mesmo na Grécia, possuindo o seguinte esquema:
a) O Rei é o patrono de todas as famílias em seu território, ele é filho dos deuses, um deus na terra, a lei viva e encarnada que as organiza, determinando a resolução dos conflitos em seu seio e colocando todos os seus membros sob sua autoridade, punindo quem se recusava a obedecer às regras estatais;
b) O pai é o guia da família, responsável por proteger os filhos, obedecer às leis e ensinar a sua prole a obedecer às leis, seguido pelas esposas que devem lhe prestar auxílio e obedecer suas ordens, sim, esposas, pois a poligamia se tornou recomendável até mesmo no Ocidente grego;
c) As concubinas agora integram a família, pois o vínculo da maternidade com o filho do seu mestre é reconhecido como gerador de parentalidade;
d) Os filhos homens deveriam honrar absolutamente o pai e mãe até a maioridade, e as filhas até se casarem, e os netos também deveriam se submeter aos avós e cultuá-los como seus ancestrais, em vida ou após a morte deles.
O fator de maior influência na construção desse Direito de Família unificado foi o grego Koiné, chamado de “grego asiático” ou “grego oriental”, que se tornou a língua franca em todo o mundo conhecido nessa época:
"Os gregos falavam vários dialetos. Durante o Período Clássico, o dialeto grego ático (falado em Atenas) ganhou a primazia, dada a predominância da cidade sobre as demais. Esse dialeto foi a base essencial para a língua comum do povo, chamada koiné, a qual foi divulgada por Alexandre para todo o Oriente. Ao longo do tempo, o koiné foi sendo enriquecido com palavras de outras línguas (como o jônio) e simplificado, o que garantiu sua facilidade e amplitude universal. Com o apoio dessa língua, a cultura grega foi espalhada, produzindo grandes autores na Grécia e entre as populações helenizadas dos povos conquistados por Alexandre, os quais também aprenderam a ler e escrever em grego. Com isso, o apreço pela leitura ganhou adeptos não apenas entre as altas classes, mas também entre o povo" [82]
O Koiné possibilitou o caráter universal do Direito Helenístico, e a difusão do Direito de Família oriental para a própria Grécia, cuja herança democrática das Constituições de Sólon e Péricles foram suplantadas pelo autoritarismo e despotismo jurídico das monarquias instituídas pelos Diádocos e seus descendentes na Ásia (LÉVÊQUE, 1987). Com um idioma franco, se facilitava a outorga de decretos e leis que trariam a família mais e mais às mãos das dinastias helenísticas.
3.1. O Direito de Família no Reino Ptolomaico
O primeiro grande Estado helenístico a possuir um sistema de Direito de Família misto foi o Reino Ptolomaico, fundado no Egito – mas incluindo também a Líbia, Palestina e Síria – pelo general Ptolomeu I Sóter (r. 305 – 282 a.C.), que inaugurou uma dinastia de faraós greco-macedônicos, chamada também de 33ª Dinastia do Egito (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
Em 301 a.C., após a finalização da sangrenta Guerra dos Diádocos (322 – 301 a.C.), o Faraó Ptolomeu I promulgou em Alexandria o Édito da Justiça (Koiné: Dikaiosýnēs Diátagma), um conjunto de leis civis, administrativas e criminais, que incluíam o Direito de Família (LÉVÊQUE, 1987).
Organizando seu reino em 39 Nomos (Koiné: “Distritos”), as famílias poderiam arranjar os casamentos nos moldes da lei consuetudinária egípcia, mas ele só seria válido mediante a lavratura de uma escritura pública e seu registro pelos notários de direito público (DIODORO SÍCULO, 2014). O divórcio agora poderia ser administrativo se consensual, mas quando fosse litigioso deveria ser solicitado no tribunal, mas não era necessário indicar a culpa.
Se o marido possuísse mais de uma esposa e se divorciasse, a próxima com a qual se casou assumiria o papel de esposa principal no lugar da que agora era divorciada. Os filhos concebidos antes do divórcio ficavam com o pai, e os após com a mãe. Demais regras acerca de deveres matrimoniais, filiação e cuidado com os incapazes que não foram contempladas no Édito poderiam ser observadas seguindo o direito ou costume nativo.
Em 252 a.C., o Faraó Ptolomeu II Filadelfos (r. 284 – 246 a.C.), após a Segunda Guerra da Síria contra os selêucidas, outorgou um novo Dikaiosýnēs Diátagma, mais extenso e com 467 tópicos legais, para contemplar os novos territórios no Levante conquistados na guerra contra Antíoco I Sóter, também incluindo o Direito de Família, reaproveitando o direito nativo egípcio estabelecido por Ramsés II e o Dikaiosýnēs Diátagma de Ptolomeu Sóter:
"PREÂMBULO
No decorrer do reinado do jovem que sucedeu a seu pai na realeza, Senhor dos Diademas, mui glorioso, que estabeleceu o Egito e foi piedoso perante os deuses, triunfante sobre seus inimigos no Oriente e que restaurou a paz e a vida civilizada entre os homens, Senhor dos Festivais dos Trinta Anos[83], semelhante a Ptah, o Grande, um rei como Rá, grande rei dos países Alto e Baixo, da Judeia e da Síria, progênie dos Deuses Sóteres[84], aprovado por Ptah, a quem Rá deu a vitória, imagem viva de Amom, filho de Rá, PTOLOMEU, ETERNO, AMADO DE PTAH, no trigésimo segundo ano, quando Aetos, filho de Aetos, era sacerdote de Alexandria e os deuses Sóteres e os deuses Adelphoi e os deuses Evergetes e os deuses Filopatores e o deus Epifânio Eucaristo[85]; Pyrrha, filha de Philinos, sendo Athlophoros de Berenice Evergetes, Areia, filha de Diógenes, sendo Kanephoros de Arsinoe Filadelfo; Irene, filha de Ptolomeu, sendo sacerdotisa de Arsinoe Filopátor; aos quatro do mês de Xandikos[86], de acordo com os egípcios, o décimo oitavo de Mekhir[87].
O DECRETO DO REI DEUS PTOLOMEU
Estando reunidos os Sacerdotes Principais e Ministros e aqueles que adentram no templo interior para paramentar os deuses, e os Portadores de Abano e os Escribas Sagrados e todos os demais sacerdotes dos templos da terra que vieram se encontrar com o rei em Heliópolis para a festa da assunção de PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o sucessor de seu pai na realeza; estando todos reunidos no templo da deusa Arsinoe Afrodite em Alexandria nesse dia, declaram que:
[...]
CONSIDERANDO que o casamento no Egito será reconhecido como um contrato legal entre um homem e uma mulher, concluído por partes mutuamente consentidas e em idade de casar.
E CONSIDERANDO que as condições essenciais para tal contrato incluem o consentimento mútuo de ambas as partes, o anúncio público do casamento, a assinatura de duas testemunhas e o registro oficial do contrato junto ao notário de direito civil.
FICA DECIDIDO o casamento como um contrato civil pelo rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, os Deuses Sóteres, as partes envolvidas no contrato têm a prerrogativa de incluir condições específicas que considerem necessárias para o relacionamento.
E FICA DECIDIDO que entre essas, o dote, é uma obrigação fundamental para a validade do contrato, enquanto outras condições são opcionais e permitem que as mulheres tenham o mínimo para não viver na penúria, assim declara o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres, incluindo às mulheres o direito de se declarar divorciada, que, na ausência de acordo em contrário, é conferido automaticamente ao marido.
[...]
CONSIDERANDO que este direito assegura à esposa a possibilidade de se divorciar caso o marido contrate uma segunda esposa.
E CONSIDERANDO que o dote deve ser pago à futura esposa na forma de dinheiro ou ativos, sendo que o noivo é obrigado a pagar uma parte adiantada do dote antes da consumação do casamento.
E CONSIDERANDO que o restante do dote é devido em caso de divórcio ou morte do marido.
FICA DECIDIDO que a idade mínima legal para o casamento será fixada em 16 anos, assim diz o rei PTOLOMEU, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, descendente do Rei Ptolomeu e da Rainha Berenice, os Deuses Sóteres.
E FICA DECIDIDO que um homem poderá contrair matrimônio com até quatro esposas simultaneamente, conforme a lei do DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, devendo, no entanto, informar sua esposa anterior e a futura esposa.
E FICA DECIDIDO que se houver acordo contratual, assim declara o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o marido não poderá tomar mais de uma esposa.
[...]
CONSIDERANDO que o escriba privado será o responsável por realizar o casamento, registrá-lo e emitir uma cópia do contrato para ambas as partes.
E CONSIDERANDO que a filiação dos filhos será estabelecida pelo casamento válido, pelo reconhecimento da paternidade, pela coabitação ou falho e por qualquer casamento cancelado após a consumação.
FICA DECIDIDO que todos os recém-nascidos deverão ser registrados no prazo de 15 dias a contar da data de nascimento, assim determina o DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o rei, através do cadastro no registro familiar com o escriba do Rei, que enviará para o banco de registro em Alexandria.
E FICA DECIDIDO que o divórcio é um meio de rescindir o contrato de casamento e poderá assumir diferentes formas, como ordena o rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, os deuses Filopatores, sendo o divórcio irrevogável celebrado somente perante o juiz e produzindo efeitos imediatos.
E FICA DECIDIDO que no divórcio revogável, o casamento não será dissolvido até o término do procedimento no tribunal, assim diz o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres, permitindo ao marido reintegrar a esposa sem seu consentimento.
E FICA DECIDIDO que o divórcio unilateral permitirá à mulher dissolver o casamento no tribunal, preceitua o rei PTOLOMEU, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, descendente do Rei Ptolomeu e da Rainha Berenice, os deuses Filopatores, devolvendo o dote ao marido.
E FICA DECIDIDO que o marido que se divorciar sem o conhecimento da esposa deverá registrar o divórcio perante o escriba do Rei em até trinta dias e notificá-la através de um Phylakitai (oficial de justiça), como decreta o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres.
CONSIDERANDO que após o divórcio, haverá um período de espera de três meses para que a mulher possa se casar novamente, ou de quatro meses e dez dias, caso seja viúva.
E CONSIDERANDO que não haverá período de espera para que o homem se case novamente após o divórcio.
FICA DECIDIDO que a esposa terá direito a buscar pensão por um ano, ordena o DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, ou por pelo menos dois anos se foi divorciada sem seu consentimento.
E FICA DECIDIDO que no caso de um casamento temporário, que é contratado por um período limitado ou fixo e envolve o pagamento de dinheiro à parceira, a esposa terá direito ao dote diferido no momento do divórcio ou da morte do marido, conforme ordena o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO.
[...]
CONSIDERANDO que as crianças serão sustentadas financeiramente pelo pai até que possam ganhar a vida.
FICA DECIDIDO que em caso de filhos do sexo masculino, determina o rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, o sustento deverá ser provido até os 16 anos, a menos que o filho não possa ganhar a vida, devendo então ingressar nas linhas do exército.
E FICA DECIDIDO que o pai deverá prover sustento para habitação adequada dos filhos, assim decreta o rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, os deuses Filopatores.
E FICA DECIDIDO que a mãe terá o direito à custódia de ambos os filhos, assim diz o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres, custódia filhos homens e filhas mulheres, até a idade de 16 anos, após a qual a criança poderá escolher permanecer com o custodiante.
[...]
CONSIDERANDO que a custódia dos filhos será prioritariamente concedida à mãe, seguindo-se as parentes do sexo feminino.
E CONSIDERANDO que um testamento poderá ser escrito para redistribuir até um terço de todos os ativos a outra pessoa de escolha do proprietário.
FICA DECIDIDO que será possível exceder esse limite apenas com o consentimento dos herdeiros, permite o Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice.
[...]
EPÍLOGO
ESTE DECRETO SERÁ INSCRITO SOBRE UMA ESTELA DE PEDRA NOS CARACTERES SAGRADOS E NATIVOS E GREGOS E SERÁ ERIGIDA EM CADA UM DOS TEMPLOS DE PRIMEIRO, SEGUNDO E TERCEIRO GRAUS, AO LADO DA IMAGEM DO REI DEUS PTOLOMEU EPIFÂNIO EUCARISTO." [88]
Durante o período de paz que se seguiu em seu reinado, Ptolomeu II promulgou um código de direito de família doméstico, chamado de Leis dos Deuses Filopatores (Koiné: Nómos tôn Theôn Philopatorôn), um regimento interno familiar sancionado para organizar sua linhagem (DIODORO SÍCULO, 2014).
O casamento deveria ser somente o fraternal (entre irmãos), de preferência os irmãos germanos, com a finalidade de manter a pureza sanguínea (Koiné: Éthos gámou adelphês). Na Corte Ptolomaica, o incesto era visto como uma maneira de manter o poder dentro da família, reforçando a continuidade dinástica para evitar disputas sucessórias que poderiam surgir de alianças externas (LÉVÊQUE, 1987). Além disso, essa prática era também uma forma de autoendossamento divino, já que os Ptolomeus eram considerados deuses na terra, e casamentos entre irmãos divinos, como entre os deuses egípcios Osíris e Ísis, eram um modelo religioso e cultural.
Ptolomeu II Filadelfo, que estabeleceu a regra, casou-se com sua irmã, Arsinoe II (fl. 316 – 268 a.C.), que já era viúva do rei Lisímaco da Trácia, e ambos foram adorados como Theoi Adelphoi (Koiné: “Deuses Irmãos”), o que seria replicado por seus descendentes. A divinização dos reis e rainhas ptolomaicos ajudava a justificar e legitimar essa prática, retratando-a como algo que transcendia normas sociais comuns e estava alinhado com as tradições religiosas e políticas nativas.
Ao Faraó era permitido adotar filhos homens somente se não possuíssem filhos naturais, com a adoção só podendo contemplar sobrinhos e sobrinhos-netos, e filhos ilegítimos não poderiam ser reconhecidos em hipótese alguma, para que eles não liderassem alguma revolta contra os irmãos legítimos (PLUTARCO, 2000).
O casamento real deveria observar o rito cerimonial grego, mas com a presença dos sacerdotes do deus greco-egípcio Sérapis (DIODORO SÍCULO, 2014). O casamento do Faraó não era registrado em escritura pública, já que a finalidade desse procedimento era para controle familiar com finalidade militar, mas o regimento mencionava que era pelo motivo de ele ser um deus, o que dispensava que sua união fosse registrada como sendo humana. A rainha possuía igual função à do Faraó, mas ele poderia limitar a sua atuação familiar se entendesse que isso estava ofuscando o exercício de seu poder paterno.
Os príncipes e princesas (Koiné: Klironómoi) deviam honra ao Faraó e a todas as suas esposas, consideradas como sendo mães de toda a prole real. Haviam impedimentos matrimoniais aos príncipes ptolomaicos, sendo eles a proibição de se casar com qualquer um que não fosse seu irmão germano, casar com nativos egípcios, siríacos ou judeus, casar com quem fosse inferior na casta social, casar com os filhos ilegítimos do Faraó, casar com servos e escravos, casar com pessoas do mesmo sexo e casar com estrangeiros, exceto se fosse para estabelecer aliança diplomática (DIODORO SÍCULO, 2014). O Faraó poderia se casar com quem quisesse, desde que sua primeira esposa fosse uma de suas irmãs legítimas.
O Faraó Ptolomeu IV Filopátor (r. 221 – 204 a.C.) promoveu uma reforma jurídica em todo o Reino Ptolomaico em 217 a.C., cujo foco era organizar o processo civil ptolomaico, com destaque nos procedimentos de família (YIFTACH, 2020). Em seu Édito, ele ordenou que os juízes unificassem seu entendimento para resolver os litígios de forma célere e concisa, focando em beneficiar sempre as partes.
O Direito de Família foi colocado como prioridade nas resoluções, mesmo que os processos fossem primordialmente escritos, e as partes deveriam estar imediatamente presentes nas audiências, que nunca deveriam parcelar os julgamentos (DIODORO SÍCULO, 2014).
O Faraó, na posição também de Juiz Supremo, poderia intervir em qualquer dissensão nas famílias, e o patriarca deveria colaborar com essa intervenção, sob a pena de ser executado por crime de desobediência (PALMA, 2022). A sentença proferida por ele era irrecorrível, mesmo que nenhuma das partes ficasse satisfeita (uma contradição com a ordem da harmonia no mesmo decreto), e todo ato poderia ser anulado pelo Faraó mesmo sem provas, como a anulação de um casamento ou a revogação de uma sentença de divórcio.
Para facilitar essa atuação direta da nobreza dentro da forma como o Direito de família era exercido e aplicado, Ptolomeu IV reestabeleceu a promotoria dos magiaí, os inspetores do ordenamento jurídico egípcio cuja função fora extinguida pelos persas após a conquista do Egito em 525 a.C. (VELLANI, 1996).
Agora chamados de Epistrategoi (Koiné: “Superintendentes”), estes promotores eram responsáveis por intervir em todas as ações de família que envolvessem crianças, órfãos e viúvas, mas também eram quem recebia e repassava todos os recursos que subiam para o Faraó e manifestavam seu parecer (Koiné: Hypomnema), bem semelhante às funções do Ministério Público Federal atualmente. Isso também mostra o estabelecimento de um sistema de duplo grau de jurisdição, com o Faraó agindo como se fosse a Suprema Corte (PALMA, 2022).
Dessa forma, o Direito de Família ptolomaico permitia não só ao Faraó, mas a toda nobreza, intervir na família como método de controlar toda a população e colocar o povo sob o poder real – utilizando-se dos Epistrategoi –, simplesmente para ter o poder completo.
A última lei referente ao Direito de Família foi sancionada pelo Faraó Ptolomeu VI Filométor (r. 180 – 145 a.C.), que permitiu o reconhecimento de filhos nascidos fora do casamento (Koiné: Plastói), mas somente com efeitos declaratórios (DIODORO SÍCULO, 2014). A medida não visava o direito a filiação ou muito menos a dignidade da pessoa humana, sua função era a formação de um cadastro familiar para aumentar as fileiras do exército.
Nos julgamentos das questões familiares, o Decreto da Justiça de Ptolomeu II permitia a defesa ser realizada por um terceiro que conhecesse das leis melhor que as partes. Assim, nasce no Período Helenístico o que hoje chamamos de Advocacia, na figura dos Syndikoi (grego: “Postulantes”), semelhante aos Synegoroi que atuavam na Grécia continental:
"CONSIDERANDO que ele decidiu que não haverá mais nenhum recrutamento compulsório para a marinha e para o exército.
E CONSIDERANDO que da taxa sobre tecido de linho fino pago pelos templos à coroa ele reduziu dois terços.
E CONSIDERANDO que qualquer que tenham sido as negligências de tempos passados, ele as corrigiu devidamente, destacando-se muito particularmente as taxas tradicionais a serem pagas apropriadamente aos deuses.
E CONSIDERANDO que igualmente a todos ministrou justiça, como Thoth, o grande e grandioso;
E CONSIDERANDO que decretou que aqueles que retornam da guerra e aqueles que foram espoliados de seus bens nas épocas de turbulência, devem, no seu retorno, ser autorizados a ocupar suas antigas propriedades.
FICA DECIDIDO que pode ser nomeado postulante que defenda qualquer homem nos tribunais da imagem viva de Amom, filho de Rá, PTOLOMEU, ETERNO, AMADO DE PTAH, o rei, para fazer apresentação de argumentos de quem requisitou ou sejam requeridos ao tribunal.
E FICA DECIDIDO que esta permissão dada pelo rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, é estendido àqueles que, por diversas razões, não possam proceder por conta própria, sejam devido ao desconhecimento da lei instituída pelos Deuses Sóteres, à iletracia, à infância, ao estado de embriaguez, ou à loucura que exclua as faculdades mentais.
E FICA DECIDIDO que os postulantes têm a incumbência de representar e defender aqueles acusados de crimes de roubo, de morte e de destruição contra os cidadãos dos reinos que o rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, os Deuses Sóteres, governa nos países do Alto e Baixo, na Judeia e na Síria, crimes contra o rei, e crimes contra o patrimônio dos cidadãos do reino do DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO.
E FICA DECIDIDO que promoverão a justiça do rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, nas audiências onde se vise a entrega de coisas, a entrega de serviços, a celebração de contratos, a rescisão de contratos, a colação de contratos, o pagamento de valores compensatórios, a cobrança de valores e aluguéis, a condenação ao pagamento de valores compensatórios, a todas as consignações, a todos os pagamentos, a posse de terras, a posse de águas, a posse de alimentos, a posse de animais, a posse de coisas terrenas, a posse de coisas sagradas, a doação de coisas, o divórcio, a anulação do casamento, a adoção de filhos e filhas, a posse dos filhos e filhas, o pagamento de valor compensatório aos filhos e filhas, a devolução do dote da mulher, a entrega de móveis e imóveis à mulher, o pagamento de valor compensatório à mulher, a leitura do testamento do morto, a partilha da herança do morto e todas as outras possibilidades que há para se comparecer ao tribunal.
E FICA DECIDIDO que são responsáveis por apresentar argumentos em nome do que ficar ausente ou que se encontra em campanha de guerra em nome do rei PTOLOMEU, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, e dos mortos e de quem é como se fosse morto, mas a alma não lhe partiu do corpo.
E FICA DECIDIDO que eles também têm a função de representar os céus, os mares e o patrimônio da imagem viva de Amom, filho de Rá, PTOLOMEU, ETERNO, AMADO DE PTAH, o rei, e o patrimônio de todos os que habitam as terras em que o sol de Rá toca.
E FICA DECIDIDO que receberão remuneração proporcional ao que lhes puder ser pago, pois no governo do rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Berenice, é justo que aqueles que trabalham recebam sua parte de sustento." [89]
Possuindo várias origens étnicas, eles eram profissionais liberais que se especializavam no direito vigente e atuavam em nome do requerente ou réu, e sua atuação era ampla nos litígios familiares, mas principalmente nos recursos ao Faraó, recebendo honorários de quem defendia (NEVES, 2020). No entanto, durante o governo do Faraó Ptolomeu XII Auletes (r. 80 – 51 a.C.), que trouxe bastante do processo romano ao Egito, foi proibido o recebimento de honorários pelos Syndikoi, mas isso não era fiscalizado e a prática permaneceu.
O Reino Ptolomaico chegou ao fim durante o reinado de Cleópatra VII Téa (r. 51 – 30 a.C.), a famosa Cleópatra que integrou o Egito como Reino aliado à República Romana após se tornar amante do Triúnviro Júlio César (t. 60 – 44 a.C.) e se casar com seu sucessor político Marco Antônio (t. 43 – 30 a.C.), que trouxe para o Egito o Direito Romano após ser nomeado “Mestre do Oriente Romano” (LÉVÊQUE, 1987). Cleópatra, sob influência de Marco Antônio e seus conselheiros, introduziu muitos institutos do Direito Romano ao Direito de Família ptolomaico, como a curatela dos adultos incapazes (PALMA, 2022).
O Direito de Família instituído nos enormes Decretos da Justiça de Ptolomeu I Sóter e Ptolomeu II Filadelfo foi revogado após o suicídio de Cleópatra e Marco Antônio, execução de seu filho com Júlio César, o Faraó Ptolomeu XV Cesário (r. 30 a.C. – 18 dias) e a inevitável anexação do Egito à República Romano por Otaviano, o futuro imperador César Augusto (r. 31 a. C. – 15 d.C.) (LÉVÊQUE, 1987).
Em resultado, o fim do Reino Ptolomaico não afetou apenas os egípcios e gregos governados pela Dinastia, mas foi indicado como o fim do próprio Período Helenístico, pois foi o último dos Estados criados pelos Diádocos de Alexandre a se desintegrar, marcando o crepúsculo do Helenismo no Oriente Próximo e o alvorecer dos romanos na Ásia, cuja hegemonia só seria encerrada no Século VII de nossa era.
3.2. O Direito de Família no Império Selêucida
Ao mesmo tempo, a metade asiática do Império de Alexandre foi transformada no Império Selêucida, que se estendia da atual Turquia até o Paquistão e da Armênia à Jordânia, um Estado enorme fundado por Seleuco I Nicátor (r. 305 – 281 a.C.), um dos generais e amigos de Alexandre, o Grande que derrotou e matou todos os seus antigos companheiros de batalha para assumir o título de Rei da Ásia que fora de Alexandre (LÉVÊQUE, 1987).
Assim como seu antigo companheiro de batalhas Ptolomeu, Seleuco também promulgou um Dikaiosýnēs Diátagma, mas a única lei familiarista contida nele era uma declaração de que todas as famílias, clãs e dinastias estariam sobre o poder do “Rei dos Reis” (persa: Shahanshah), o título que os imperadores selêucidas adotaram dos antigos reis persas (CLAY, 2010).
Tudo muda com o Shahanshah Antíoco I Sóter (r. 281 –261 a.C.), que realizou a maior reforma e integração no ordenamento jurídico selêucida, de forma que seu sistema nunca mais ele foi reformado por nenhum de seus sucessores (DIODORO SÍCULO, 2014).
Aproveitando as leis religiosas do Avestan, os decretos dos reis persas, as normas assírio-babilônicas, o direito consuetudinário dos citas e as normas greco-macedônicas, Antíoco promulgou o Édito da Babilônia (aramaico: Dīnā d-Bābīl; Koiné: Babylōnos dês Diátagma) em 279 a.C., um conjunto extenso de normas escritas em aramaico que tratavam de direito civil, criminal, comercial, administrativo, tributário e militar (CLAY, 2010).
Logo no caput da apresentação das leis, Antíoco declarou que todo o povo eram seus filhos e deveriam obedecê-lo, colocando o poder real como controlador das famílias, que eram inquilinas do Shahanshah, a quem pertencia toda a terra (um dos títulos de Antíoco era “Rei do Universo” – Acadiano: Šar Kiššatim).
O casamento era público, e o contrato de noivado (aramaico: Ktābā d-ʾaryāswūṯā) deveria ser registrado por um notário de direito público, sendo fornecida uma cópia ao nobre que governasse a cidade, que poderia revogar ou adicionar cláusulas contratuais sem a anuência das partes (DIODORO SÍCULO, 2014). Casamentos entre povos de diferentes origens eram encorajados, pois isso promovia a diversidade do helenismo.
O Édito estipulava que se o pai não permitisse o casamento da filha, ele deveria devolver o dote (aramaico: Mawharā) ao noivo e rescindir o contrato. O dote podia incluir imóveis e mobílias, e este pertencia a esposa enquanto ela vivesse, passando para suas filhas, mas se só possuísse filhos homens ou não concebesse, o dote era revertido a sua família originária.
O sistema jurídico selêucida era o único onde o casal só era permitido a ser casar com permissão do governante da cidade (Koiné: Episkópoi), e caso ele não tivesse autorizado até a data da celebração, o noivo deveria pedir um suprimento judicial no tribunal (LÉVÊQUE, 1987). Essa necessidade de autorização só era para o primeiro casamento, demais matrimônios necessitavam somente do arranjo contratual dos esponsais entre o noivo e a família da pretendente.
O divórcio (aramaico: Gushā) era permitido somente ao marido e o procedimento era judicial, com regras bem semelhantes ao processo dos aquemênidas:
"No Édito do honorável Antíoco I Sóter, há leis que regulam as uniões matrimoniais e a dissolução destas, data vênia encontramos disposições de grande sabedoria que visam tanto à preservação da paz no lar quanto ao bem-estar dos selêucidas. O divórcio ergue-se como um baluarte contra a dissolução precipitada dos laços conjugais, desaconselhando fortemente o divórcio e permitindo-o apenas sob as mais urgentes e prementes circunstâncias, se opondo a lei dos parsis[90] descrita no Avestão. Não obstante, mesmo em tais casos extremos, faz-se mister a observância de um lapso temporal de um ano inteiro, denominado com justa propriedade de Ano da Paciência ou da Espera (ܫܢܬܐ ܕܚܘܪܢܐ - Shantā d-ḥūrānā; ΤΟΣ ΤͶΣ ΠΡΟΣΔΟΚΊΑΣ - Etos tēs Prosdokías). Durante esse interregno, se o vínculo de afeto que uniu o casal outrora for reavivado, o divórcio será ipso facto anulado.
Entretanto, ao final desse prazo, se tal afeição não houver renascido, o divórcio será considerado definitivo e irrevogável. Se, contudo, o casal que outrora se separou desejar unir-se novamente em matrimônio, tal poderá ser feito, conquanto dezenove dias tenham transcorrido desde a dissolução.
O Decreto do Rei do Universo exorta igualmente à veneração do casamento e reitera o desalento ao divórcio. No sacrossanto Avestão, a lei parsi ratifica a provisão dos persas concernente ao período de espera de um ano, antes que o divórcio possa ser consumado, o que vossa majestade imperial, Antíoco Sóter, introduziu aos gregos orientais.
Outrossim, prevê a possibilidade de novo matrimônio com a mesma pessoa, abolindo a severa lei do divórcio preconizada no Avesta. Define ainda a deserção e contempla o novo casamento em tais conjunturas. Se houver distanciamento entre marido e esposa durante uma viagem, cabe ao esposo assegurar o retorno seguro da consorte ao lar conjugal e prover-lhe as despesas por um ano completo. Em casos onde a infidelidade for comprovada, nenhum dote ou pensão alimentícia será devida à parte culpada.
Os escritos de Diodoro Sículo, que são interpretações autorizadas das sacras leis selêucidas, incidem com rigorosas reprovações sobre o divórcio. Contudo, em sua magnanimidade, amplificaram o Decreto da Babilônia ao retirar da mulher o mesmo direito que o homem de iniciar o processo de divórcio; ao determinar que, durante o Ano da Paciência, os cônjuges não deverão coabitar; e ao estabelecer que o marido não arcará com a manutenção da esposa durante esse período, apenas após a anulação do contrato.
O procedimento do divórcio, conforme estipulado, é conduzido dentro dos tribunais sob a estrita supervisão da Assembleia de Dirigentes das Leis, ou, nas capitais de Selêucia, Antioquia e Babilônia, por um comitê da Corte Imperial, presidido pelo próprio Rei dos Reis. É incumbência solene desta augusta instituição verificar e confirmar que há, de fato, antipatia e aversão irreversível entre as partes envolvidas, sendo esta a única justificativa aceita para a separação.
Fixada a data para o início do Ano da Paciência, o casal deve viver separado por um ano, e nenhuma relação carnal deve ocorrer durante esse período. Em tal interregno, a Assembleia de Dirigentes das Leis local empreenderá diligentes esforços para fomentar uma reconciliação, e é vedado a ambas as partes buscar um novo consorte enquanto o Ano da Paciência não findar.
A Assembleia, outrossim, tentará mediar um acordo entre os cônjuges quanto aos arranjos financeiros e ao acesso aos filhos durante o ano. A norma dos selêucidas é que o marido não sustente a esposa, mas provenha tudo para os filhos durante esse período, salvo se houver acordo mútuo para outra disposição, como no caso em que a mulher tenha sido a principal provedora.
Ao término do Ano da Paciência, se a reconciliação não tiver sido alcançada, a Assembleia pode permitir que o juiz possa decretar o divórcio como final e irrevogável em sentença incontestável, tentando, então, assegurar um acordo mútuo quanto aos bens, finanças e direitos sobre os filhos.
Importa ainda que o casal que possua lei nativa, como os judeus e parsis, obtenha o divórcio nos moldes do direito privado onde residem e cumpram as determinações estabelecidas pelo tribunal competente, mas também deverão solicitar o divórcio nos moldes do parecer da Assembleia de Dirigentes Selêucidas. O divórcio nativo não será considerado concluído até que o divórcio selêucida também tenha sido devidamente formalizado. Após tal formalidade, o novo casamento com o mesmo parceiro ou com um diferente pode ocorrer em qualquer tempo subsequente" [91]
A poligamia era a regra e a monogamia era desencorajada, com o sistema selêucida incentivando a prole numerosa, cujo intuito era o aumentar seu exército (LÉVÊQUE, 1987). A primeira esposa recebia o status de senhora da casa (aramaico: Mārtā d-Baytā), sendo responsável pela administração doméstica, estipulando as funções das demais esposas ou concubinas no funcionamento da casa, bem como educando as crianças.
Antíoco também estipulou as regras para adquirir concubinas, que poderiam ser mulheres livres, sem vínculos de servidão com o chefe da família, e também deveria ser redigido contrato com vista ao Episkópos, mas não era necessária autorização para o ingresso da concubina no harém de contratante (CLAY, 2010).
O poder paterno (Koiné: Patrikē exousia; aramaico: Shalṭān ʾabbā) se estendia sobre os filhos até o casamento, e a maioridade não cessava a extensão dessa autoridade (DIODORO SÍCULO, 2014). O Édito selêucida permitia, enquanto solteiros, que o pai obtivesse o usufruto do trabalho dos filhos, os contratasse como servos e empregados, vende-los temporariamente como escravos para pagar dívidas, penhorar seus bens para execução e mata-los se fossem defeituosos ou tivessem má fama.
A infame norma que permitia a violência doméstica contra a esposa, disposta nas MAL, foi resgatada pelas normas selêucidas e combinada com o poder patriarcal espartano, tornando-a bem mais brutal (PLUTARCO, 2000).
Os selêucidas adotaram no Édito da Babilônia o esquema persa de filiação, mas o combinaram com o grego, sendo considerados como filhos espúrios (aramaico: Mamzārā) os adotivos, ilegítimos e não-livres, merecendo o reconhecimento paterno somente os legítimos e substitutivos (CLAY, 2010).
A adoção (aramaico: Assiāthā) era firmada no afeto, mas seus efeitos eram somente declaratórios e firmados entre o adotando e o adotante, não se estendendo aos irmãos ou às esposas de quem adotou (DIODORO SÍCULO, 2014). Os selêucidas prezavam pela pureza familiar, dando privilégio aos casais gregos e macedônicos:
"O domínio dos selêucidas se estendia do Mar Egeu até o que hoje é o Afeganistão e o Paquistão, portanto, incluindo uma gama diversificada de culturas e grupos étnicos. Gregos, assírios, armênios, citas, persas, medos, caldeus, judeus e mais, todos viviam dentro de seus limites. O imenso tamanho do império deu aos governantes selêucidas um difícil ato de equilíbrio para manter a ordem, resultando em uma mistura de concessões às culturas locais para manter suas próprias práticas, ao mesmo tempo em que controlavam e unificavam firmemente as elites locais sob a bandeira selêucida.
O governo estabeleceu cidades e assentamentos gregos por todo o império por meio de um programa de colonização que encorajou a imigração da Grécia; tanto assentamentos urbanos quanto rurais foram criados e habitados por gregos étnicos. Esses gregos receberam boas terras e privilégios e, em troca, esperavam que servissem no serviço militar para o estado. Apesar de serem uma pequena minoria da população geral, esses gregos eram a espinha dorsal do império: leais e comprometidos com uma causa que lhes dava vasto território para governar, eles serviam esmagadoramente no exército e no governo.
Ao contrário do Egito ptolomaico, os gregos no Império Selêucida parecem raramente ter se envolvido em casamentos mistos com não gregos, eles se mantiveram em suas próprias cidades, arranjando seus casamentos entre os colonos ou até mesmo importando esposas da Hélade; quando casavam com algum estrangeiro, sempre eram persas helenizados e no máximo citas helenizados, que ao final deveriam aderir a cultura do cônjuge. O filho nascido dessas uniões não era tido como mestiço, mas era grego, pois o pai era grego e a mãe, apesar de ser de outra origem étnica, praticava a cultura grega, tornado esta criança em um grego nato, cuja a distinção poderia ser a aparência mestiça ou o sotaque quando falasse grego." [92]
Um Édito interno foi aprovado em Selêucia, a nova capital do Império Selêucida, no ano de 272 a.C. por Antíoco Sóter, tratando dos direitos, obrigações e deveres da Família Real e dos nobres, nos moldes do que havia no Reino Ptolomaico (DIODORO SÍCULO, 2014).
A única divergência com o Nómos tôn Theôn Philopatorôn era o incentivo ao casamento com mulheres gregas e macedônicas em vez de uniões incestuosas. Os Shahanshahs e príncipes selêucidas tinham permissão de adquirir concubinas iranianas, indianas e sírias, mas os filhos nascidos delas não receberiam títulos de nobreza, e em compensação obteriam cargos altos na corte.
A guarda dos filhos, tutela dos órfãos, cuidado com os incapazes e idosos eram observados pelos dispositivos nativos de cada localidade e formulados por casa povo, mas seus tribunais nativos deveriam se submeter a observância do processo grego (CLAY, 2010).
Todos esses procedimentos citados, além de necessitar do provimento jurisdicional, eram todos monitorados pelos nobres que governavam as cidades onde se davam as obrigações familiares, e nas capitais do Império (Babilônia, Selêucia, Antioquia e Damasco) era o próprio Shahanshah eram quem monitorava e liberava as permissões, e em sua ausência, o Vice-Rei (Koiné: Hypátōs) o fazia.
Após derrotar o Reino Ptolomaico na Batalha de Panium em 198 a.C. e anexar a Síria e a Judeia ao Império Selêucida, o Shahanshah Antíoco III o Grande (223 – 187 a.C.) criou um sistema de promotoria interventiva semelhante ao dos Epistrategoi ptolomaicos. Esse sistema foi criado por influência dos cortesãos e nobres judeus que passaram a servir na corte selêucida e ao peso do monitoramento real (DIODORO SÍCULO, 2014).
No processo selêucida, a competência desses promotores, chamados de Nomárchōi (Koiné: “Dirigentes das Leis”), se estendia a todos os direitos, principalmente o de Família. Sua função incluía analisar as autorizações da nobreza para oficializar as obrigações familiares e a aplicação das sentenças pelos juízes, apresentando relatórios aos governantes sobre a atividade dos tribunais (CLAY, 2010).
Essa reforma processual se estendeu também aos tribunais religiosos, como os das comunidades judaicas no Levante, zoroastristas na Pérsia e budistas na Ásia Central, gerando certo descontentamento, mas nada podendo ser feito para barrar a intervenção do poder real na intimidade das famílias.
Durante o governo do Shahanshah Antíoco IV Epifânio (175 – 164 a.C.), um decreto foi outorgado em Selêucia abolindo todos os códigos, leis e direitos consuetudinários nos territórios dominados pelos selêucidas, sendo o Édito da Babilônia considerado o único dispositivo legal legítimo no Império Selêucida, ocasionando inúmeras perseguições políticas e religiosas que resultaram em revoltas nativas, como a Revolução dos Macabeus em 170 a.C. e a Reconquista Parta em 163 a.C. (LÉVÊQUE, 1987).
Assim como atuavam no Egito Ptolomaico, os Syndikoi também poderiam realizar defesas técnicas nas audiências que envolviam conflitos familiares nos tribunais selêucidas (NEVES, 2020). Mas Antíoco III o Grande, que trouxe inúmeros cortesãos romanos para Antioquia e Selêucia para promover uma reforma militar no Império, promulgou um decreto proibindo que os Syndikoi recolhessem honorários, exceto em ações criminais, sob pena de morte.
O Império Selêucida começou a entrar em colapso após a morte de Antíoco Epifânio em 164 a.C., perdendo a Ásia Central para o Reino Greco-Bactriano, o Irã para o Império Parto e a Palestina para os Macabeus, e posteriormente os Asmoneus (LÉVÊQUE, 1987). Para alimentar seus exércitos e arcar com as despesas deixadas por 21 guerras civis e inúmeras batalhas contra os partos e judeus, o Império realizou pesados empréstimos da República Romano, perdendo também recursos.
Reduzido a um reino pobre na Síria, os selêucidas mantiveram seu Direito de Família inalterado, mesmo após se tornarem um simples Estado vassalo do Reino da Armênia em 88 a.C., mas obteve um breve momento de independência em 66 a.C. quando os romanos conquistaram a Armênia, somente para em 64 a.C. o Shahanshah Antíoco XIII Asiático (r. 82 – 64 a.C.) ser assassinado e todos os domínios selêucidas serem anexados à República Romana, sendo revogado o Édito da Babilônia e substituído pelo Direito Romano.
Dessarte, é perceptível a forma como o absolutismo helenista aprimorado no Reino Ptolomaico e no Império Selêucida moldou o Direito de Família para ser instrumento de poder, não somente sobre o povo, mas para regular as suas próprias famílias. Esse Direito de Família dos Reis surge para reforçar ainda mais a padronização do ideal divino da vontade dos Diádocos, que também eram os patriarcas de suas próprias famílias, prole divina.
Os Ptolomeus se autoperfilharam como filhos de Sérapis, Hórus e Rá. Ao passo que os Shahanshahs Selêucidas se intitulavam filhos de Apolo, Baal, Anu, Enlil, Marduk, Ahura-Mazda, Mitra e do Bodhisattva budista Maitreya. Os Diádocos tomavam essa filiação celestial porquê deveriam existir normas determinando como a Família Real deveria proceder, pois deveriam se comportar e proceder como deuses, não meros humanos como o povo.
Mas o que moldou a dureza do Direito de Família helenístico foi, estranhamente, o seu caráter militar. O militarismo da política de Alexandre se tornou um legado governamental para os Diádocos e os Estados helenizados, se enraizando e tornando-se a base de movimentação da sociedade, com basicamente todos os homens já nascendo conscritos nas fileiras militares.
O pai não era somente o genitor e o patriarca, era um oficial militar, e o respeito devido se misturava com o comando de guerra. O incentivo a prole numerosa, normatizado em todos os dispositivos legais da época, nada mais era do que um método de manter a população em aumento para substituir os milhões de soldados que morreriam nas guerras dinásticas e de conquista, como as sangrentas Guerras da Síria (274-170 a.C.) travadas entre o Império Selêucida e o Reino Ptolomaico pelo controle da Síria e Judeia, ocasionando a morte de 11 milhões de pessoas (LÉVÊQUE, 1987).
Para suprir esse déficit e realizar mais guerras, o planejamento familiar passou a ser determinado pelos reinos, cujas leis familiares facilitavam as uniões poligâmicas e desqualificavam a monogamia, ainda que esta fosse a mais praticada pelo povo comum. Permitiam a miscigenação, mas preferiam os casamentos de gregos com gregos, pois eles eram mais submissos à nobreza do que os nativos.
A guerra moldou o Direito de Família helenístico a partir do prisma jurídico militar, permeou as relações familiares com a hierarquia dos quartéis de combate, transformou a família em reduto extensivo do campo de batalha, endureceu as regras colocando a afetividade em papel secundário e promovendo o Juspositivismo, subordinou o patriarcado ao poder real – já que os reis eram líderes supremos do exército –, reduziu os vínculos conjugais e parentais a mero trato contratual e obrigacional, com o resultado de pôr as famílias nas mãos do Estado.
3.3. O Direito de Família nos Reinos Helenizados
Mas o estilo jurídico militarizado dos reinos helenísticos não se limitou somente aos reinos dos Sucessores de Alexandre, ele foi adotado por dinastias nativas que foram helenizadas durante o domínio dos Diádocos e alcançaram a independência, contudo, permanecendo com a mesma organização dos regimes gregos.
A helenização era vista por essas sociedades como uma forma de se aproximarem dos gregos que dominavam o mundo, além de verem o Helenismo como uma cultura superior a seus próprios costumes, criando um sincretismo que integrava os costumes, vestuário, direito, política e até religião ao molde grego (REINKE, 2021).
Na Europa, em 279 a.C. surgiu o Reino Odrisiano, fundado pelos trácios, um povo tribal que habitava a atual Bulgária, que adotou o Direito de Família de Alexandre (KANTOR, 2012). Adaptado ao seu direito consuetudinário, os trácios judicializaram suas questões familiares durante o governo do rei Seuthes III o Bardo (r. 323 – 312 a.C.), que junto do conselho de anciãos, promulgou uma lei para organizar seu novo reino, e esta lei também tratava do Direito de Família dos odrísios:
"Na Trácia helenizada, a figura do paterfamilias (πατήρ οικογενείας) tinha um papel preeminente dentro da família, visto que ele era responsável não apenas pela administração dos bens, mas também pela tomada de decisões que afetavam todos os membros da família (Lykourgos, Oratio, 356 a.C.). Ele detinha o cura-rei sobre os filhos e esposa, refletindo uma prática comum da Grécia antiga entre as culturas tribais nos Balcãs, onde o patriarcado era amplamente reconhecido (Aristóteles, Política, 350 a.C.).
Os casamentos na Trácia eram frequentemente arranjados para promover alianças políticas e econômicas, seguindo a tradição helênica, com a noiva, geralmente acompanhada de um dote (προίκα), sendo transferida para a família do marido, o que assegurava a integração dos bens e a continuidade da linha familiar (Plato, Diálogos de Sócrates, 380 a.C.). O dote tinha um papel crucial na proteção dos interesses da esposa e garantia sua segurança financeira dentro do novo núcleo familiar.
A herança (κληρονομία) no Reino Odrisiano era uma questão de grande importância, e como a tradição helenística determinava que a herança fosse geralmente dividida entre os filhos, foi quebrada a cultura sucessória de preferência para o filho mais velho, conforme as práticas descritas por Heródoto em Histórias (430 a.C.). A proteção do patrimônio familiar e a manutenção da continuidade da linhagem eram prioridades, e as leis sobre a distribuição dos bens buscavam assegurar que o patrimônio permanecesse dentro da família (Isócrates, Panegírico, 380 a.C.).
O divórcio (διαζύγιον) não era uma prática comum entre os trácios, foi importado para o Reino Odrisiano após sua conquista por Filipe II da Macedônia e entrega da Trácia à Lisímaco, general de Alexandre que assumiu o trono odrisiano e se divorciou de sua esposa persa Amastrine para se casar com a princesa ptolomaica Arsinoé II. O divórcio seguia procedimentos rigorosos para garantir que o homem nunca fosse prejudicado pela separação, com os bens sempre ficando em sua posse e os filhos sob a guarda da mãe (Demóstenes, Oratória, 355 a.C.).
A posição das mulheres (γυναῖκες) na sociedade trácia era subordinada, como observado por autores como Xenofonte em Oecônomicos (371 a.C.), mas com algumas proteções legais relacionadas à segurança e sustento. Crianças (παιδία) eram vistas como dependentes, com a responsabilidade de sua educação e formação recaindo sobre os pais, conforme detalhado por Aristóteles em Política (350 a.C.). Mas a resolução de seus problemas ainda era resolvida pelos anciãos [...]." [93]
O Reino Odrisiano havia unificado todas as tribos trácias, e para garantir sua proteção acabou se aliando ao Reino da Macedônia (LÉVÊQUE, 1987). Em 168 a.C., a República Romana invadiu a Grécia, e a Trácia (aliada da Macedônia) se opôs ao poderoso exército romano, que já havia derrotado os macedônicos na Batalha de Pidna e reduzido a Grécia e Macedônia em províncias, e o Reino Odrisiano acabou por também ser reduzido à Província da Trácia, sendo abolido seu direito interno e implantado o Direito Romano.
A Ásia se tornou o reduto dos reinos e povos helenizados, sendo os mais famosos o Império Parto, o Reino Asmoneano da Judeia, o Reino Greco-Bactriano, o Reino Indo-Grego, a Confederação Saka e a Confederação Yuezhi, ao passo que na África floresceu o Império Cartaginense (LÉVÊQUE, 1987). Todos esses Estados e Confederações possuíam sistemas jurídicos próprios, mas que só são conhecidos atualmente pela helenização de suas culturas.
O Império Parto, criado em 247 a.C. pelo senhor da guerra Ársaces I (r. 247 – 217 a.C.), um vassalo persa dos selêucidas, foi o sucessor do Império Aquemênida, restaurando a identidade do poder iraniano, mas com vertente helenizada (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). O Direito de Família parto restaurou o mesmo observado na era aquemênida, mas o processo seguia o modelo selêucida:
"Em relação à administração e às organizações da justiça no período parta, não temos informações além de que observavam a mesma legislação aquemênida estabelecida no Madayan i-hazar dadestan, exceto que, de acordo com a tradição tribal parta, as infrações criminais entre membros da família — como crimes capitais cometidos por irmão contra irmã ou pai contra filha ou entre membros masculinos da família — eram resolvidas dentro da família (Justino, 41.3); elas não estavam sujeitas a processo judicial nos tribunais. O Rei dos Reis chefiava o governo parta. Ele mantinha relações polígamas e geralmente era sucedido por seu filho primogênito.
Também é relatado por Filóstrato (Vida de Apolônio de Tiana 1.25) que os reis partas se sentavam para julgar desacordos familiares em um salão babilônico especialmente decorado, no qual quatro rodas douradas giratórias pendiam do teto. Acreditava-se que as rodas representavam a passagem do tempo, lembrando ao rei que, se ele esquecesse que era apenas um ser humano e pensasse ser mais do que isso, ele despertaria a ira de Nêmesis (deusa grega da justiça retributiva).
Embora o tecido da história seja baseado na fantasia popular, refletindo a aspiração por justiça em vez de uma expressão real e hipócrita de probidade, ela, no entanto, atesta a corte de detenção do rei parta em casos especiais, como, talvez, crimes capitais contra o estado. No entanto, uma certa medida da prática jurídica e judicatura parta tardia pode ser avaliada a partir do estado judicial prevalecente sob seus herdeiros, os primeiros sassânidas, embora Pārs, mesmo sob os partas, tivesse seu próprio ambiente religioso e social específico, com regras familiares que nada se pareciam com as dos sassânidas." [94]
Ao contrário dos demais reinos helenísticos e helenizados, o Império Parta dava ao Shahanshah a liberdade de legislar e intervir em questões de Direito Público, mas quem legislava e intervinha nas ações de Direito Privado era o Megisthanes (persa: “Assembleia”), formado pelos Sete Grandes Casas do Irã, cujo clã principal era a Casa de Suren, que comandava o Exército (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
O casamento entre os persas seria apenas religioso, com o contrato de casamento podendo ser celebrado pelos pais sem consentimento dos nubentes, permitindo que os Hampatān (persa: “Assessores”), juristas que serviam como assessores jurídicos no Megisthanes, analisassem o contrato e pudessem remover cláusulas (CLAY, 2010). Judeus, assírios, indianos e outros povos que não praticavam o zoroastrismo poderiam casar nos limites de suas leis nativas, mas deviam dar vista aos Hampatān.
Os tribunais partos só atuavam nas questões familiares que saíam do controle do patriarca e da comunidade (KANTOR, 2012). A intervenção judicial nas ações privadas era praticada nos mesmo moldes dos selêucidas, pois ainda que se reservasse aos chefes de família resolução interna e privada dos litígios em seu núcleo familiar, o casamento e todos os demais atos necessitavam da autorização das Autoridades Públicas para serem efetivados.
Em 96 a.C., durante o governo do Shahanshah Mitrídates II o Grande (r. 123 – 88 a.C.), as Sete Grandes Casas do Irã promulgaram o Hērbedestān (persa: “Procedimentos”), elaborado pelos juízes e sacerdotes zoroastristas de Selêucia (antiga capital selêucida conquistada pelos partos), regulamentando as ações judiciais (KANTOR, 2012). Nas questões de família, eram reconhecidas as ações de divórcio litigioso aos homens e mulheres, custódia de crianças, pedido de pensões alimentícias e tutelas de crianças órfãs e mulheres viúvas.
Os partos acabaram colidindo com o Império Romano no século I, e se desgastaram em inúmeras guerras contra eles pelo domínio da Mesopotâmia, Armênia e Cáucaso (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Em 224 da nossa era, a Casa de Sassan – uma das Sete Grandes Casas do Irã – se rebelou contra os partos e tirou o imperador parta Artabano IV (r. 213 – 224) do trono persa, fundando o Império Sassânida e realizando uma ampla reforma cultural, política e legislativa, apagando os feitos dos partos no Irã.
Na África, não era somente o Egito Ptolomaico o único reino helenizado, eles tiveram como vizinhos o Reino de Cartago, que se localizava onde hoje é a atual Tunísia e foi fundado em 814 a.C. por colonos fenícios que fugiram da brutalidade assíria e acabaram se tornado tão poderosos como seus conterrâneos do Oriente Médio (LÉVÊQUE, 1987).
Após se helenizarem por volta de 290 a.C. ao trazerem professores gregos e macedônicos para a corte cartaginense, Cartago deixa de ser um simples reino e se transforma em um poderoso império ultramarino governado por uma Parlamento (fenício: Adirim), responsável por promulgar as primeiras leis escritas.
Quando Hanno II o Grande (gov. 247 – 194 a.C.) foi nomeado um dos dois Shophetim (fenício: “Juízes”) – o Chefe de Estado e o Chefe Político de Cartago – que lideravam a Adirim, ele promulgou a Constituição de Cartago, que tratava do Direito de Família cartaginense:
"8.3-5: Hanno, chamado pelos seus patrícios de o Grande, tendo assumido a liderança do Senado dos Púnicos, percebeu que a solidez da cidade dependia da estabilidade das famílias e, em sua sabedoria, decretou reformas que fortaleceram o vínculo entre os membros de uma mesma linhagem. Em seu reinado, o matrimônio deixou de ser meramente uma união entre o homem e mulher, mas sim um pacto entre casas, realizado sob a vigilância de testemunhas notáveis, escolhidas entre os mais ilustres cidadãos, e dos Intendentes do Senado. Com esse decreto, o casamento passou a servir não apenas aos interesses pessoais, mas aos desígnios maiores da República.
[...]
11.14-15: Na nova ordem, o pai continuava a deter a autoridade máxima dentro do núcleo familiar, mas Hanno, buscando o equilíbrio entre poder e justiça, decretou que o Senado pudesse intervir com tirania para que o poder da República se fizesse presente. Assim, o poder do pai sobre sua esposa e filhos, encontrava agora limites, assegurando que a autoridade fosse exercida com sabedoria e moderação, para que a harmonia doméstica refletisse na estabilidade da própria República.
[...]
15.22: Hanno, ao contemplar o destino dos órfãos da guerra, que, ao perderem seus pais, ficavam à mercê do acaso, decretou que esses deveriam ser colocados sob a proteção de tutores nomeados entre os parentes paternos ou designados pelo Tribunal. A Constituição de Cartago determinava que os tutores deveriam ser sujeitos a rigorosa supervisão pelos Intendentes, para que não se apropriassem dos bens que tinham por missão proteger, assim, as fortunas das grandes famílias eram preservadas até que os herdeiros alcançassem a idade apropriada para administrar seus próprios destinos.
17.35: No tocante às heranças, Hanno, em sua sabedoria, decidiu que, na ausência de herdeiros diretos, os bens de um falecido não deveriam ser absorvidos pelo Senado, mas redistribuídos entre os parentes próximos, ou então doados aos santuários dos deuses. Esta medida tinha por objetivo prevenir a acumulação desmedida de riquezas nas mãos de poucos e assegurar que as antigas linhagens continuassem a florescer, sendo estas o alicerce da prosperidade de Cartago.
[...]
19.47: Em caso de viuvez, a Constituição garantiu às mulheres o direito ao dote e a uma parte dos bens do marido, assegurando que não fossem relegadas ao abandono ou à indigência.
[...]
21.58: Hanno instituiu um conselho de anciãos, homens de sabedoria e longa experiência, encarregados de mediar disputas familiares, especialmente aquelas envolvendo questões de propriedade e herança. Seu objetivo era de evitar que as desavenças familiares viessem a corromper a paz em Cartago, permitindo que os conflitos fossem resolvidos sem necessidade de recorrer ao tribunal, mantendo assim a ordem e a concórdia em toda Cartago." [95]
Assim como era entre os demais reinos helenizados, Cartago também assumiu uma posição interventiva no ordenamento jurídico privado, o que também permitia a forte atuação de Menahalim (fenício: “Intendentes”), que observavam as ações dos juízes e também encaminhavam para julgamento direto pelos Shophetim em uma audiência pública, pois a família em Cartago era um bem a ser tutelado pelo Estado (KANTOR, 2012). Como Cartago era uma República Militar, seu Direito de Família foi fortemente afetado por estes ideais.
Após séculos de tensão com Roma pelo domínio do Mediterrâneo, Cartago se envolveu em um longo conflito armado com eles nas Guerras Púnicas (264–146 a.C.), inclusive quase conquistando Roma em 211 a.C. (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Cartago evitou por várias vezes sua conquista por Roma, mas foi destruída pelos romanos em 146 a.C. após a Terceira Guerra Púnica, com mais tarde os romanos fundando uma nova cidade sobre suas ruínas e obrigando os cartaginenses a observar o Direito Romano.
No coração da Ásia Central, a Satrápia da Báctria (um Estado localizado na Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Paquistão e China) se rebelou contra o Império Selêucida e fundou o Reino da Báctria governado por Diódoto I Sóter (r. 256 – 239 a.C.) e seus descendentes, utilizando o título de Basileu (Koiné: “Rei”) para governar gregos orientais e nativos bactrianos e sakas na região (LÉVÊQUE, 1987).
Diódoto implementou o Estatuto da Babilônia selêucida em seu reino, mas com o tempo passou a integrar bastante da cultura dos bactrianos, que eram um povo iraniano com raízes citas e sakas, com seu Direito de Família sendo uma combinação do ordenamento selêucida e da tradição zoroastrista, e até mesmo do Budismo, que era a religião mais praticada pelos nobres gregos na Báctria, como destaca o aventureiro chinês Zhang Qian (fl. 195 –114 a.C.), cujo itinerário foi compilado na obra histórica chinesa Shiji em 91 a.C.:
"Nos anais de minha jornada, ouvi contar sobre o rei Yavana[96] Diaoduo[97], que governou a grande terra de Daxia[98], situada ao sul do rio Gui[99]. Diaoduo, descendente de uma linhagem de reis Yavana, havia herdado um reino vasto e próspero, repleto de cidades florescentes e campos férteis. Embora sua origem fosse do povo Yona[100], ele buscou governar seu reino em harmonia com as tradições e leis dos homens que agora governava.
Nos primeiros anos de seu reinado, Diaoduo admirava as leis de Tiaozhi[101], cujo direito era conhecido por sua precisão e pela forma meticulosa com que regia a vida dos homens. Diante disso, ele implementou a Lei de Tiaozhi em Daxia, esperando trazer ordem e justiça à vasta terra que controlava. Sob essas novas leis, o comércio floresceu ainda mais, e as cidades muradas de Daxia prosperaram, refletindo a grandeza gloriosa de Anxi[102] e de Tiaozhi.
Contudo, com o passar dos anos, Diaoduo percebeu que governar um reino tão diverso exigia mais do que a simples aplicação de leis que eram dos Yona do Ocidente. Ele começou a integrar as tradições dos Daxian[103], que eram parentes dos povos de Anxi. Os Daxian, há muito tempo habitantes da região, traziam consigo uma rica herança de costumes e tradições que Diaoduo não podia ignorar.
Assim, em Daxia passou a promover a lei de de Tiaozhi, com sua ênfase nas obrigações e negócios dos homens, e das leis de Anxi, que davam grande importância às linhagens familiares e aos laços de sangue, o casamento, a herança e a educação dos filhos.
Diaoduo havia criado um sistema legal singular em Daxia, que refletia não apenas as rígidas leis de Tiaozhi, mas também a rica tapeçaria de tradições Anxi e Shaka[104], permeadas pelos ensinamentos de Fu[105], tornando-a um reino onde a sabedoria de diferentes homens se entrelaçava, criando harmonia e prosperidade." [106]
No reinado de Eucrádites I (r. 171 – 145 a.C.), a intervenção estatal se intensificou após a Báctria ser isolada do Mundo Helenístico pelo Império Parto, que conquistou a Pérsia Selêucida, a única região helenizada que os ligava com os gregos ocidentais (KANTOR, 2012). Após sua divisão em quatro reinos diferentes em 153 a.C. para impedir a invasão dos Yuezhi, o Basileu de cada um desses Estados era quem cedia a autorização para os cidadãos se casarem, divorciarem, adotarem e abrir testamentos (KANTOR, 2012).
Em 155 a.C., o Reino de Gandhara – um desses quatro Estados autônomos – proclamou sua independência, ao passo que em 140 a.C. os Reinos greco-bactrianos de Aracósia e Paropamisade foram conquistados ao norte pelos sakas iranianos e ao sul e centro pelos Yuezhi vindos da China (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990).
O último Reino greco-bactriano foi Tokharoi (chamado em mandarim de Dayuan), destruído e anexado à Dinastia Han pelo imperador chinês Wu (r. 141 – 87 a.C.) após a derrota dos greco-bactrianos e mercenários sakas na Guerra dos Cavalos Celestiais em 102 a.C., implantando a lei chinesa na região (LÉVÊQUE, 1987).
O Reino de Gandhara, chamado de Reino Indo-Grego (sânscrito: Yavanarajya), apesar de ser o que possuía a cultura helenística mais plural combinando as tradições gregas, budistas e hindus, pouco se sabe de como era seu sistema legal, mas os parcos registros demonstram que os gregos seguiam o Édito Selêucida e os nativos indianos o Código de Manu (KANTOR, 2012).
Contudo, no Milinda Panha, um texto paracanônico budista que relata a conversão do Basileu grego Menandro I Sóter (r. 165 – 130 a.C.) ao Budismo de orientação indo-grega e seus diálogos com o monge indiano Nagasena, há um diálogo que demonstra como era o Direito de Família em Gandhara:
"Então, o rei Milinda[107], sábio e poderoso, dirigiu-se ao venerável Nagasena e disse:
– Ó Nagasena, tu que és sábio e conhecedor das verdades sublimes, diz-me, como um rei deve controlar os homens, para que seu reino prospere e haja harmonia entre seu povo?
Nagasena, com serenidade, respondeu:
– Ó grande rei, para controlar os homens, deves, primeiramente, comandar as famílias, pois elas são o alicerce da sociedade. Um reino é forte quando suas famílias são fortes. Assim como uma árvore cresce alta e robusta se suas raízes são profundas, o reino floresce quando suas famílias estão em ordem.
Milinda, então, questionou:
– Mas, ó sábio, como devo comandar as famílias para que mantenham a ordem e a virtude?
Nagasena respondeu:
– Com as leis, ó rei. As leis são o fio condutor que une os corações e mentes do teu povo, guiando-os no caminho da retidão. Assim como o arado corta a terra para semear o grão, as leis devem cortar o caos e plantar a ordem.
O rei, desejoso de maior clareza, perguntou:
– E como devem ser essas leis, ó Nagasena, para que eu governe com sabedoria?
Nagasena, o eloquente, prosseguiu:
– As tuas leis, ó rei, devem se alinhar às Quatro Nobres Verdades. Ensina ao teu povo que dukkha, o sofrimento, nasce do tanha, o desejo insaciável. E que o alívio desse sofrimento está no seguimento do Nobre Caminho Óctuplo, que o Sublime Buda nos revelou. Leva teus homens a compreender que o caminho da virtude reside na retidão de pensamento, de fala e de ação.
Então, deves estipular normas sobre o matrimônio e os deveres do chefe de família, de modo que o homem seja o guia de sua casa, assim como o timoneiro é o guia de um barco nas águas revoltas. O matrimônio deve ser honrado, e o chefe de família deve cuidar com diligência de sua esposa e filhos. Que ele trate sua esposa com respeito, mas que ela, por sua vez, esteja sempre sob a sua proteção. Pois, como está escrito nas leis antigas, "a mulher está sob a guarda de seu pai na infância, sob a guarda de seu marido na juventude, e sob a guarda de seus filhos na velhice."[108]
– E como devem se comportar as mulheres, ó sábio? – perguntou o rei Milinda.
Nagasena, o iluminado, respondeu:
– A mulher, ó rei, tem o dever de dar à luz, criar seus filhos e manter o lar com diligência. O Senhor das Criaturas decretou que "a mulher é o campo e o homem é a semente"; é pela cooperação de ambos que surge a vida. Uma mulher não deve, de maneira alguma, se afastar da autoridade do homem. Se ela for virtuosa, deve seguir os preceitos do Dharma[109], submetendo-se ao seu pai, ao seu marido ou aos seus filhos, conforme a ordem natural da vida.
Deves também, ó rei, estabelecer leis que orientem a pureza da vida. Proíbe a convivência com aqueles que perturbam a harmonia da família, como os portadores de doenças, os hereges, os vagabundos e os que vivem de práticas indignas, como os dançarinos e prostitutas. Somente os que seguem o Dharma devem permanecer na companhia do justo, para que a ordem seja preservada.
Além disso, as tuas leis devem guiar as famílias na escolha de alimentos que favoreçam a longevidade e a purificação do corpo e do espírito. Pois, assim como o corpo deve ser nutrido por alimentos saudáveis, o espírito deve ser nutrido pela prática da meditação e pela observância do Dharma.
– E quanto ao trabalho, ó Nagasena? – inquiriu Milinda.
– O trabalho, ó grande rei, deve ser honrado como uma manifestação do Dharma. As tuas leis devem exaltar o valor do esforço, pois é através dele que a vida se mantém. A mulher deve ocupar-se dos cuidados do lar, enquanto o homem deve prover para sua família com honestidade e dedicação. A virtude está na ação correta, e ambos, homem e mulher, devem ser guiados pela retidão em todas as suas obras.
Milinda, impressionado com a profundidade das palavras de Nagasena, perguntou por fim:
– E quais são os deveres dos filhos, ó sábio?
Nagasena respondeu:
– Os filhos, ó rei, devem sempre honrar seus pais. O pai que adquire bens por seus próprios esforços, não está obrigado a dividi-los com os filhos enquanto vive, a menos que deseje. Mas após sua morte, os irmãos devem repartir os bens equitativamente, pois a justiça está no equilíbrio. Se o filho primogênito abdica de seu direito, que ele o faça por livre vontade, mas que jamais haja contenda.
Assim, ó rei Milinda, as tuas leis devem ser fundadas no equilíbrio entre a ordem familiar, a prática do Dharma, e a busca pela virtude. Quando tu governares com essas leis, o teu reino prosperará, pois estará alinhado ao caminho do Buda e ao fluxo eterno da verdade.
E Milinda, reconhecendo a sabedoria de Nagasena, inclinou a cabeça em sinal de respeito, pois compreendeu que a verdadeira força de um reino está na retidão de suas famílias e na justiça de suas leis." [110]
Durante o reinado de Strato III Filopátor (r. 25 a.C. – 10 d.C.), boa parte dos territórios de Gandhara foram anexados pelos sakas e Yuezhi, mas os indo-gregos (que muito já se assemelhavam aos nativos indianos em cultura) ainda resistiram (LÉVÊQUE, 1987). No entanto, na mesma semana em que o Basileu Strato faleceu, o rei saka Vijayamitra I o Grande (r. 12 a.C. – 23 d.C.) invadiu Gandhara e conquistou a região.
Muitos historiadores atribuem a queda do Reino Indo-Grego como o verdadeiro marco do fim do Período Helenístico ao invés do fim do Reino Ptolomaico, pois eles foram realmente o último Estado no Oriente governado por uma dinastia totalmente grega e orientada pelo Helenismo, mesmo praticando uma religião asiática. Com o tempo os indo-gregos acabaram se misturando com os indianos e sakas, e sua cultura e ordenamento jurídico desapareceram em meio aos indo-citas (ESTRABÃO, 2016).
Outro grupo helenizado cujo Direito de Família seguia o padrão de Alexandre eram os sakas (também conhecidos como citas orientais), um povo iraniano que se estabeleceu na Ásia Central por volta de 400 a.C. e serviam como mercenários em vários reinos helenísticos (LÉVÊQUE, 1987). Os sakas se helenizaram conforme iam sendo admitidos como mercenários, até que fundaram sua própria confederação chamada Sakastan, onde hoje está o Afeganistão.
O Direito de Família dos sakas era bastante peculiar, pois combinava os direitos helenísticos selêucida e ptolomaico com o seu ordenamento jurídico tribal (KANTOR, 2012). O casamento saka (sakan: Vīvu) era arranjado pela comunidade e não pelos pais, sendo o contrato de casamento celebrado entre os clãs (ESTRABÃO, 2016). O divórcio (sakan: Vibhāga) só era permitido por causas graves como a infertilidade e violência doméstica, mas somente com autorização do Conselho (sakan: Majlis) ou do próprio Rei (saka: Podshoh).
O poder sobre a família era exercido pela comunidade sob o olhar do Podshoh e de seus Ministros, que atuavam como juízes para resolver todos os litígios que surgiam nos núcleos familiares (KANTOR, 2012). O helenismo proporcionou aos nobres sakas controlarem a sociedade por intermédio da regulamentação das famílias.
Os sakas eram em sua maioria zoroastristas e budistas, o que levou a uma fusão das tradições jurídicas do Avestan persa com o Tripiṭaka budista, sob a ordem processual helenística, o que também deu ao Direito de Família saka o caráter interventivo estatal (KANTOR, 2012).
Conforme os sakas foram se expandindo rumo à Índia, seu Direito de Família assimilou boa parte do Código de Manu e do Édito da Babilônia, principalmente pelo contato com os gregos bactrianos e os indo-gregos (CLAY, 2010). O Podshoh saka Maues (r. 98 – 57 a.C.) transformou a Confederação de Sakastan no Reino Indo-Cita, promovendo uma reforma legislativa e judiciária, criando os primeiros tribunais (sakan: Maḥkama).
A criação dos Maḥkama por Maues se chocou com o poder dos Clãs, que não eram mais quem determinava a legitimação dos atos familiares. Agora para se casar, divorciar, receber pensões e adotar filhos era necessária a sentença de um juiz com a chancela do Podshoh, que era dada por meio do selo real entregue ao Governador (sakan: Amātya) da cidade (KANTOR, 2012).
Em 30 da nossa era, o Reino Indo-Cita era um dos mais poderosos do mundo, mas sua prosperidade chamou atenção dos Yuezhi, que há anos haviam derrubado dois Reinos Greco-Bactrianos e se estabelecido no território (ESTRABÃO, 2016). O território saka acabou se tornando alvo dos Kushan (um clã Yuezhi), que conquistaram sua capital Táxila em 76 d.C. Para fugir deles, os sakas migraram para a China, onde se tornaram vassalos da Dinastia Han, mas preservaram sua cultura helenizada. Na China eles fundaram os Reinos de Shule e Khotan, que seriam conquistados pelos muçulmanos na Idade Média, sendo os últimos reinos helenizados da história.
Com uma cultura muito semelhante à dos sakas, os Yuezhi eram um povo turco que vivia inicialmente no norte da China até erem expulsos para a Ásia Central pelos Xiongnu, um povo de origem mongol (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1990). Os Yuezhi se helenizaram rapidamente pelo contato com os sakas, bactrianos e colonos gregos que viviam na região. Além de adotarem o budismo grego e o zoroastrismo bactriano como religiões, eles tinham seu Direito de Família muito parecido com o selêucida.
Comandados pelas Cinco Casas (bactriano: Pāñcā Kāra), os Yuezhi eram guiados pela Casa de Kushan – a mais poderosa e com maior exército –, que se helenizou tanto ao ponto de utilizar o alfabeto grego em sua língua nativa, o bactriano (LÉVÊQUE, 1987). Essa intensa troca cultural com os gregos e sakas fez com que o Direito de Família Yuezhi fosse um dos mais interessantes, pois ele era uma cópia do Direito Grego por um povo de origem turca que não estava inicialmente na esfera de influência helenística.
O Príncipe (bactriano: Sach) atuava como Chefe Político e tinha poder absoluto sobre todas as Cinco Casas, sendo praticamente um rei, intervindo em todos os litígios e se pondo com juiz supremo no ordenamento Yuezhi (KANTOR, 2012). Suas decisões eram incontestáveis e nem mesmo seus sucessores poderiam anular as sentenças proferidas por ele, o que demonstra a influência persa em sua política.
Os Yuezhi se estabeleceram na Báctria após derrubar alguns remanescentes do Reino Greco-Bactriano, incorporando muitos colonos gregos orientais em seu exército e administração (LÉVÊQUE, 1987). Após derrubarem o Reino Indo-Cita, o Sach Kujula Kadphises (r. 32 – 80), contemporâneo dos romanos, declarou a criação do Império Kushan, que se tornaria um dos últimos reinos helenizados da história ao lado de Khotan e Shule, até ser totalmente conquistado em 375 de nossa era pelos Hunos de Kidara.
O Helenismo não apenas transformou os Estados que adotaram a cultura grega combinada a seus costumes nativos, mas influenciou reinos que não possuíram trocas culturais diretas com os gregos, como a Índia.
O Império Maurya, fundado por Chandragupta Maurya (r. 322 – 297 a.C.), foi o único na Antiguidade a dominar toda a Índia, e por influência dos cortesãos gregos (muitos que serviram o próprio Alexandre em vida) trazidos como prisioneiros após ele derrotar Seleuco I Nicátor e conquistar a cidade grega de Alexandria Aracósia, seu Direito de Família passou a ser interventivo para manter controle sobre os indianos (KANTOR, 2012).
Um exemplo é a forma como o Direito de Família está disposto nos Dhaṃma Lipi (prakrit: “Inscrições da Ordem”), promulgados pelo imperador maurya Ashoka, o Grande (r. 268 – 223 a.C.) – neto de Chandragupta – e compilados em prakrit (idioma que deu origem ao sânscrito), grego Koiné e aramaico persa, com nítida influência do ordenamento selêucida e do Código de Manu, combinado ao caráter jurídico do Dharma budista:
"[...] Os deveres relativos às Quatro Grande Virtudes devem ser observados sob o Preceptor por trinta e seis anos, ou por metade desse período, ou por um quarto, ou precisamente até que tenham sido adquiridos. Tendo aprendido, no devido tempo, três Virtudes, ou duas Virtudes, ou uma Virtude, ele deve entrar no estado de chefe de família, nunca tendo se desviado dos votos de estudante. Quando, pela devida observância de seus deveres, ele tiver adquirido as Quatro Grande Virtudes e sua herança de seu pai, e estiver assim inclinado, seu pai deverá primeiro honrá-lo, adornado com guirlandas e sentado em um sofá, declarando como o novo chefe de família. A pessoa nascida de qualquer origem, após ser autorizada pelo chefe de família, tomará uma esposa escolhida pela sua família, que seja dotada de sinais. Aquela que não é uma parente da mãe, não é do mesmo clã do pai, e que não nasceu de relações sexuais (ilícitas) — foi recomendada para o casamento, como já fazem os gregos. Em relação às mulheres, deve-se evitar estas dez famílias (seguintes), mesmo que sejam grandes e ricas em posse de gado, cabras, ovelhas e grãos: Famílias como: aquela em que os ritos sagrados foram abandonados, aquela em que não há homens, aquela em que não há crença em deuses, cujos membros são peludos e sujeitos a hemorroidas, tísica, dispepsia, epilepsia, leucoderma e lepra. Ele não deve se casar com uma donzela de cabelos ruivos[111], nem com uma com membros supérfluos, nem com uma que tenha doença, nem com uma que não tenha cabelo ou tenha muito cabelo, nem com uma que seja tagarela, nem com uma com olhos avermelhados. Nem alguém que tenha o nome de um asterismo, ou de uma árvore, ou de um rio; ninguém que tenha o nome de um demônio; nem alguém que tenha o nome de um pássaro, de uma serpente ou de um morcego; nem alguém com um nome que inspire terror. Deve-se casar com uma mulher de corpo impecável, com nome agradável, com andar como o do cisne ou do elefante, com pelos finos no corpo e na cabeça, dentes finos e membros delicados. O homem sábio não se casará com alguém que não tenha irmão, ou cujo pai não seja conhecido; por medo de que ela tenha o caráter de “filha designada”. Quando alguém convida um homem dotado de conhecimento e caráter e lhe dá sua filha, depois de tê-lo vestido e adorado, isso é chamado de forma “Brāhma”, é o casamento que os hindus praticam e que muito se faz na terra que governa o rei, eu Ashoka. Quando a donzela é dada de acordo com a regra, depois de receber, em obediência ao Dharma, do noivo, um ou dois pares de vaca e touro, isso é chamado de forma “Ārṣa”, é como todos os que obedecem e observam o Dharma do Senhor dos Céus, o Buda, seja indiano, grego ou iraniano, fazem os seus casamentos. Quando o Pai, tendo-os enfeitado, entrega a filha com as palavras, “que ambos cumpram juntos o seu dever”, fazendo-os também repeti-las, — isto é chamado de forma “Prājāpatya”, é como os zoroastristas fazem seus casamentos. A união mútua da noiva e do noivo, através do amor, deve ser conhecida como a forma “Gāndharva”; tem a relação sexual como seu fim e tem sua fonte na luxúria, é como os gregos que não praticam o Dharma do Sacrossanto Buda e praticam a religião de seus deuses do Ocidente se casam. Quando o homem se aproxima da moça furtivamente, enquanto ela está dormindo, ou embriagada ou inconsciente, é a forma “Paiśāca”, é como os citas (sakas) conseguem suas mulheres. O rapto forçado da donzela de sua casa, enquanto ela grita e chora, depois de ter sido espancada, ferida e perfurada, é chamado de forma “Rākṣasa”, o mais perverso e vil dos casamentos, é como os demônios do Sexto Céu se casam. Dos primeiros três casamentos nascem filhos dotados de beleza e da qualidade da bondade, possuindo riqueza e fama, com pleno gozo e retidão, eles vivem por cem anos. Dos outros dois casamentos inferiores restantes nascem filhos, viciados em dizer palavras duras e falsas, e desprezadores do Dharma. De casamentos irrepreensíveis nasce aos homens uma prole irrepreensível; e de casamentos censuráveis, uma criança censurável. Deve-se, portanto, evitar os casamentos censuráveis. Aqueles homens que são viciados em relações sexuais com as esposas de outros homens, o rei, eu Ashoka, os banirei depois de tê-los marcado com punições aterrorizantes. Um homem que se envolva em conversas secretas com a esposa de outra pessoa — se ele já tiver sido acusado de crimes semelhantes — deverá receber a pena de 'primeira punição'. Se, porém, ele não foi acusado anteriormente e conversa com ela por algum bom motivo, ele não incorre em nenhuma culpa; pois no seu caso não houve transgressão. Aquele que conversa com a 'mulher de outra pessoa' em um local de águas, ou em um deserto, ou em uma floresta, ou na confluência de rios, incorre na culpa de 'adultério'. Oferecer ajuda, flertar, tocar em ornamentos e roupas, sentar-se na mesma cama — tudo isso foi declarado como 'adultério'. Se alguém toca numa mulher num local impróprio, ou tolera que isso aconteça quando é tocado por ela, tudo isto, quando feito com consentimento mútuo, foi declarado como "adultério". Mendicantes, bardos, pessoas iniciadas para um rito sagrado e artesãos podem conversar com mulheres, sem restrições. Não se deve conversar com as esposas de outros homens, quando proibido. Esta regra não se aplica ao caso das esposas de dançarinos e cantores, ou das prostitutas; pois esses homens secretamente colocam suas mulheres em contato (com outros homens) e as tentam. No entanto, aquele que secretamente mantém conversações com essas mulheres, ou com servas devotadas a um mestre, ou com ascetas (monjas) femininas, deve ser obrigado a pagar alguma coisa. Se um homem de igual status violar uma donzela relutante, ele merece a morte imediata; mas se ele violar uma voluntária, ele não sofrerá a morte. Mas se algum homem profanar uma donzela por pura audácia, seus dedos devem ser imediatamente cortados, ou ele deve ser multado em seiscentos karshapanas. Se uma donzela contaminar outra donzela, tocando suas intimidades com as mãos, sua multa será de duzentos karshapanas[112]; se mas se a donzela por sua intimida junto à da outra donzela, pagará o dobro de sua taxa nupcial e receberá dez chicotadas. Mas se uma mulher, que não mais é virgem, contamina uma donzela, seja com as mãos ou as intimidades, ela merece ser imediatamente rapada de todos os pelos e cabelos, e sofrerá a amputação de dois dedos, e também será carregada por um burro pela cidade. O homem que tiver relações sexuais com uma asceta (monja) feminina protegida à força deverá ser multado em mil karshapanas; aquele que tiver relações com uma asceta disposta, deverá ser multado em quinhentos karshapanas, e a asceta que quebrou seu voto voluntariamente será exilada. No fogo do casamento, o chefe de família deve realizar os ritos sacros; assim como o rito das 'cinco oferendas' e o cozimento diário. Como os homens em todos os três estados são sustentados apenas pelos chefes de família, com conhecimento e comida, portanto o estado do chefe de família é o mais elevado. Dezesseis dias, incluindo os quatro dias censurados pelos homens bons, foram declarados como a “época” normal para as mulheres. Nos dias pares, os filhos do sexo masculino são concebidos, e os do sexo feminino, nos dias ímpares; portanto, aquele que deseja um filho deve recorrer à sua esposa nos dias pares de sua “estação”. Uma criança do sexo masculino nasce quando a semente do homem é abundante, e uma criança do sexo feminino quando a da mulher (é abundante); quando os dois são iguais, nasce um não-masculino ou um menino e uma menina; quando é fraco e pequeno em quantidade, há falha. Ouça a seguinte dissertação sobre o filho, propício e salutar para o mundo, apresentada pelos sábios patriarcas e pelos grandes sábios. Eles reconhecem que o filho é do marido; mas em relação a alguém que é apenas o progenitor, há diversidade de opinião; algumas pessoas declaram o progenitor, enquanto outras o dono do solo (como sendo o dono da criança). Neste mundo, as sementes semeadas na estação pelos cultivadores, mesmo no mesmo pedaço de terra, brotam em várias formas, de acordo com a sua natureza”. Sobre este ponto, pessoas familiarizadas com a tradição antiga recitam alguns 'Gāthās'[113] cantados por hindus e zoroastristas, no sentido de que o homem não deve semear sua semente no que pertence a outro. O homem é um homem apenas na medida em que consiste em si mesmo, sua esposa e sua progênie. Assim é que os zoroastristas declararam que 'o marido é declarado ser o mesmo que a esposa.' Nem pela venda nem pela repudiação a esposa é libertada do marido; tal é a lei que conhecemos, tal como originalmente proposta por Manu. Tal como acontece com as vacas, éguas, camelos, escravas, búfalos, cabras e ovelhas, não é o progenitor que obtém a prole, assim também acontece com as esposas dos outros. Se um touro gerasse cem bezerros em vacas de outros, esses bezerros pertenceriam aos donos das vacas, e as emissões do touro seriam em vão. Da mesma forma, as pessoas que não têm “solo” próprio — se semeiam no “solo” pertencente a outro homem, conferem benefício ao dono do “solo”, e o dono da semente não colhe fruto. Esta mesma lei deve ser entendida como aplicável à prole de vacas, éguas, escravas, camelas, cabras e ovelhas; bem como de pássaros e búfalos. [...]" [114]
Um fato interessante acerca do Direito de Família nos Éditos de Ashoka é que as relações homoafetivas (ainda que somente sejam mencionadas as relações sáficas) não são desencorajadas, apenas seria um ato imoral e criminoso que alguém do mesmo sexo tirasse a virgindade da parceira, logo, duas mulheres que não fossem mais virgens poderiam se relacionar normalmente sem se casar, algo que se colocava como inovador em comparação com outros textos legais helenísticos que colocavam a homoafetividade como apenas para divertimento sexual entre homens e outros que até a puniam com a morte.
Como o Código de Manu era apenas aplicado aos hindus e jains, Ashoka promulgou seus Éditos para regulamentar as ações do Estado Maurya e dos cidadãos que não praticavam as religiões védicas, como os Kambojas (colonos iranianos que viviam na Índia) e os Yona (colonos gregos que viviam na Índia), ainda que citasse em várias de seus decretos trechos do Manusmṛti hindu e do Avestan zoroastrista (PALMA, 2022).
Além disso, Ashoka nomeou funcionários chamados Mahamatras (prakrit: “Oficiais”), encarregados pela promoção da moralidade em todo o império, inclusive entre os yona budistas ou que praticavam o politeísmo helênico e kambojas zoroastristas, cuja função era intervir em nome do rei em ações judiciais que estivessem presentes crianças, idosos, mulheres, pessoas em situação de rua e os portadores de deficiências, principalmente nas ações de Família.
O Direito de Família de Ashoka demonstra como a influência do Helenismo alcançou lugares que nunca estiveram sob o controle greco-macedônico, pela manifestação helenística no Budismo e pela utilização do aramaico como idioma franco.
A helenização do Direito de Família também acabou afetando a China, principalmente pelo estabelecimento dos sakas na Bacia do Rio Tarim por volta de 200 a.C. e das invasões dos Yuezhi no Turquestão em 130 a.C., contudo, o Helenismo foi levado diretamente para lá após a criação da Rota da Seda com a conquista do Reino Greco-Bactriano pela Dinastia Han, levando cortesãos gregos para a capital chinesa Chang'an (LÉVÊQUE, 1987).
O Imperador Wu de Han realizou uma reforma legislativa na China após conquistar os greco-bactrianos e transformar a região no Protetorado das Regiões Ocidentais (mandarim: Xīyù Dūhù Fǔ), e muitos gregos (mandarim: Yuān) foram nomeados Ministros de Justiça (mandarim: Zǒngzhǎng), o que trouxe para a China o despotismo jurídico interventivo nas famílias:
"Embora no fundo um legalista severo, o imperador Wu escolheu o confucionismo mais compassivo como a filosofia de estado do império Han, e por influência dos seus oficias gregos e bactrianos, ele trouxe a política autocrata dos reinos helenísticos do oeste para a corte chinesa. A ampla adoção da ética e dos princípios confucionistas, junto ao caráter despótico do legalismo helenístico, cultivou uma classe meritocrática de servidores públicos ansiosos e voltados para a comunidade. Em um nível macro, a mentalidade comunitária do confucionismo também fez com que os súditos Han considerassem o império como uma extensão de sua própria comunidade, mas o ideal helenístico colocou o imperador como o chefe único da comunidade.
Para suprir sua necessidade urgente de cavalos de guerra, Wu instituiu um programa nacional de criação de cavalos, onde o estado emprestaria cavalos e pôneis para serem criados por fazendeiros. Usando incentivos fiscais, Wu buscou transformar o império em seus estábulos. Isso eventualmente forneceu a Wu centenas de milhares de novos cavalos, mas mesmo estes não foram suficientes para seus objetivos de guerra. Ansioso para explorar todas as suas opções, Wu se lembrou de um relatório detalhado de seu diplomata Zhang Qian: “misteriosos reinos ocidentais com magníficos ‘Cavalos Celestiais’ que suavam sangue”. Devido a esses relatórios deslumbrantes, Wu fixou seus olhos firmemente nos reinos ocidentais que serviam como vassalos ocidentais dos Xiongnu.
O “Registro do Grande Historiador” de Sima Qian relata que “o Imperador soube de Dayuan (大宛, Reino Greco-Bactriano), Daxia (大夏, Reino Indo-Grego), Anxi (安息 – Império Parta) e os outros, todos grandes estados ricos em produtos incomuns, cujo povo cultivava a terra e ganhava a vida da mesma forma que os chineses. Todos esses estados, foi-lhe dito, eram militarmente fracos e valorizavam os bens e riquezas Han”. O que se seguiu inadvertidamente acenderia uma conexão com o ponto mais distante de expansão de Alexandre, o Grande, e também começou a Rota da Seda.
Depois de 119 a.C., os Xiongnu foram expulsos do Deserto de Ordos e das Montanhas Qilian. De lá, os Han seguiram a retirada dos Xiongnu para as terras de seus vassalos. Ao ouvir que um dos reinos no Vale de Ferghana possuía os lendários “Cavalos Celestiais", Wu enviou seus emissários para obter o máximo que pudesse. A cidade não era outra senão Alexandria Escarte ~ lit. “Alexandria, a Mais Distante” fundada por Alexandre, o Grande, em suas conquistas orientais. A cidade governada pelos gregos serviu como marcador de posto oriental de sua expansão. No entanto, quando a cidade matou o diplomata de Wu, o imperador ficou furioso. Depois disso, ele ordenou 2 campanhas devastadoras contra a cidade-estado.
Em vingança pela morte de seu enviado, o Imperador Wu despachou uma expedição punitiva massiva contra a obstinada cidade-estado. A primeira invasão terminou em fracasso devido ao desgaste e à falta de suprimentos para sustentar o cerco. Insatisfeito, Wu então despachou uma força de invasão muito maior com complementos completos de armas de cerco e vagões de suprimentos.
A enorme legião Han impressionou os vários reinos da Bacia do Tarim e os implacáveis invasores Han consternaram tanto a nobreza grega de Alexandria Escarte que os nobres da cidade mataram seu rei e enviaram sua cabeça aos chineses, prometendo que eles forneceriam tantos Cavalos Celestiais quanto os Han precisassem. Depois de estabelecer um vassalo pró-Han na cidade e garantir os pastos de Ferghana, as forças Han marcharam para casa levando nobres gregos.
Daí, a necessidade insaciável do Imperador Wu por cavalos de guerra foi finalmente satisfeita e o Helenismo foi levado à Chang'an. Com esses Cavalos Celestiais altamente valorizados, os Han garantiram vitórias de longo prazo sobre os Xiongnu. Com o Helenismo altamente em expansão, os Han puderam governar despoticamente por meio da lei sobre todos os povos ocidentais e orientais que conquistaram. Os Han não só foram capazes de superar em homens e equipamentos seus inimigos, mas também ostentavam uma política absoluta, generais bem supridos e agora os melhores cavalos de guerra do oriente. Além disso, os Han também privaram os Xiongnu de seus principais vassalos, os Yuezhi (que logo começaram a destruir os remanescentes gregos na Índia), e do monopólio sobre a Ásia Central." [115]
Um fato interessante é que essa influência jurídica nos Direitos de Família na Índia e China foi proporcionada pela disseminação do Budismo, que era extremamente popular entre os gregos selêucidas, bactrianos e indianos, a exemplo do Basileu Menandro I Sóter, que trouxe a cultura grega para dentro da fé budista (LÉVÊQUE, 1987). Como uma religião por muito tempo grega, o budismo levou aos Estados Orientais a perspectiva helenística da família e de que esta era a base da sociedade – como dito pelo próprio monge Nagasena ao rei Menandro no Milinda Panha –, e ter controle sobre ela significava comandar todo o Estado.
Outro acontecimento que influenciou a expansão do conceito de Direito de Família Helenístico pela Ásia foi a gradual substituição do grego Koiné pelo aramaico, língua de origem siro-assíria que era usada como idioma franco pelos povos iranianos, indianos e chineses para se comunicar com o mundo exterior, até mesmo os selêucidas adotaram o aramaico como idioma jurídico por conta da maior parte da sua população na Síria e Judeia ter o aramaico como idioma primário (CLAY, 2010).
A adoção do aramaico também facilitava a expansão da lei no próprio território, pois como a maioria dos nativos eram falantes de aramaico e só conheciam o básico do grego Koiné, ficavam cientes de que sua família estava sob o controle estatal e como deveriam ser os procedimentos para os atos familiares, sendo o aramaico mais efetivo que o Koiné nesse quesito por dar ciência aos súditos não-gregos que estavam sob o poder dos gregos.
O Direito Selêucida, por se valer do aramaico como fonte de escrita, foi o mais amplamente copiado e disseminado entre os reinos helenizados, principalmente pelo seu caráter autoritário e absolutista, bem como pela sua filosofia de controle social por intermédio da judicialização das famílias. Combinado com o fato de que muitos dignitários selêucidas se converteram ao Budismo, isso facilitou que esses juristas gregos fossem convidados pela nobreza indiana e chinesa para auxiliar nas reformas legislativas.
Além disso, um importante aspecto proporcionado pelo Direito de Família Helenizado era a competência compartilhada com os tribunais religiosos, principalmente nas comunidades zoroastristas e judaicas, o que foi possibilitado pela política helenística de permitir que o Direito Privado nativo fosse observado sob a fiscalização do Estado. Essa influência do Helenismo no Direito Religioso é melhor analisada na legislação do Reino Asmoneano da Judeia, cujo Direito de Família é um dos mais complexos do Período Helenístico.
3.4. O Direito de Família Asmoneano
Um reino helenizado que merece destaque pelo seu Direito de Família organizado é a Judeia, governada pela Dinastia Asmoneana de 142 até 40 a.C., linhagem essa formada por sacerdotes que assumiram a liderança estatal e religiosa judaica após expulsarem os selêucidas de Jerusalém e iniciarem uma enorme campanha militar de conquista de territórios que antes foram controlados pelas nobrezas hebraicas no passado (REINKE, 2021).
Seu primeiro governante, o Sumo Sacerdote (hebraico: Kohen-Gadol) e Príncipe (Koiné: Toparches) Simão Thassi (r. 142–135 a.C.) já traçava planos para codificar o direito consuetudinário oral que se formou ao longo dos anos pelas normas amplas da Torah, e ele criou o Sinédrio (hebraico: Sanhedrin), a suprema corte jurídica e religiosa dos judeus, formada por 72 sacerdotes e sediada no Templo de Jerusalém, com competência religiosa e secular (JOSEFO, 1969).
Foi somente após o Kohen-Gadol João Hircano I (r. 135 – 104 a.C.) se autodeclarar Rei da Judeia (hebraico: Melekh) que isso foi concretizado (NETO, 2019). Em 126 a.C., após reconquistar boa parte do território judaico do controle selêucida e nabateu, Hircano I elaborou junto ao Sinédrio a Mishnah (hebraico: “Repetição”), a primeira obra jurídica paralela a Torah, transformando a jurisprudência dos rabinos e juízes em lei.
Mas o inovador é que este é o primeiro texto legal a dedicar um capítulo especial somente ao Direito de Família, chamado de Nashim (hebraico: “Mulheres”), que possuía sete tratados (hebraico: Masechtot) e dispunha bem mais minuciosamente que a Torah sobre a organização, manutenção, obrigações, deveres e direitos das famílias judaicas, visto que as normas hebraicas do Pentateuco eram muito gerais (HARTMAN, 2024).
Como os Asmoneus estabeleceram um regime teocrático e burocrático helenizado, eles também adotaram o padrão selêucida de intervenção estatal e controle das famílias, no entanto, o Sinédrio poderia vetar e derrubar edições deliberadas na Mishnah ou decretos que oprimissem as famílias e contrariassem a Torah, uma espécie de controle de constitucionalidade:
"O Sinédrio consistia de setenta juízes (anciãos) mais o presidente, ou seja, o estudioso mais destacado. O número setenta corresponde aos setenta “príncipes” que representam as setenta nações gentias na Corte Celestial. Esses setenta “príncipes” são percebidos como cercando a Corte Celestial onde D’us preside, trinta e cinco à Sua direita e trinta e cinco à Sua esquerda. O Nome Inefável que representa תפארת[116] está acima deles. A nação judaica que também é conhecida como תפארת desempenha essa função entre as nações do mundo
Devido à honra do Sumo Sacerdote, o rei vem e se senta como um dos juízes, eles recebem seu testemunho, ele se levanta e vai, e nós deliberamos sobre o caso. Um rei não está sentado no Sinédrio, nem um rei ou um Sumo Sacerdote está sentado em uma corte para intercalar o ano. Com relação a um rei no Sinédrio, a fonte é como está escrito: “Não responda em uma causa, que é explicado como significando: Não responda a uma grande pessoa. Portanto, alguém cuja estatura fará com que os outros juízes tenham medo de contradizê-lo não pode ser nomeado para o Sinédrio”.
Nem um rei ou um Sumo Sacerdote é sentado em uma corte para julgar o que cabe ao Sinédrio. Um rei não serve como juiz sobre este assunto devido ao sustento dos soldados. Os impostos eram coletados anualmente, enquanto os soldados eram pagos mensalmente, então o rei tinha um interesse pessoal em não adicionar um mês ao calendário. Um Sumo Sacerdote não serve como juiz sobre este assunto devido ao frio. Se um mês for adicionado ao calendário e o Sumo Sacerdote tiver que realizar suas imersões de Yom Kippur[117] e andar descalço no chão do Templo mais profundamente no outono frio, ele também terá um interesse pessoal em não adicionar um mês." [118]
A estrutura legal dos anciãos da época dos Juízes e Reis se mistura com a religião ao surgir a figura dos rabinos (aramaico: Rabbi), leigos que não eram sacerdotes, mas se submetiam ao sistema de purificação sacerdotal, ensino da Torah e recebiam a permissão de atuar como juízes religiosos e dirigir o culto nas sinagogas (NETO, 2019).
A Mishnah também estabeleceu um sistema processual refinado, que consistia em um tribunal chamado Bet-din (hebraico: “Casa da Justiça”), que funcionava da seguinte forma:
"Um tribunal de três juízes, estátua sobre os processos civis, ou sobre as reivindicações relativas ao alívio de um objeto por violência, ou sobre as bênçãos. De mesmo modo, um tribunal de três juízes conhece as demandas de danos internos, então, no caso da lei, concorda com uma indenização total, assim como em todos os lugares, e não de acordo com o reembolso da quantia de danos, como também em todos eles obrigar a pagar o dobro, ou o quádruplo, ou o quíntuplo (Ex. 21, 37)." [119]
As decisões desses juízes poderiam ser alvo de Recursos (hebraico: Ir'ur) em um esquema de quíntuplo grau de jurisdição, consistindo nos sacerdotes, nobres, Sinédrio, Sumo Sacerdote e Rei (JOSEFO, 1969). Como a função do rei e do sumo sacerdote era unificada pelos Asmoneus, ocorria somente uma apelação.
A sentença inicial dos juízes poderia ser reformada por qualquer uma dessas autoridades; a decisão reformatória dos sacerdotes só poderia ser reparada pelo Sinédrio e pelo Sumo Sacerdote; a decisão dos nobres poderia ser reformada somente pelo Sinédrio e pelo Rei; os recursos providos ou improvidos pelo Sinédrio, Sumo Sacerdote e pelo Rei eram irrecorríveis. As decisões dos juízes, príncipes e sacerdotes eram exaradas em sentenças (hebraico: Din’im), mas as proferidas pelo Sinédrio e Rei/Sumo Sacerdote eram chamadas de decretos (hebraico: Gezerot).
Em cada governo de um Rei-Sumo Sacerdote (e de uma rainha – hebraico: Malkah) ocorreram edições e adições à Mishnah, cada vez mais com a finalidade de instrumentalização das famílias judaicas (HARTMAN, 2024).
Na sua primeira edição sancionada no reinado de João Hircano I, o contrato de noivado (hebraico: Ketubah) necessitava ser redigido por um notário de direito civil, que daria a autenticação do rei a união a ser celebrada, sendo permitido ao notário modificar cláusulas e adicionar com a aprovação dos pais dos noivos (MISHNAH, 1991).
O casamento (hebraico: Nissu'in) era obrigatoriamente religioso, ficando facultativa a escolha de um rabino ou sacerdote para celebrá-lo, além de que antes de sacramentar o matrimônio, o celebrante poderia remover ou adicionar cláusulas que acreditasse serem pertinentes no Ketubah. O casamento era registrado por um notário de direito público, sendo criado um Livro Familiar (hebraico: Shtar Tena'im).
O casamento por levirato (hebraico: Yibbum) era registrado no mesmo Shtar Tena'im do falecido por um notário de direito público. As obrigações matrimonias judaicas (hebraico: Shalom bayit) compreendiam a honra e sujeição ao marido, e a manutenção e subsistência da esposa, que saía da autoridade de seu pai e se colocava sobre o poder do esposo, possuindo autonomia para gerir o lar, mas não para atuação civil.
O marido possuía a permissão de anular os atos e obrigações celebrados pela esposa sem a sua autorização, e os bens adquiridos na constância da união pertenciam somente ao marido, mas o dote pago pela noiva era garantido à esposa nos casos de divórcio solicitado pelo homem e abandono pelo marido (HARTMAN, 2024).
O divórcio (hebraico: Get) na Mishnah de Hircano I poderia ser consensual (hebraico: Mesader gittin), e o litigioso (hebraico: Mesorevet gittin) só era permitido ao marido (MISHNAH, 1991). A carta de divórcio (hebraico: Sefer Keritut) era redigida por um notário de direito privado, mas necessitava da homologação de um juiz civil da Bet-din para que gerasse efeitos e declarasse a separação do casal e permitisse um novo casamento.
As mulheres só poderiam requerer o divórcio consensual, mas era feita uma exceção ao litigioso para o caso de adultério, impotência sexual e erro sobre pessoa (MISHNAH, 1991). O divórcio em geral necessitava de indicação de culpa, e o rol era determinado no Nashim:
"Se um homem se recusa a prover sustento à sua esposa, ou a manter relações conjugais com ela, ela pode exigir o divórcio. Se um homem trabalha como curtidor de couro, ou tinge tecidos com púrpura (um trabalho que envolve cheiros desagradáveis), sua esposa pode pedir o divórcio. O cheiro constante é considerado insuportável, e a mulher tem o direito de buscar a separação.
Se uma mulher é acometida por lepra ou possui uma afecção que produz mau odor, seu marido pode pedir o divórcio, mesmo que ela não queira. Um homem deve divorciar-se de sua esposa se, após dez anos de casamento, eles não tiverem filhos, a menos que haja uma condição clara que explique a ausência de filhos. Se a esposa não gosta dos alimentos que seu marido prepara e essa aversão é um problema contínuo que afeta seu bem-estar, ela pode pedir o divórcio. O marido deve garantir que a esposa esteja satisfeita com suas necessidades alimentares para preservar a harmonia conjugal.
Se um homem muda seu nome para um que é considerado desonroso ou indesejável, e a esposa não pode aceitar essa mudança, ela pode buscar o divórcio. A identidade do marido deve ser respeitável e aceitável para a esposa. Se um homem fez promessas específicas à sua esposa no momento do casamento e não as cumpre, a esposa pode exigir o divórcio. O descumprimento de promessas que afetam as expectativas e o bem-estar da esposa pode ser motivo válido para a separação. Se um casal não consegue conviver juntos devido a desentendimentos constantes, falta de comunicação ou outros problemas que tornam a vida em comum impossível, ambos têm o direito de buscar o divórcio. A convivência harmoniosa é essencial para a manutenção do casamento.
Se a esposa é de um temperamento tão difícil que torna a convivência insuportável, o marido tem o direito de pedir o divórcio. A dificuldade em manter uma relação harmoniosa pode justificar a separação. Se a esposa não cumpre com os deveres conjugais acordados, incluindo a intimidade, o marido pode buscar o divórcio. A falta de cumprimento das obrigações conjugal pode ser um motivo para a separação. Se a esposa não cumprir com as condições estabelecidas no dote, como não trazer a quantia acordada ou cumprir outras condições acordadas, o marido tem o direito de pedir o divórcio.
Se a esposa é acometida por uma doença grave que afeta a convivência ou a capacidade de manter um relacionamento saudável, o marido pode pedir o divórcio. Se o marido é impotente e essa condição afeta a vida conjugal e os desejos de ter filhos, a esposa pode buscar o divórcio. A incapacidade de cumprir com os aspectos fundamentais do casamento pode justificar a separação. Se a esposa não souber cozinhar, e não avisar no noivado, e o marido passar fome por isso, o marido pode requerer o divórcio." [120]
A hierarquia familiar contemplava três classes de filhos: os Taharah (hebraico: “Puros”), Mamzerut (hebraico: “Impuros”) e Asufi (hebraico: “Órfãos”), possuindo como indicador o casamento (NETO, 2019). As concubinas não estabeleciam uma relação familiar, mas contratual com o mestre, sendo consideradas como servas, mas os filhos nascidos delas eram considerados puros.
Nenhum filho concebido por adultério poderia ser reconhecido pelo pai biológico, mas outro homem poderia assumir sua paternidade socioafetiva (hebraico: Hakara chevratit-regshit), contudo, ele não possuiria os mesmos direitos que os filhos naturais do pai que o perfilhou (MISHNAH, 1991). O reconhecimento era perpétuo, e não havia nenhuma possibilidade de negar a paternidade, mesmo se constituída em vício.
A adoção agora era judicial, e seu procedimento era disposto da seguinte forma no Nashim:
"Aquele que cria uma criança é como se tivesse dado à luz a essa criança. Uma pessoa que cria um órfão em sua casa e escreve em um contrato perante o juiz “é meu filho” ou o órfão escreveu “meu pai ou mãe”, não é considerado falso, é kosher[121], pois eles o criaram. Aquele que cria alguém e cuida dele merece honra e respeito mais do que um pai ou uma mãe. Se a criança é produto de um caso extraconjugal de uma mulher judia casada, a criança é um mamzer. Se a criança é produto de um relacionamento incestuoso judaico, a criança é um mamzer. Se o pai da criança está desaparecido e a mãe está morta, a criança é órfã.
Assim, idealmente, os pais são verificados quanto ao status de seus filhos e então não há problemas. Se não houver provas, a lei diz que se pode seguir a maioria da cidade. Os pais adotivos não substituem inteiramente os pais biológicos. Na lei, os pais biológicos determinam a identidade da criança.
Se a mãe biológica for judia, isso significa que a criança também é judia. Neste caso, o pai biológico judeu determina então o status tribal da criança como um Kohen[122], Levita ou Yisrael. Se a criança nasce um Kohen, ela deve aceitar as obrigações sacerdotais que acompanham esse status, independentemente de o pai adotivo também ser um Kohen. Os pais biológicos também determinam se uma criança requer um “Pidyon Haben”[123]. Se um casal que já adotou um menino mais tarde der à luz outro menino por meios naturais, o “Pidyon Haben” precisará ocorrer para seu segundo filho." [124]
Após o divórcio, os filhos ficavam sob a guarda (hebraico: Mishmeret) do pai e as filhas com a mãe, e não se deveria dar ouvido as vontades das crianças, pois elas eram consideradas incapazes (MISHNAH, 1991). Caso o pai tomasse as filhas à força ou a mãe os filhos, o guardião poderia ir ao tribunal e solicitar uma liminar, que deveria ser apresentada na base militar da cidade, e os soldados buscariam a criança raptada de volta.
Os pais possuíam o usufruto livre de tudo o que os filhos obtivessem de proventos, e poderiam alienar e gravar ônus sem o consentimento deles até a maioridade, que era relativa a partir dos 12 anos para os meninos e dos 15 anos para as garotas, e absoluta à ambos partir dos 21 anos ou do matrimônio contraído antes dessa faixa etária (HARTMAN, 2024).
O Nashim instituiu um sistema complexo de prestação alimentícia pelo pai às filhas enquanto fossem solteiras e habitassem com a mãe:
"Se um homem divorciar-se de sua esposa e houver filhos do casamento, o tribunal deve determinar uma pensão para a manutenção dos filhos. O sustento dos filhos deve ser garantido a partir da propriedade ou dos rendimentos do pai, e a quantia será fixada de acordo com as necessidades dos filhos, até que eles atinjam a maioridade. Assim como a ketubah garante à esposa uma compensação em caso de divórcio, a pensão deve ser garantida como um ônus sobre a propriedade do pai, antes de todas as outras dívidas, para que os filhos não fiquem desamparados. Se o pai tentar transferir seus bens para terceiros de modo a evitar o pagamento da pensão, o tribunal tem o direito de recuperar esses bens para assegurar o sustento dos filhos.
Se o pai estiver ausente ou não possuir bens suficientes, o tribunal pode vender a propriedade dele, da mesma forma que o campo é vendido para sustentar a esposa (como no caso da ketubah), e o valor será destinado à pensão dos filhos. Se o pai se recusar a cumprir com sua obrigação, o tribunal pode impor uma multa ou aumentar a quantia devida, conforme necessário para a manutenção dos filhos. Caso o pai venha a falecer, a responsabilidade pelo pagamento da pensão será transferida para seu espólio, e eles deverão garantir que os filhos continuem recebendo o sustento necessário até a maioridade.
Embora não haja obrigação de sustentar a esposa após o divórcio, o sustento dos filhos é considerado um dever sagrado, e o tribunal deve agir em conformidade para garantir que não falte aos filhos o necessário para sua sobrevivência e educação. Quando uma mulher, filha de Israel, esposa de israelita, comparece diante dos dayyanim[125] e alega que seu marido atravessou o mar para terras estrangeiras, deixando-a sem sustento para os filhos e sem meios de prover com o trabalho de suas mãos, o tribunal deve investigar e dar-lhe o divórcio por procuração.
Se os juízes confirmarem a falta de recursos e não encontrarem propriedade disponível para alienação, devem buscar qualquer bem remanescente. Caso se encontre um campo, mesmo que seja o único, este será vendido para garantir a pensão alimentícia dos filhos. O campo deverá ser anunciado em leilão determina a lei acerca dos leilões, mas o será apenas aos seus parentes até o sétimo grau. Se, após o leilão, um parente (próximo ou distante) oferecer uma quantia adequada, a venda deverá ser confirmada por essa soma, estipulando-se que o parente pagará, da quantia recebida, uma pensão mensal aos filhos do que sumiu. Os juízes certificarão a venda em documento legal, garantindo que nem o desaparecido, nem qualquer outra pessoa, poderá reivindicar o campo vendido. O parente tomará posse do campo e poderá dispor dele como desejar, sendo seu por herança, venda ou legatário.
Se o desaparecido regressar e tentar recuperar o campo em tribunal, seja ele judaico ou gentio, sua reivindicação será nula, como um caco de cerâmica quebrado. Os juízes impõem uma multa ao marido fugitivo, a ser paga ao parente, caso ele seja processado por esta questão. A venda é garantida como qualquer outra transação legal, e os herdeiros do marido devem proteger o parente de qualquer reivindicação. O sustento dos filhos é prioridade e deve ser mantido intacto, como se o marido próprio houvesse feito a venda.
É claro que, para ser totalmente eficaz, o valor estipulado no momento do casamento deve ser significativamente maior do que qualquer possível pensão alimentícia. Os tribunais civis consideram que o casamento foi dissolvido mediante a emissão de uma sentença de divórcio e, salvo uma pensão alimentícia, o marido fica isento de outras obrigações no que diz respeito ao sustento financeiro." [126]
Os pais poderiam nomear um tutor (hebraico: Shomer) para cuidar dos bens herdados pelos filhos caso eles falecessem. Essa nomeação poderia ser em testamento, escritura privada ou pública, autenticada por um notário e homologada pelo juiz secular, que dava validade ao instrumento e notificava o Shomer, que não poderia se escusar do cargo (MISHNAH, 1991).
A tutela seria exercida até a maioridade absoluta com 21 anos ou o casamento antes essa idade. Mas se tivessem 21 anos e ainda fossem solteiros, a tutela poderia ser estendida até se casarem. O tutor também possuía o usufruto livre da herança dos pupilos, mas a alienação de bens e gravação de ônus necessitava de provimento judicial.
Hircano I também estabeleceu na Mishnah, em um tratado chamado Sanhedrin (hebraico: “Sinédrio”), o Rito Processual Judaico organizado, com estabelecimento de competência, jurisdição e ritos regulamentados, bem como as funções processuais a serem exercidas pelos juízes, anciões, sacerdotes, príncipes, Rei/Sumo Sacerdote e pelo Sinédrio, que deu nome ao tratado por em seus primeiros capítulos estar disposto seu Regimento Interno (NETO, 2019).
A competência para julgar questões relativas ao Direito de Família era dos juízes cíveis, a jurisdição era da cidade onde o autor era domiciliado e o rito processual era todo oral, cujas partes (autor e réu) necessariamente deveriam comparecer na audiência (NETO, 2019). Caso o réu se recusasse a comparecer o autor poderia buscá-lo à força ou o juiz poderia ordenar que os soldados o trouxessem, além da presença de amigos, conhecidos e familiares, os quais serviriam de testemunhas dos fatos presenciadas.
Os primeiros judeus que poderiam ser descritos como advogados foram provavelmente os Sanegorim (aramaico: “Defensores”), baseados nos Synegoroi do ordenamento jurídico ptolomaico e selêucida para auxiliar os requerentes ou requeridos quando desconhecessem a lei, não soubessem como postular em juízo ou fossem incapazes (NEVES, 2020).
Isso foi copiado para o sistema judicial judaico após a criação das Bet-din e a outorga da Mishnah, como resultado da judicialização dos litígios e atos familiares, decorrente do helenismo que se instalou na Corte dos Asmoneus.
Apesar da regra estabelecida por Simão Thassi segundo a qual os indivíduos deveriam defender seus próprios casos, esse obstáculo logo foi contornado pela tendência crescente nas legislações helenísticas de pedir ajuda a um defensor técnico, e com o tempo surgiram os primeiros Sanegorim judeus.
Essa defesa começou a ser realizada pelos juristas que atuavam como Assessores dos Príncipes e rabinos, começando a serem estabelecidos os honorários. Os Sanegorim eram dispensáveis, já que ainda pairava entre os judeus a tese de que cada um deveria fazer a própria formulação do pedido, mas era aconselhável a presença de um defensor se houvesse desconhecimento das partes acerca da matéria do direito pleiteado.
Após o pedido do autor e a contestação proferida pelo réu ou por seus advogados, o juiz exarava sua decisão por escrito em sentença. Caso houvesse insatisfação com a decisão proferida em juízo, seguia-se o procedimento recursal quíntuplo (MISHNAH, 1991).
Hircano também possibilitou no Tratado Sanhedrin que casos difíceis solucionados pelo Sinédrio e pelo Rei-Sumo Sacerdote fossem compilados na Mishnah para servirem de jurisprudência (aramaico: Gemarah) para vincularem e unificarem as decisões dos tribunais seculares e religiosos na resolução de casos parecidos (MISHNAH, 1991).
Um dos casos que mais chama atenção é o de Ahiqar bar Delaiah × Yehoishema bat Ananiah (MISHNAH, 1991). Ahiqar era Dirigente do Príncipe Asmoneu de Jericó, e sua esposa Yehoishema solicitou o divórcio na Bet-din da cidade alegando ausência de sexo, então Ahiqar se recusou a dar a Carta de Divórcio alegando que ele apenas era muito ocupado com o cargo, fazendo que o juiz não obrigasse Ahiqar a ceder o divórcio.
A mulher recorreu ao Príncipe de Jericó, que também se negou a deferir o divórcio, relatando na sentença que por ser o superior de Ahiqar, sabia que ele a amava muito e que apenas se ocupava com os serviços, o que ocasionava que ele ficasse cansado e não pudesse manter relações com ela.
Yehoishema recorreu a Hircano, que na audiência deferiu seu recurso, fixando como tese jurisprudencial que “o homem que não coabita sexualmente com sua esposa, alegando que está cansado pelo labor, não se exime da culpa do divórcio por ausência de sexo, devendo ser obrigado a dar-lhe a carta de separação” (MISHNAH, 1991).
Outra tese fixada foi no caso Yahir ben Zakir × Shelah ben Yahir. Yahir era Intendente na corte de Hircano em Jerusalém e havia se aposentado, mas ele acabou passando por problemas financeiros após um grupo de saqueadores árabes incendiarem seus campos. Ele então pediu ao seu filho Shelah, que era um Comandante da Marinha Asmoneana em Gaza que lhe desse uma pensão, pois quando se divorciou de sua esposa ele pagou pensão para ela, Shelah e seus irmãos, mas o filho se recusou alegando que foi abandonado pelo pai.
Yahir então solicitou a pensão judicialmente na Bet-din de Gaza, mas o juiz alegou incompetência territorial e que o Nashim não previa pensão alimentícia para o pai. Yahir recorreu ao Sinédrio, que decidiu repassar o caso ao Rei Hircano por se tratar de seu ex-funcionário. Hircano deu provimento ao recurso de Yahir e fixou o seguinte precedente: “O filho deve pagar pensão ao seu pai necessitado, pois o vínculo do sangue é o que denota a legitimidade de pedir e de pagar” (MISHNAH, 1991).
No curto governo do sucessor de Hircano I, seu primogênito Aristóbulo I Fileleno (r. 104 – 103 a.C.), foi outorgado uma Takkanah (hebraico: “Melhoria”), um decreto semelhante a uma emenda constitucional, de sua autoria para editar a Mishnah, mas só houve uma revisão no Nashim ordenando que o nome de Deus – YHWH em hebraico – constasse nos Ketubot e nos Shtar Tena'imot, sob pena de nulidade do ato praticado (MISHNAH, 1991).
No governo de Aristóbulo houve apenas uma Gemarah relacionado ao caso Yonah bar Taphos × Lei, onde o seu casamento foi anulado por um rabino de Séforis em virtude de sua Ketubah não trazer o nome YHWH no fechamento. Yonah apresentou uma reclamação ao juiz alegando que o notário que lavrou o contrato desconhecia a Takkanah que alterou as regras da Mishnah, mas a Bet-din negou deferimento com o fundamento de que a Lei era soberana e seu desconhecimento não justificava a anulação de atos jurídicos. Yonah recorreu aos Sacerdotes, que negaram afirmando que a Lei não poderia ser combatida.
Ele então apresentou recurso ao Sinédrio, que julgou parcialmente favorável fixando como Gemarah que “o desconhecimento da lei ou de sua alteração por um funcionário do reino não justifica a anulação das negatórias com base na mesma lei, mas se traz prejuízo ao casamento, que tem proteção especial, deve ser anulada a negatória” (MISHNAH, 1991).
A Takkanah que mais editou o Nashim foi a sancionada por Alexandre Janeu (r. 103 – 76 a.C.), irmão e sucessor de Aristóbulo. Janeu era conhecido por transformar o governo burocrático implantado por Hircano I em um regime militar autoritário, despótico e absolutista, que acabou refletindo no Direito de Família disposto na Mishnah (BABOTA, 2020).
Os comandantes militares e generais judeus agora recebia o mesmo poder dos rabinos, juízes e sacerdotes, desde celebrar o contrato de noivado até declarar a ausência e a sucessão provisória, todos os atos previstos no Nashim, mesmo que houvessem juízes disponíveis na Bet-din (NETO, 2019). Os militares obrigatoriamente deveriam levar suas questões jurídicas aos seus superiores ou diretamente ao Rei, que era o Senhor da Guerra.
O noivado não era mais de iniciativa privada, o Ketubah agora era redigido por um notário de direito público, necessitando de homologação pela autoridade religiosa, judicial ou militar competente, e uma cópia do contrato era enviado para os arquivos reais do Príncipe Asmoneu que governava a cidade (MISHNAH, 1991). Nesse ponto da história judaica, todas as cidades na Judeia eram governadas por Asmoneus (REINKE, 2021).
A celebração do casamento deveria ser pública, e se o homem fosse militar, deveria usar os trajes de batalha, sob a penalidade de seu casamento ser anulado. Outro motivo de anulação era a ausência do superior hierárquico do nubente, que deveria dar a benção (aramaico: Berakhah) junto dos rabinos ou sacerdotes celebrantes.
O Yibbum não poderia ser escusado pelo irmão, mas sua ocorrência só era obrigatória mediante a manifestação da viúva (BABOTA, 2020). Um novo dever nupcial foi incluído, o da fidelidade (aramaico: Hemanuta), que também se aplicava ao noivado. Os bens que os cônjuges adquiriam na constância do matrimônio pertencia a quem adquiriu, e a doação em vida aos filhos era permitida.
O Get poderia ser requerido na via judicial ou solicitado no quartel militar cidade, e somente mediante a demonstração de culpa e pelos motivos elencados no Nashim, mas na via litigiosa necessitava agora da presença de 3 testemunhas idôneas para provar a impossibilidade da comunhão plena de vida do casal (MISHINAH, 2021).
Contudo, a maior modificação foi a restrição ao divórcio imotivado pelo marido e pela esposa, bem como a possibilidade de coerção ao marido para entregar a Carta de Divórcio à mulher que requeresse a separação pela sua recusa:
"O marido não pode se divorciar de sua esposa quando ela é louca, quando ela está em cativeiro ou quando ela é menor, tão jovem que não consegue entender ou cuidar de seu get. Se o marido não souber o que dispor no get, deve ter a assistência de alguém versado na lei, cujo dever deve ser de tentar reconciliar as partes, antes de ir ao tribunal e a menos que surgisse razão suficiente para o divórcio. Se o marido for louco, ele não pode se divorciar de sua esposa; e se ele estiver temporariamente perturbado ou delirante, ou intoxicado, ele é, por enquanto, incapaz de realizar isso, bem como outros atos legais. Um surdo-mudo, de nascimento ou por enfermidade, não pode se divorciar de sua esposa a menos que ele tenha se casado com ela depois de se tornar surdo-mudo.
A esposa nunca deve obteve o direito de dar ao marido um geṭ, mas quando o tribunal decidir que ela tem o direito a se divorciar dele, ele foi forçado a dar a ela um geṭ. É permitido as mulheres enviarem cartas de divórcio aos seus maridos para eles autorizarem e enviarem ao tribunal para autenticar. Qualquer outra maneira da mulher se divorciar do marido serão reconhecidas como violações da lei e não deve se tornar precedentes para outros casos.
Se a mulher desejar o divórcio e marido se lhe negar o get, ela irá aos dayyanim, e eles lhe intimarão a apresentar a carta sob pena de multa. Se ele se recusar, pagando a multa, então deverá ser notificado pelo governador da cidade, que lhe ordenará a dar o get. Se ele não pagar a multa e se notificado pelo governador se recusar a dar o get, ele será preso e de lá só sairá se der o get. Se ele se recusar, o governador o açoitará até que dê a carta de divórcio. Sendo açoitado por sete dias e recusando-se ainda, será denunciado ao rei, que lhe dará o decreto de morte por desobediência ao governador. Se até o dia em que for marcada sua morte ele ainda se recusar, o rei notificará a esposa se deseja que ele morra ou que o rei lhe dê o get por procuração. Se ela requerer o get entregue pelo rei, o marido não lhe partilhará os bens e não irá pagar a pensão dos filhos e o valor da ketubah a ela. Mas se ela optar pela morte do marido, o rei o executará com ferro derretido, e ela será viúva, estando liberada da obrigação do matrimônio como se tivesse se divorciado. Ela terá todos os direitos da herança, e os valores da ketubah que lhe cabem.
Os tribunais obrigarão a separação do marido e da esposa por motivos de ordem pública, contra a vontade de ambas as partes. Entre esses casos estão os seguintes: o casamento de pessoas dentro dos graus proibidos enumerados em Lev. 28; o casamento de um judeu e um não judeu; o casamento com um “mamzer” ou um “natin”; o casamento de uma adúltera e seu amante. A mesma regra se aplica se uma das partes for afligida pela lepra; ou se eles estiverem casados por dez anos e nenhum filho nascer deles, embora a prática de impor a separação no último caso necessite de análise da vontade dos cônjuges." [127]
Concedida a Carta de Divórcio, o imóvel do casal deveria ser deixado para quem ingressou com o pedido, mas se houvessem muitos filhos menores, o julgador a titularidade do bem poderia ser lavrada no nome da mulher, pois entendia-se que muitas crianças poderiam ser um encargo pesado e desnecessário para a família da ex-esposa (MISHNAH, 1991).
As pessoas portadoras de psicopatologias incapacitantes eram proibidas de casar e caso a incapacidade adviesse após o casamento, o cônjuge poderia solicitar o divórcio sem testemunhas, mas somente na Bet-din com a análise de todos os juízes cíveis.
Crianças com menos de 6 anos, meninos ou meninas, tinham sua guarda decretada pelo tribunal à mãe, mas os meninos de 7 anos em diante eram entregues à custódia do pai, pois ele deveria ensinar o filho a se tornar homem:
"O princípio geral pelo qual o tribunal deve operar é que, para crianças de até seis anos, sejam meninos ou meninas, a custódia é dada à mãe. Para crianças com mais de seis anos, os filhos geralmente seriam colocados sob a custódia do pai, já que ele tem a obrigação primária de educar a criança e criá-la como um judeu. As filhas devem ser colocadas com suas mães, já que as filhas se tornarão mais bem-educadas nos modos de vida que são indígenas a elas por meio do relacionamento mais íntimo que terão com suas mães.
Essas diretrizes gerais, da criança até os seis anos indo para a mãe, e depois dos seis anos indo para o pai do mesmo sexo, estão todas sujeitas a mudanças com base nas circunstâncias. Assim, uma mãe obviamente inapta que não cuida da criança, ou que está habitualmente bêbada, ou é louca, não poderá reivindicar o direito legal à custódia. O tribunal pode decidir não deixar a criança com a mãe, mesmo que ela tenha menos de seis anos, e a entregar ao pai." [128]
A tutela dos asufi'im, questões de filiação e o pagamento de pensão alimentícia aos filhos foram mantidas da mesma forma que nos dias de Hircano. Mas duas inovações importantes foram trazidas por Janeu em sua Takkanah (BABOTA, 2020). A primeira, copiada do Direito Romano, foi a possibilidade de ingressar com a declaração de ausência (aramaico: Hakrazat ha'edur) de um oficial militar desaparecido para possibilitar sua sucessão provisória.
Declarado o soldado como ausente após 5 anos desaparecido na guerra ou campanha longe de seu lar, um curador (aramaico: Apotropos) era nomeado para cuidar de seus bens, pois ele era considerado como incapaz, e seu patrimônio era partilhado entre os descendentes e a meação de sua esposa (MISHNAH, 1991). A diferença com o instituto da declaratória de ausência existente em nosso ordenamento jurídico é que o curador do ausente era o seu superior militar e o ausente era considerado incapaz.
O último instituto inserido pela Takkanah de Janeu foi a curatela dos adultos incapacitados, desenvolvida também pelos romanos e com aplicação inédita no Oriente (NETO, 2019). As pessoas com transtornos mentais e deficiências em geral eram consideradas absolutamente incapazes ao lado das crianças menores de 12 anos.
Essas pessoas deveriam ser submetidas à curatela, onde o cônjuge, pai ou parente próximo (que deveria ser homem) cuidaria dos bens do curatelado e o representaria perante o Reino. A curatela era requerida judicialmente ou também perante a autoridade militar da cidade, e o termo era lavrado por um notário de direito público (MISHNAH, 1991).
Tanto o rei Asmoneu como seus ministros e os príncipes que governavam as cidades da Judeia possuíam Superintendentes (hebraico: Mefake'achim), responsáveis por supervisionar as atividades dos servidores públicos em suas respectivas funções (HARTMAN, 2024).
Como os juízes – desde a época de Simão Thassi – eram funcionários do Governo Asmoneano, Janeu ordenou que um grupo de Mefake'achim inspecionasse as ações que envolviam a família, os incapazes, a terra e o exército, chamados em aramaico de Qamya (“Pilares”), consideradas a base da sociedade e, portanto, deveriam estar sob o olhar e controle do Estado. Esse sistema de supervisão estatal da justiça foi copiado dos Nomárchōi selêucidas e Epistrategoi ptolomaicos.
Janeu também trouxe uma alteração ao Tratado Sanhedrin que foi o ápice da autocracia Asmoneana. O Rei agora poderia agir em primeiro grau como juiz e não somente receber recursos para anular decisões, podendo inclusive atuar no Direito de Família concedendo divórcios, ordenando o pagamento de pensão alimentícia, fixando a guarda dos filhos, declarando a ausência do desaparecido e a interdição do incapaz. Além disso, suas decisões eram irrecorríveis e as mais complicadas também viravam Gemarot.
Uma Gemarah bastante interessante é a do caso Tamet bat Alexandre × Yehudah bar Antíoco (MISHNAH, 1991). Yehudah era irmão mais novo de Tamet, um veterano de guerra que levou um golpe na cabeça e ficou com sequelas. Yehudah solicitou a interdição de Tamet na Bet-din de Gadara e a curatela foi deferida, mas Tamet recorreu ao General da cidade alegando que estava com plena consciência e que como era militar a curatela deveria ter sido requerida no quartel.
O General negou seu recurso com o fundamento de que ele era inválido e que a sentença era válida por Yehudah não ser militar, mas servidor da coroa. Com isso, Tamet recorreu à Janeu, que indeferiu o pedido e fixou que “todo homem inválido de corpo e de mente é sujeito à tutela de sua vontade e de seus bens, mesmo que manifeste a mente sã, seu corpo defeituoso o impede de viver plenamente” (1991).
No caso Petese ben Simeão × Mibtaniah bat Sharon, Janeu exerceu seu poder como juiz com decisão irrecorrível pela primeira vez em uma ação de família (MISHNAH, 1991). Petese era Assessor de Janeu em Alexandrium, e decidiu se divorciar de sua esposa imotivadamente, requerendo em petição escrita ao Rei, que na época estava em campanha militar na Arábia. Sabendo que seu marido enviou o pedido formal ao Rei, Mibtaniah enviou uma contestação por escrito, informando que concordava com o divórcio, mas o palacete do casal em Jerusalém foi um presente de seu pai e deveria pertencer a ela.
Janeu convocou uma audiência em campo de batalha e intimou o casal, mas Mibtaniah estava menstruada e enviou três Sanegorim para representá-la. Janeu homologou a Carta de Divórcio, e deferiu o pedido de Mibtaniah, mesmo com Petese alegando que a titularidade do imóvel era em seu nome.
Alexandre Janeu então fixou um precedente no decreto homologatório do divórcio: “Toda propriedade que foi presenteada a apenas um dos esposos pertence a este, e o outro não lhe tem direitos. Ainda que o contrato de posse lhe tenha sido lavrado no seu nome, este pertence a quem foi agraciado com o bem” (1991).
Um precedente inusitado é o formado no caso Yosef bar Aruk × Yakov ben Hazakah (MISHNAH, 1991). Yosef, o Galileu era um rabino renomado e ainda era um escriba no Palácio Real da cidade de Jotapata, e havia se divorciado de sua esposa Ada, com quem casou quando ela possuía 15 anos, após ela o rejeitar quando ficou adulta aos 21 anos, lhe pagando um Ikar de 50 siclos de prata mensais.
Ada se casou com Yakov, que era um oficial galileu na cidade de Séforis. Contudo, Rabi Yosef ainda pagava a pensão para ela, causando desgosto em Yakov, que fez uma reclamação na Bet-din, e o juiz acatou o pedido ordenando que Yosef cessasse o pagamento, mas ele se recusou e continuou pagando a pensão alegando que Yakov não garantia à Ada o mesmo padrão de vida que ela possuía quando estava casada com ele.
Antes que o juiz pudesse ordenar sua prisão por desobediência, Rabi Yosef apelou ao Rei Janeu, que deferiu seu pedido e fixou uma das maiores Gemarot do Nashim regulamentando a prestação alimentícia à ex-cônjuge:
"O direito da esposa sob a ketubah é absolutamente garantido a ela pela lei; e ela não tem permissão, mesmo voluntariamente, de liberar seu marido de sua obrigação para com ela. Caso o marido recuse à esposa seus direitos conjugais, ele deve ser punido com uma adição semanal à ketubah, até que venha a ceder. Em tais casos, o tribunal, por sua sentença, deve aumentar o valor devido à esposa sob a ketubah, e tal sentença é praticamente o mesmo que o decreto do rei. O direito da esposa de receber o pagamento do valor ao qual ela tinha direito sob a ketubah depende de sua boa conduta.
As seguintes mulheres não têm direito ao seu pagamento: Uma adúltera; uma donzela que foi culpada de incontinência antenupcial; uma mulher que praticou fraude contra seu marido levando ao seu casamento; alguém que ofendeu alguma lei ou decreto dos príncipes ou do rei, envolvendo torpeza moral; a mulher que, tendo sido casada durante sua menoridade, recusou, ao atingir sua maioridade, continuar a viver com seu marido; uma mulher casada com seu marido em desrespeito aos graus proibidos de consanguinidade; uma mulher que abandonou seu marido, ou que se recusou a coabitar com ele.
Embora o marido não seja obrigado a pagar à esposa mais do que o valor especificado na ketubah, na sentença do tribunal ou no decreto do rei, é considerado louvável que ele a sustentasse se ela passasse necessidade após o divórcio. Se desejar, não se afaste da tua carne. Isto significa, não retire ajuda da tua esposa divorciada. O auxílio à esposa divorciada é uma ação melhor do que o sustento de qualquer outra pessoa pobre. Mas se ela se casar novamente, para que não haja furor no novo esposo, é melhor que o ex-marido não tenha relações pessoais diretas com ela. Envie o dinheiro para sua manutenção por um mensageiro." [129]
O último caso de família julgado por Janeu e transformado em Gemarah foi o de Mahseiah bar Hosheah × Yedaniah ben Nefainab, um dos mais emblemáticos do Nashim (MISHNAH, 1991). Mahseiah era ninguém mais do que primo de Janeu e era um influente comandante da Cavalaria Asmoneana.
Ele se divorciou de sua esposa Frema e a guarda de todos os seus filhos foi entregue a ela por serem menores de 7 anos. Frema acabou se casando com Yedaniah, que era um Asmoneu descendente de João Gadi, o irmão mais novo do herói Judas Macabeu.
Frema faleceu e seus filhos ficaram sob os cuidados de Yedaniah, que requereu a tutela deles ao seu tio, Tamir Sarissóspates (fl. 166 – 49 a.C.), cujo título em Koiné significa “Quebrador de Lanças”). Além do Asmoneu mais longevo – morreu aos 117 anos – era Vice-Rei (hebraico: Nasi) da Judeia e filho de João Gadi, a maior autoridade Asmoneana após Janeu (JOSEFO, 1969). Mas Mahseiah contestou que a guarda deveria ser dele, já que eram seus filhos e Yedaniah não possuía ligação de sangue com as crianças.
Tamir preferiu declinar o julgamento à Janeu, que fixou como precedente a seguinte Gemarah: “Morta a mãe, a custódia dos filhos volta ao pai; morto o pai, a custódia dos filhos retorna à mãe. Nenhum estranho pode ser tutor, mesmo o viúvo da mãe ou a viúva do pai. Mortos os pais, será tutor o parente mais próximo do pai” (1991).
No entanto, o poder de juiz de 1ª grau conferido ao Rei durou apenas no reinado de Janeu (BABOTA, 2020). Em 83 a.C., ocorreu o caso Escravo × Lei, onde um escravo pessoal de Alexandre Janeu havia matado um homem em uma briga na cidade (MISHNAH, 1991). Na época, o Sinédrio era formado apenas por saduceus por conta da Guerra Civil incitada pelos fariseus, e o único fariseu era seu cunhado Simeão ben Shetah (fl. 137 – 68 a.C.), extremamente respeitado por ser neto de Judas Macabeu. Janeu solicitou o julgamento do escravo ao Sinédrio, mas Simeão recusou e intimou Janeu a representar o escravo, já que na Mishnah os escravos tinham o mesmo status de um animal.
O rei Janeu se sentou ao lado do escravo e perguntou a Simeão o que os demais sacerdotes pensavam, mas eles estavam com medo, já que Janeu apareceu à audiência trajando sua armadura e com arma na cinta. Simeão se enfureceu com seus colegas e presidiu o julgamento sozinho, condenando o escravo à morte e Janeu a pagar uma indenização à família do homem assassinado, com o Rei acatando a sentença sem contestar.
Na mesma semana, Simeão propôs uma Takkanah que foi aprovada pelo Sinédrio, revogando o dispositivo no Tratado Sanhedrin que permitia ao rei atuar como juiz, fixando o seguinte precedente: “Um rei não julga os outros e não é julgado no tribunal. Ele não testemunha e não é testemunhado contra. Ele apenas anula as sentenças que lhe recorrem os seus súditos” (1991). Janeu referendou a Takkanah e obedeceu ao Sinédrio.
Janeu tomava vinho de maneira exacerbada e sucumbiu à cirrose, falecendo em 76 a.C. durante uma campanha militar na Transjordânia, mas como seus filhos ainda eram incapazes, ele nomeou como governante da Judeia sua esposa Salomé Alexandra (r. 76 – 67 a.C.), neta de Judas Macabeu (JOSEFO, 1969).
A nomeação de uma mulher ao Trono dos Asmoneus foi encarada como escândalo pela corte, mas ela tratou de realizar uma gigantesca reforma na sociedade judaica, incluindo a justiça:
"Com a morte de Alexandre Janeu, em 76 a.C., o trono foi assumido pela sua viúva, Alexandra Salomé (76-67 a.C.). Obviamente, ela não poderia assumir o cargo de sumo sacerdote por ser mulher. Herdou o título real, mas o sumo sacerdócio passou para seu filho mais velho, Hircano II. Assim, a função sacerdotal foi automaticamente separada da monárquica, resolvendo a problemática relação com os fariseus. Conciliadora, Alexandra buscou entendimento com eles, no que teve sucesso. Assim, durante um governo feminino, o partido fariseu voltou a determinar a política interna da Judeia. A rainha dos judeus conseguiu pacificar o país, mantendo as fronteiras conquistadas pelos antecessores, e seu reino entrou para a tradição judaica como a Idade de Ouro." [130]
A Takkanah de Alexandra garantiu a equidade entre homens e mulheres, mas não a igualdade delas diante da forte estrutura patriarcal sustentada pelos fariseus que apoiavam a rainha (REINKE, 2021). A Mishnah em seu governo transformou o Direito de Família em uma forma de garantia de direitos sociais, ainda que o despotismo helenístico tivesse persistido, contudo, a autoridade jurídica dos militares foi retirada e colocada nas mãos dos rabinos (NETO, 2019).
O noivado voltou a ser privado e ajustado entre as famílias e o Ketubah redigido pelos notários de direito civil, e a competência agora era religiosa, dependendo de um rabino ou juiz religioso para homologar o instrumento, e nem os notários ou rabinos poderiam modificar, alterar ou adicionar cláusulas ao contrato (MISHNAH, 1991).
A novidade era uma cláusula que se tornou obrigatória chamada Tosefet (aramaico: “Garantia”), que dispunha de bens e valores dos aquestos do casal constituídos durante o matrimônio que seriam revertidos à mulher, junto ao dote, em caso de divórcio e anulação do casamento.
Além disso, havia ainda a Ikar (aramaico: “Valor”), o valor básico garantido na Ketubah como indenização à família quando for filha única, e a Nichsei Melug (aramaico: “Posse pessoal”), os bens pessoais que cada cônjuge traz para o casamento, mas que o somente o marido pode usufruir durante o casamento. A Nichsei Tzon Barzel (aramaico: “Bens de usufruto”) são bens que, embora tragam proveito somente ao marido, são garantidos para retornar à mulher, com o valor fixo, em caso de dissolução do casamento.
O casamento ainda era público e seguia o mesmo rito de registro, mas a obrigatoriedade das vestimentas militares para soldados foi removida (MISHNAH, 1991). O divórcio sofreu leves alterações, como a permissão de requerimento pelas mulheres e a possibilidade de requerimento consensual imotivadamente:
"Para assimilar o direito da mulher ao direito do homem, é decretado que assim como o homem não repudia sua esposa exceto por sua própria vontade, assim a mulher não será repudiada exceto por seu próprio consentimento. A mulher divorciada será “sui juris” e poderá se dar em casamento a quem quiser, com certas exceções. Ela não pode se casar com o homem suspeito de ter cometido adultério com ela, nem com o mensageiro que lhe trouxesse o geṭ de seu marido. Ela não tem permissão para se casar novamente dentro de três meses após seu divórcio, para que a paternidade da criança da qual ela pudesse estar grávida não seja posta em dúvida.
As seguintes causas são reconhecidas como autorizando a esposa a exigir uma carta de divórcio do marido: recusa de direitos conjugais; impotência sexual; quando o marido tem alguma doença repugnante, ou lepra, ou está envolvido em algum negócio malcheiroso, como a curtição de couro e produção do corante púrpura; a recusa do marido em sustentá-la; tratamento cruel e privação de sua liberdade pessoal legal; espancamento da esposa; a apostasia do marido — no último caso mencionado, os tribunais devem apelar aos tribunais dos gentios para cumprir seu mandato; a licenciosidade do marido." [131]
Decretada a separação do casal, a guarda dos filhos agora era concedida apenas às mães na sentença do divórcio e os filhos homens tinham a custódia modificada para o pai ao completarem 12 anos, no entanto, se o filho ou filha demonstrasse interesse e mais afeto com o pai, a guarda deveria ser entregue ao genitor, da mesma maneira se o menino de 12 anos desejasse permanecer com a mãe o juiz ou rabino deveria manter a guarda (MISHNAH, 1991).
Todos os bens do casal, pretéritos e adquiridos no casamento, agora eram partilhados igualitariamente, exceto os bens pessoais e os revertidos em favor da mulher no contrato de noivado, o que só ocorria na sucessão (HARTMAN, 2024). Além da previsão de pagamento de pensão aos filhos menores pelo pai, o Nashim agora determinava o pagamento de uma pensão (aramaico: Ikar) no mesmo valor do dote à ex-esposa no caso de divórcio imotivado requerido pelo homem.
A obrigação se estendia enquanto a mulher permanecesse divorciada e não contraísse novo matrimônio, de forma que mesmo que ela conseguisse uma profissão (o que era raro para as mulheres da época, mas não impossível), o ex-marido era proibido de deixar de pagar o valor. Se a mulher se casasse novamente, o antigo marido poderia ingressar com uma ação contra o novo marido solicitando que este lhe pagasse o valor de 1 ano da prestação alimentícia (MISHNAH, 1991).
A hierarquia entre os filhos persistia apenas na sucessão, o pai enquanto vivo deveria dar tratamento e cuidados semelhantes aos dos filhos naturais. Mas uma inovação foi a regulamentação do status dos filhos concebidos fora do casamento por filhas de sacerdotes e a situação do nascituro:
"No caso de alguém que estupra uma mulher sem se casar com ela; ou alguém que seduz uma mulher sem se casar com ela; ou um imbecil que se envolve em relações sexuais com uma mulher, mesmo que ele tenha se casado com ela, se eles não forem sacerdotes, eles não desqualificam a filha de um sacerdote de participar de teruma[132], e se eles forem sacerdotes, eles não permitem que uma mulher israelita participe de teruma. E se eles não forem aptos a entrar na assembleia de Israel através do casamento, eles desqualificam a filha de um sacerdote de participar de teruma. Como assim? Se foi um israelita que se envolveu em relações sexuais extraconjugais com a filha de um sacerdote, ela pode participar de teruma, pois este ato de relação sexual não a desqualifica.
Se ele a engravidou, ela não pode participar de teruma, pois ela está carregando um feto israelita. Se o feto foi cortado em seu útero, ou seja, ela abortou, ela pode participar de teruma, pois não é considerado uma vida no útero até que o aborto tenha a forma de um ser humano. Uma mulher solteira com uma gravidez não planejada não pode abortar seu feto perfeitamente saudável. Aquele que causa a morte de um feto destrói o que Deus construiu, causa choro no céu, distancia a Presença Divina deste mundo e aumenta os problemas do mundo.
Se o homem era um sacerdote que teve relações sexuais com uma mulher israelita, ela não pode participar de teruma. Se ele a engravidou, ela ainda não pode participar de teruma, pois um feto não permite que sua mãe participe. Se ela deu à luz, ela pode participar devido ao seu filho, um sacerdote. Portanto, é descoberto neste caso que o poder do filho é maior do que o do pai, pois o pai desta criança não permite que a mulher participe de teruma, mas o filho sim." [133]
A tutela dos órfãos permaneceu na forma que era na primeira edição da Mishnah de Hircano I, e a curatela do ausente e dos incapazes foi mantida nos mesmos procedimentos introduzidos por Janeu, mas, com a edição do Nashim pela Takkanah de Alexandra, as mulheres poderiam agora poderiam atuar como tutoras e curadoras, algo jamais encontrado em nenhuma legislação helenística contemporânea à Mishnah (NETO, 2019).
Os Mefake'achim ainda atuavam como se fossem promotores de justiça, mas uma mudança foi que os rabinos – se já não atuassem como julgadores durante as ações – também poderiam atuar como fiscais legais e até influenciar na decisão dos juízes seculares e religiosos (HARTMAN, 2024).
Na seara da jurisprudência, muitos casos foram julgados pelo Sinédrio e analisados pela Rainha Salomé. Um deles é o caso Haggai bar Bigvai × Bigvai bar Nekodah, versando sobre alimentos (MISHNAH, 1991). Bigvai se divorciou de sua esposa e prestava pensão alimentícia para seu filho Haggai, mas após ela falecer e a tutela da criança ser entregue aos tios, ele parou de pagar. Haggai, após se casar e assumir a patente de Capitão no Exército Asmoneano, cobrou os valores que o pai lhe devia na Bet-din.
O juiz negou o pedido, dizendo que a cobrança dos valores retroativos pertencia à Takkanah de Hircano I, que foi revogada por Janeu e não foi reestabelecida por Salomé. Haggai recorreu ao Príncipe da cidade, que manteve a decisão e ainda adicionou que não havia obrigação alimentícia mais quando sua tutela foi conferida aos tios.
Ele recorreu ao Sinédrio, que deferiu seu recurso com a seguinte Gemarah: “A pensão paga ao filho pode ser cobrada. O pagamento dos valores retroativos incidirá com juros. Não motiva a cessão do pagamento a tutela do filho pela morte da mãe” (1991).
No caso Alexandre ben Zakkai × Drozah bat Gibbar, a Rainha Salomé analisou um recurso que foi adicionado ao Nashim como Gemarah (MISHNAH, 1991). Alexandre era um Comandante da Cavalaria de elefantes de guerra que se divorciou de sua esposa por esterilidade, e na sentença determinando a partilha de bens, Drozah requereu metade dos espólios de guerra que Alexandre adquiriu no combate contra os gregos em Cálcis. O juiz deferiu o pedido, e Alexandre recorreu ao Príncipe de Citópolis, onde moravam, mas ele indeferiu o pedido, afirmando que os espólios eram considerados presentes.
Alexandre então recorreu à Rainha Salomé, que também indeferiu seu recurso fixando como precedente que “o espólio de guerra pertence à família. O guerreiro que o traz para o lar não o traz só para si, o traz para o sustento de suas esposas e de seus filhos. Findo o casamento, cabe à esposa metade do espólio de guerra” (1991).
O último caso que se tornou Gemarah analisado no governo de Salomé Alexandre foi o de Tzitta bat Netophah × Pashhur bar Kratos (MISHNAH, 1991). Tzitta era esposa de Pashhur, que era um iminente sacerdote saduceu com ligações profundas com a Família Real Asmoneana. Ela requereu o divórcio após o marido lhe ofender em público, um dos motivos permitidos pela Mishnah.
O juiz ordenou que Pashhur oferecesse a Carta de Divórcio, mas ele recusou e o juiz não insistiu. Tzitta então procurou um Sacerdote, que ordenou a prisão de Pashhur até ele conceder a Carta de Divórcio, mas ele recorreu ao Sinédrio. Tzitta também apresentou suas contrarrazões ao Sinédrio, que as deferiu e condenou Pashhur à morte se ele se recusasse a ceder no divórcio. O sacerdote solicitou a Graça Real, mas Salomé indeferiu o pedido e endossou a sentença de morte.
Pashhur ainda recusava a dar o divórcio, tendo sido decapitado por ordem de um decreto do Sinédrio (pois era um sacerdote) nas masmorras da Fortaleza Báris por crime de desobediência. Com isso, Salomé fixou a seguinte Gemarah: “Se o marido se recusar a dar a Carta de Divórcio, será preso. Se preso ele não obedecer às ordens, será condenado à morte por desobediência. A morte, assim como o divórcio, libertará a mulher” (1991).
A Takkanah da rainha Salomé Alexandra foi bastante contestada por ambos os partidos religiosos existentes em sua época: os saduceus, sacerdotes da Tribo de Levi que admitiam somente a Torah como lei a ser seguida, e encaravam a Mishnah apenas como um conjunto de jurisprudências cuja observância era optativa (REINKE, 2021). Os saduceus acreditavam que a flexibilização do Direito de Família traria desordem e libertinagem no núcleo familiar, pois a mulher nunca seria igual ao homem.
Os fariseus, eram leigos não levitas que se submetiam aos ritos da purificação sacerdotal, que recebiam dos próprios sacerdotes autorização para atuarem como rabinos, isto é, mestres da lei judaica (NETO, 2019). Eles não se opunham à equidade entre homens e mulheres, mas acreditavam que a Takkanah da rainha dava margem para que as mulheres tivessem mais direitos que os homens, não atendendo a esse quesito, cuja manutenção só deveria se estender a autoridade sobre os filhos.
Durante os quase 10 anos de seu reinado, o Sinédrio recebeu inúmeras petições apresentadas por juízes seculares, religiosos e até membros da própria Suprema Corte requerendo a anulação da Takkanah outorgada por Alexandra ou pelo menos das leis que eram interpretadas como desvio da função social da família (JOSEFO, 1969).
Um dos casos foi uma ação apresentada por Simeão ben Shetah, irmão da Rainha Salomé e o Nasi Sanhedrin (hebraico: “Presidente do Sinédrio”), ao Sinédrio requerendo a remoção da Cláusula Tosefet dos Ketubot por já ser garantido à mulher a Ikar, o Nichsei Melug e a Nichsei Tzon Barzel, pois isso acabava garantido direitos demais à mulher e menos aos homens no divórcio (MISHNAH, 1991).
Contudo, o absolutismo dos Asmoneus se estendia a ela, não somente por ser esposa de Janeu, mas porque este despotismo corria em seu sangue, já que ela era uma Asmoneia por ser filha de Shetah ben Judas, filho de ninguém mais que Judas Macabeu (r. 166 – 160 a.C.), o irmão de Simão Thassi – o fundador da Dinastia Asmoneana – e o responsável pela independência da Judeia das mãos selêucidas (JOSEFO, 1969).
Com isso, o Sinédrio indeferiu o pedido de seu próprio presidente, com todos os juízes e rabinos sendo obrigados, sob pena de desobediência, a seguir a Mishnah reformada pela Takkanah de Alexandra. Simeão apresentou uma interpelação à própria irmã, mas a rainha negou o pedido dele com o fundamento de que ao Rei era vetado atuar como juiz, já que seu pedido era novo e a sentença proferida pelo Sinédrio era irrecorrível (MISHNAH, 1991).
Salomé morreu repentinamente em 66 a.C. quando a Judeia estava em guerra com o Reino Grego de Cálcis (JOSEFO, 1969). O Sinédrio nomeou o Sumo Sacerdote Hircano II (1º r. 66 a.C.), seu filho mais velho com Janeu, como Rei da Judeia, mas ele foi deposto no mesmo mês da coroação pelo seu irmão Aristóbulo II (r. 66 – 63 a.C.), que foi nomeado Senhor da Guerra e General Supremo do Exército Asmoneano na guerra contra os rebeldes gregos. Aristóbulo era devoto da linha despótica, militarista e ditatorial de Janeu.
Logo em seu primeiro dia, Aristóbulo promulgou uma única Takkanah apelidada pelos rabinos posteriormente de Katla d-ima (aramaico: “Matadora da Mãe”), revogando todas as reformas legislativas, executivas e judiciárias introduzidas por Salomé Alexandra, e sancionando os decretos absolutistas de Alexandre Janeu na íntegra (JOSEFO, 1969).
Com isso a Mishnah voltou a vigorar com a versão de Janeu, mas após um apelo dos fariseus (que se propunham a apoiar politicamente Aristóbulo perante a população), ele manteve a intervenção dos rabinos nos processos judiciais e sancionou novamente a Takkanah do Sinédrio que limitava o poder judicial do Rei apenas à análise de recursos.
Nos seus primeiros dias antes de promover de novo a Takkanah do Sinédrio, Aristóbulo atuou como juiz e analisou vários casos em 1ª instância, entre eles o de Kephirah bat Hashum × Hashum ben Parosh (MISHNAH, 1991). Parosh era um dos Ministros do Príncipe Tamir Sarissóspates em Siquém, e sua filha Kephirah havia noivado um capitão da cavalaria. No entanto, após 07 meses de noivado, Hashum rescindiu o Ketubah sem nenhum motivo.
Kephirah enviou uma petição ao próprio Rei Aristóbulo que veio à Siquém visitar Tamir, nomeado Nasi novamente. Aristóbulo intimou ambos a comparecerem a uma audiência, e Kephirah alegou que o pai não poderia rescindir o Contrato de Noivado sem o consentimento dos nubentes, já Hashum alegou que era legitimado por ser pai.
Aristóbulo indeferiu o pedido de Kephirah e estabeleceu como Gemarah que “a lei determina que quem celebra o contrato pode rescindi-lo. O pai é quem celebra o contrato de noivado, não os noivos. Assim ele pode rescindir o contrato sem dar vista aos noivos” (1991).
Já com o veto à atuação como juiz, foi formado precedente no caso Shallum bar Yehudah × Lei (MISHNAH, 1991). Shallum era um oficial comum do Exército Asmoneano que foi feito prisioneiro durante a Guerra de Cálcis, ainda no reinado de Salomé. Como estava ausente, sua esposa requereu ao superior militar dele a declaração de sua ausência, sua sucessão provisória e casou novamente. Ele retornou 13 anos depois para sua cidade Cafarnaum, após ficar preso na cidade de Hipos sob o poder dos gregos, quando descobriu que foi declarado morto.
O veterano ingressou com uma ação rescisória no quartel ao qual pertencia, mas General sequer apreciou o pedido, alegando que ele estava morto e não possuía mais personalidade jurídica. Shallum recorreu ao Rei Aristóbulo, tendo como fundamento que a Mishnah era omissa quanto ao regresso do ausente e que seus bens deveriam ser totalmente reintegrados. Aristóbulo deferiu parcialmente o pedido de Shallum com o seguinte precedente: “Se o ausente retorna em um ano, tudo lhe será restituído. Se retorna em três anos, ½ lhe será restituído. Se retorna em cinco anos, 3/5 lhe serão restituídos. Se retorna em dez anos, 1/3 lhe será restituído. Se em quinze anos, nada lhe será restituído” (1991).
O caso Hassophereth ben Hatipha × Lei foi o último em Direito de Família a ser transformado em Gemarah no governo de Aristóbulo antes da guerra civil com Hircano II (MISHNAH, 1991). Hassophereth era Ordenador de Despesas na cidade de Giscala, e se divorciou de sua esposa por ela ter estado de insanidade. Ele requereu o divórcio na Bet-din, que homologou a Carta de Divórcio, mas deu a guarda da filha única do casal à mãe.
Hassophereth apresentou um recurso ao Príncipe Tamir, que também era Governador da Galileia, explanando que a lei deveria ser flexionada e que a guarda pudesse ser decidida com base na vontade dos filhos como era na época da Rainha Salomé.
Como era uma ação contra a Mishnah, Tamir, como sacerdote e membro do Sinédrio, decidiu levar o caso ao Plenário da Corte. O Sinédrio considerou o recurso de Hassophereth e decidiu que “quando o pai ou a mãe estiver débil, deve a custódia ser do que demonstrar mais responsabilidade. Quando é prejudicial à criança, então a custódia é removida e entregue ao parente mais apto. Se não houver parentes próximos, a criança será do Reino” (1991).
O governo de Aristóbulo II foi conhecido pela atuação máxima do militarismo e da religião, uma opressão tão forte que levou a uma guerra civil com seu irmão Hircano II, agora com apoio do ardiloso Antípatro, o Idumeu (113 – 43 a.C.), que o aconselhou a prometer ao povo que traria de volta os decretos de Salomé, com a finalidade de ter mais rebeldes a sua causa, visto que a tirania legal de Janeu estava de volta (JOSEFO, 1969).
Em 63 a.C., tanto Aristóbulo quanto Hircano procuraram o apoio do Triúnviro romano Pompeu Magno (106 – 48 a.C.), que no ano anterior havia conquistado o Império Selêucida. Pompeu apoiou o rei por ter lhe dado uma propina, mas ele se armou contra Hircano, e o general romano acabou usando disso para depor e prender Aristóbulo, reduzir a Judeia à Protetorado Romano e instalar Hircano II (2º r. 63 – 40 a.C.) como fantoche dos interesses romanos na Judeia (REINKE, 2021).
Um novo ordenamento jurídico passou a vigorar com a chegada dos romanos, combinando o modelo helenístico dos Asmoneus com o extremamente burocrático processo judicial romano, e o Direito de Família judaico passou por mudanças significativas durante o governo de Hircano, no entanto, suas reformas ocorrem no âmbito do Direito Romano.
O Direito de Família do Nashim não pretendia colocar somente as famílias judaicas sob o controle dos Asmoneus, mas também outros povos nativos da Palestina que foram conquistados nas expansões militares de Hircano I e Alexandre Janeu, como os idumeus e os itureus (REINKE, 2021).
Os idumeus, cujo reino foi conquistado em 130 a.C., foram obrigados a se converterem ao Judaísmo e adotar a Mishnah como lei vigente, mas com o tempo acabaram alcançando autonomia quando Antípatro se tornou o Governador da Idumeia no governo de Alexandre Janeu. Já os itureus foram conquistados em 98 a.C. por Alexandre Janeu e também submetidos à conversão compulsória e adoção da Mishnah, contudo, diferente dos idumeus, os itureus acabaram sendo absorvidos pelos galileus e desapareceram como povo autônomo.
É importante ressaltar que apesar de primordialmente formado por judeus em sua maioria, o Reino Asmoneano da Judeia era formado por outros povos, a maioria colonos gregos e mestiços selêucidas que integraram o Exército Asmoneu e o corpo burocrático do poder executivo judaico (mas depois se rebelaram e criaram seu próprio reino em Cálcis), além de mercenários citas, partos e árabes (JOSEFO, 1969).
Esses povos não eram obrigados a se converter ao Judaísmo e seguir a Mishnah, como ocorreu com os idumeus e itureus, e possuíam independência para organizarem suas famílias e resolverem seus litígios da forma que considerassem melhor, possuindo até tribunais privados com juízes que aplicavam as leis e costumes originários de cada um, mas eram fiscalizados pelos Mefake'achim da Coroa Asmoneana (MISHNAH, 1991).
Nessa linha, as famílias, enquanto base da sociedade judaica, tornaram-se o foco principal das políticas despóticas helenísticas dos Asmoneus, levando à criação de muitas leis e regras, além da compilação da Mishnah nos governos de João Hircano I, Alexandre Janeu, Alexandra Salomé, Aristóbulo II e Hircano II (mas no contexto jurídico romano), cada um legislando ao seu bel prazer.
Ao controlar a estrutura e o funcionamento das famílias, ao Asmoneus conseguiram impor suas normas e regulamentos sobre os judeus e prosélitos palestinos de forma abrangente, pois a Mishnah e os decretos legislativos não eram mais um conjunto de normas voltadas para a proteção e organização das famílias, mas um mecanismo de controle estatal.
O objetivo não era apenas regulamentar as famílias, mas também moldá-las de acordo com os interesses do Estado, criando um patriarcado artificial, sustentado pelo poder militar e religioso, os principais fantoches de quem realmente comandava as famílias: os Reis. Sob o comando despótico dos Asmoneus, o Direito de Família se tornou uma extensão da autoridade real, com o monarca decidindo unilateralmente sobre questões relacionadas à família e à sociedade, cabendo apenas aceitar para não serem castigados.
Além do forte militarismo que, de forma estranha, se entranhou no processo helenístico e no Direito de Família nesse período, uma característica de sua formação nessa época era o despotismo das dinastias helenísticas e a intervenção na família, principalmente nos Estados do Oriente, como o Império Selêucida e o Reino Asmoneano da Judeia, que utilizavam a lei como instrumento de controle social das famílias.
O responsável por estudar sobre esse fenômeno e criticá-lo foi o filósofo selêucida Diógenes da Babilônia (fl. 230 – 150 a.C.), que escreveu sobre isso em sua obra “Sobre as Leis”, cujo conteúdo se perdeu, mas trechos foram preservados pelo jurista romano Cícero (fl. 106 – 43 a.C.), inclusive sua visão sobre as leis do Período Helenístico (LÉVÊQUE, 1987). Diógenes morava em Atenas, mas observou por anos o sistema legal selêucida e ptolomaico, afirmando que o Direito havia se confundido com a figura do rei, que a lei era utilizada para fortalecer o exército e que as famílias serviam apenas como fábricas de soldados.
Os reis helenísticos eram considerados a própria lei, o direito e até mesmo o ordenamento jurídico em carne, ossos e sangue, um senhor da guerra com deliberações legislativas absolutas e de sua própria iniciativa, sem necessidade de consulta de ninguém para criar suas normas ou destas serem aprovadas pelos seus Ministros ou qualquer conselho oficial.
Embora, para aparentar a existência de liberdade política, esses soberanos criavam cargos administrativos, assembleias e supremas cortes responsáveis por analisar suas leis, mas ele só as editava se quisesse. O exército e o clero religioso eram de comando exclusivo do rei, e por isso colocá-los dentro dos processos judiciais tornava bem mais fácil intervir nas famílias.
Esse Despotismo Helenístico, encontrado bem mais forte entre os Asmoneus, formou um legalismo focado especificamente em controlar as famílias, e o Direito de Família helenístico foi bem mais desenvolvido que os demais ante esse almejo de controle, já que controlar as famílias era controlar toda a sociedade, pois a primeira é base da segunda.
A nobreza helenística utilizou a lei para governar as famílias, e, sendo os reis a lei viva, o direito era o próprio Estado determinando como os núcleos familiares deveriam se portar ante a sociedade e seus participantes, usando o exército e a religião para tornar o cumprimento das normas em um dever obnóxio.
O Direito de Família, contudo, continuava vivo e evoluiu ainda mais, e, paradoxalmente, sua utilização como instrumento de controle foi o que levou a seu desenvolvimento entre as sociedades helenizadas e influenciou Roma, cujo ordenamento jurídico privado foi o esboço de praticamente todo o direito ocidental, incluindo o brasileiro.
Analisando principalmente o Direito de Família dos Selêucidas e dos Asmoneus – que eram o suprassumo do Direito de Família no Século I a.C. –, o Helenismo tornou possível a intervenção máxima do Estado por meio de um governo fundado na lei que iria operar em todas as famílias, sendo elas gregas ou nativas.
Assumindo que Alexandre, o Grande possibilitou a unificação do Ocidente Grego ao Oriente diversificado, criando dinastias gregas e nativas helenizadas outorgassem leis familiaristas sob o simples pretexto de que a única mudança era a adoção do modelo despótico oriental de governar, certamente terminaria em desastre.
Não porque os gregos e macedônicos inicialmente eram inimigos de todos os povos do Leste, mas porque as culturas eram incompatíveis entre si, até mesmo as sociedades orientais (como persas, judeus, indianos, etc.) possuíam perspectivas diferente do que era a família.
As Dinastias Helenísticas colocaram estes povos divergentes sob um mesmo Direito de Família em cada território que governavam, não com a finalidade de criar uma identidade única, mas promover o ideal do que o rei – a própria lei encarnada – possuía da família para esta ser regulada, indiretamente, determinando como a sociedade deveria se comportar perante ele, que intervinha cada vez mais na sua função social, conquanto o patriarcado fosse o modelo instituído.
O próprio sentido do que era o Direito de Família muda, pois enquanto na Antiguidade ele servia para simplesmente regulamentar as famílias a fim de organizar e proteger sua integridade, o Direito de Família helenístico era o desejo do rei, um caminho para controlar a nação por intermédio das famílias a um estado ideal de submissão que o Estado visionava, principalmente para as finalidades da guerra.
O legalismo despótico e absolutista que se enraizou no Direito de Família do Período Helenístico, visando colocar todas as camadas da sociedade nas mãos da nobreza militar e/ou religiosa por meio do controle legal das famílias, no entanto, levou ao lançamento das bases do que hoje é o Ministério Público, que não possui mais a função de ser os olhos e o braço do rei invadindo a privacidade judicial da família, mas o protetor do ordenamento jurídico e das famílias, totalmente diferente de seus protótipos políticos.
Insta ressaltar que também se forma nesse período a advocacia em família, como no sistema processual escrito dos Ptolomeus, Selêucidas e Asmoneus, cuja defesa poderia ser realizada pela sustentação oral técnica de um defensor remunerado.
O Período Helenístico possibilitou a criação de um Direito de Família instrumentalizado como extensão do domínio e autoridade real dentro das famílias, mantendo um patriarcado fantoche do poder militar, bem como um ativismo judicial crescente da nobreza e dos religiosos, que foram imbuídos com poder para julgar as questões familiares em nome dos nobres. Mesmo que muitos filósofos de renome criticassem esse sistema de ditadura monárquica legalista (principalmente Diógenes da Babilônia), não se poderia fazer nada para salvar as famílias do cetro dos reis.
Dessa forma, a judicialização total dos conflitos familiares, antes resolvidos no âmbito comunitário ou até mesmo familiar, tornou a atuação do Estado ainda mais invasiva e retirou a autonomia da família em determinar soluções alternativas para seus próprios problemas. Assim, o Direito de Família deixa de ser uma garantia social, e se torna um ato normativo de domínio estatal, não mais Direito Privado, mas normas de Direito Público. A mudança só virá quando Roma dominar o Oriente e reestabelecer o Direito Interno Patriarcal.
CONCLUSÃO
"Enquanto a família continua vivendo,
o sistema de parentesco se ossifica e,
enquanto este continua existindo por costume,
a família cresce para além dele."
– Friedrich Engels, 1884.
O desenvolvimento histórico do Direito de Família corresponde ao próprio desenvolvimento do Direito, o que de um certo prisma nos leva a perceber que ele, como o primeiro direito criado, era o próprio Direito em si. As alterações da sociedade humana na Pré-História ocasionaram o seu desmembramento em outras áreas jurídicas, de acordo com os interesses dos humanos, desde a copa das árvores até as primeiras cidades muradas, instituindo o patriarcado e as primeiras leis na Antiguidade.
Na verdade, a única característica principal que se aplica a todos os Direitos de Família das sociedades primitivas, mas não a todas, é que suas codificações legais regulamentavam o Direito de Família de maneira mais detalhada do que os demais direitos, visto que as resoluções de outras áreas do Direito tinham uma resolução mais ampla e simples.
Talvez não se considere espantoso que o Direito de Família antigo fosse mais complexo que o próprio Direito Criminal para estruturar a sociedade – afinal, “olho por olho e dente por dente” não era tão aplicável no Direito de Família –, já que uma ampla linha de pensamento dos juristas orientais, principalmente os amoritas e hebreus, considerava as regras familiaristas como as causas mais complexas para serem resolvidas. Alguns desses Códigos demonstram que os crimes eram bem mais fáceis de resolver matando o réu.
É possível encontrar uma característica comum para todos os Direitos de Família da Antiguidade, que é nítido em todos os registros deixados: o Patriarcado. Ao estreitar a percepção do regulamento abordado, é possível descobrir que o Direito de Família Antigo possui uma ligação com todas as áreas do Direito da sua época, pois o Direito de Família foi o primeiro ramo jurídico a surgir entre os humanos.
Obviamente, a maioria dos Direitos de Família listados pode trabalhar em vários tipos de tópicos legais que não pertencem mais à discussão familiarista pós-contemporânea – o adultério pode ser encontrado como crime passível de morte entre os Hebreus; partilha de herança podem aparecer junto de normas de filiação no Código de Hamurabi; todas as regras de Direito de Família contêm uma tintura de Constitucionalismo no ordenamento Ateniense.
Já na transição para o Período Helenístico, historiadores antigos que viveram na época ou próximo dela registram em suas obras imemoriais que o Helenismo era despótico e absolutista apenas por influência persa e que a intervenção estatal nas famílias era por culpa da monarquia oriental. Na realidade, estes teóricos estavam se referindo à série de atos interligados de divinização dos reis já presente no contexto grego aliado com o militarismo macedônico de Alexandre, que solidificaram a posição dos reis helenísticos como o próprio ordenamento jurídico encarnado, pois eram vistos como “o pai do povo”.
Embora o Direito de Família Helenístico represente um evento distinto dentro da Antiguidade pela sua transformação em Direito Público pela tirania do poder real nos núcleos familiares, ele estava intimamente ligado com o Patriarcado dos códigos antigos. Ptolomeu Filadelfo, Antíoco Sóter e Alexandre Janeu eram não só tiranos por si sós, mas também legisladores que criavam e editavam normas com base no poder sagrado.
Isso foi, evidentemente, uma sequela do Mandato dos Céus elaborado pelos sumérios, que deu a Hamurabi margem para promulgar seu Código, aos egípcios a oportunidade de construir uma política demagógica e aos hebreus a ordem social por intermédio das leis e normas religiosas. O absolutismo que pavimentou o caminho para a intervenção do Estado no Direito de Família Helenístico também era uma consequência da política divinizadora das monarquias asiáticas, com raiz na religião.
A competência legislativa do Shahanshah na Pérsia que deu origem à irrecorribilidade das decisões imperiais, em seguida à derrubada do Império Aquemênida, trouxe Alexandre, o Grande ao trono da Ásia e a autoperfilhação de si mesmo como filho de inúmeros deuses gregos e orientais, fazendo com que tomasse para si o poder judiciário e encorajasse o despotismo dos Diádocos no Direito de Família, deturpando a reserva real divina que os Estados orientais desenvolveram ainda nos últimos estágios da Pré-História.
A ascensão do Direito Selêucida depois das Guerras da Síria deixou a Judeia à disposição dos ideais despóticos do controle social helenístico, e os Macabeus que antes lutavam contra o helenismo, foram helenizados pelo militarismo e se transformaram nos Asmoneus, cujo Direito de Família foi o mais interventivo durante o governo de Alexandre Janeu. A conversão de dignitários gregos e macedônicos ao Budismo ocasionou a disseminação do Direito de Família helenístico para a Índia, e a conquista do Reino Greco-Bactriano pela Dinastia Han, criando a Rota da Seda, levou o despotismo helenístico para a China.
Portanto, é possível considerar esses eventos como meros episódios de um único Direito de Família maciço – o Direito de Família da 1ª Geração, para lhe dar uma categorização. Ele evolui do poder legislativo garantido aos reis, como método de organização da sociedade em um todo, transformando as famílias em rédeas dos Estados, e seus membros como súditos dependentes da vontade dos soberanos, que se portavam como donos dos núcleos familiares e se comportavam como pais da população, possuindo objetivos militares.
O Direito de Família praticado no âmbito dos costumes e do Direito Consuetudinário pelos hominídeos e civilizações sedentárias antes da invenção da escrita e da noção de Estado é o que podemos nomear de Protodireito de Família, que se baseia na noção de família e necessidade de criar determinadas regras que visassem a proteção daquele núcleo, estabelecendo hierarquia entre os entes e princípios norteadores de cada prática a partir da solidariedade familiar, envolta na própria evolução humana como espécie.
Em uma perspectiva analítica, o Protodireito de Família seria o “Direito de Família Ágrafo” ou o “Costume Jurídico Primitivo das Famílias”, ao passo que o Direito de Família de 1ª Geração seria o “Direito dos Patriarcas Reais” ou o “Direito de Família dos Reis”.
Ele inicia como um ramo do Direito Privado totalmente sujeito à deliberação da nobreza e à judicialização interventiva, cominando na sua transformação em Direito Público e subordinação direta aos reis. As obrigações atinentes a cada um dos familiares não visavam mais a proteção e a solidariedade, mas determinação estatal do papel de cada parente como um peão no xadrez da família, com a finalidade de estreitar o controle da população.
Em uma abordagem geopolítica, o Protodireito surgiu quando os humanos surgiram e ao descer das árvores precisavam proteger seus semelhantes próximos, precisando do auxílio de cada um dos parentes para sobreviver. Já o Direito de Família de 1ª Geração surgiu quando os sumérios e amoritas misturaram o poder real com o regime normativo, aliado a perspectiva greco-macedônica de que regular as famílias diretamente era garantir o domínio de todas as camadas da população.
Se o desenvolvimento do Direito de Família não for considerado um evento único, nós provavelmente consideraríamos o Protodireito e o Direito de 1ª Geração como duas peças históricas sem correlação, pois uma surge da necessidade de sobreviver e outra da ânsia estatal de controlar a sociedade. Por que o Direito de Família se tornou tão importante para as culturas antigas ao ponto de todas elas sempre buscarem regulamentar as famílias?
Simplesmente não eram apenas regras de certo ou errado. Não eram apenas árbitros resolvendo os problemas matando quem causa a litigância ou reparando a lesão com tesouros. Eram normas complexas que determinavam o papel de cada indivíduo e como suas práticas afetavam a estabilidade do Estado. A criação dos tribunais e a judicialização dos litígios familiares trouxeram a dependência dos litigantes ao sistema criado pelos reis e governantes, construindo a escada de domínio judicial.
Os Códigos eternizavam em pedra, argila, metal, madeira, papiro e pergaminho como os súditos deveriam se casar, conceber seus filhos, quem poderia ser filho, qual bem pertencia conjuntamente ou em particular ao casal, como deveriam se separar e a quem as crianças pertenciam. Os juízes eram o braço do Estado, mas os próprios reis poderiam julgar. O patriarcado foi promovido porque a família era o protótipo do reino, cujo pai era o governante. A urbanização juntou enormes contingentes familiares que poderiam ser facilmente controlados e observados.
Burocracias bem servidas com escribas, notários e redes de registro tornavam quase impossível fugir dos procedimentos administrativos que tornavam válidos os atos familiares, tirando das comunidades e conselhos tribais a autonomia de dispor das famílias. O resultado de toda essa busca ao máximo pôr as famílias nas mãos do Estado resultando o domínio total da população tinha um resultado final: Militarismo.
Primeiro, o patriarcado era mais efetivo como propaganda militar do que a própria família era é um ideal do Estado. Os reis se autodenominavam “pai do reino” e “filho do deus X” porque isso atraía mais soldados do que se realizassem conscrição, pois os filhos eram ordenados a obedecer aos pais e os pais eram obrigados a obedecer aos deuses.
Os nobres simplesmente viam o Direito de Família como a forma mais efetiva de organizar os exércitos, eles não visavam o desenvolvimento e a dignidade de cada um dos seus membros, mas como poderiam promover o respeito ao Estado tendo como arquétipo a família.
Segundo, não podemos culpar inteiramente Alexandre, o Grande pelo surgimento do despotismo jurídico e a intervenção real nas famílias. De fato, é difícil achar um único culpado por qualquer coisa em particular e principalmente por um ideal normativo que se construiu ao longo da extensão do Helenismo pelo Mundo Antigo, porque os registros existentes são muito antigos e não há provas originais das leis desenvolvidas por ele.
Entretanto, Alexandre sem dúvidas foi o ideal absolutista para os Reinos Helenísticos e Helenizados adotarem uma abordagem despótica e tirânica para transformar seus Direitos de Família em uma corrente de domínio. Entre a nobreza, isso assumiu a forma de afirmação da natureza divina dos reis e do Patriarcado Estatal; entre a população, porém, havia temor ao Estado e revolta contra a falta de autonomia das famílias.
O Direito de Família de 1ª Geração se vira para um viés militarista, na direção de um Direito Público totalmente curvado à filosofia de que a nobreza era a própria lei em forma humana (forma divina para as pessoas da época), enquanto a população era incentivada a conceber o maior número de filhos possível, mesmo que as condições não fossem favoráveis. Ambas as filosofias desumanizavam o Direito e instrumentalizavam brutalmente a família, desperdiçando displicentemente a vida de seus membros em nome do Estado.
Cada família era vista como uma ninhada de pretensos soldados e servos que cresciam para obedecer às leis, pois o casamento, nascimento, separação, filiação e parentesco dependiam da vontade do Reino e de como os governantes definiriam a existência da família. Cada patriarca forçava seus filhos e mulheres a lhe obedecer, pois ele era a imagem refletida do rei. Cada vez que as normas familiaristas eram endurecidas e ampliavam o poder estatal, o rei se transformava em um pai e deus que convocava seus filhos como conscritos para a guerra, alienados pelo despotismo legal, propensos a sujeitar seus filhos e esposas como subalternos, replicando os quartéis dentro de casa. Cada casamento era somente para conceber mais soldados. Cada filho era um futuro soldado nas fileiras do exército e cada filha era uma futura esposa destinada à conceber mais soldados. Cada família era um curral do Estado.
Isso pode parecer estranho e totalmente diferente do que o Direito de Família é atualmente na Era Pós-Contemporânea em que vivemos, onde o Princípio da Não Intervenção é o maior norteador de seus fundamentos e o Melhor Interesse da Criança e do Adolescente são o condão de todo o judiciário, mas essa busca pelo controle das famílias ainda pode ser percebida (de forma um tanto velada) na concessão de favores sociais com finalidades políticas, visando angariar eleitores.
O Direito de Família na Pré-História é institucionalizado na Antiguidade pelo patriarcado e desfigurado pelo Helenismo, que cravou em seu âmago o despotismo, absolutismo e militarismo, longe de ser o costume solidário do paleolítico e o garantidor de igualdade e dignidade dos membros estabelecido pelo Direito Civil.
Só depois do desenvolvimento da República Romana e sua transformação no Império, e diante da perspectiva do fim do Helenismo e conquista da Ásia Ocidental pelas legiões italianas, é que o ciclo de Regime Jurídico dos Reis bateu em uma muralha e foi forçado a dar lugar ao Pátrio Poder e ao Direito de Família Interno dos romanos, onde o poder dos nobres é entregue a cada pai de família (latim: Pater Familiæ).
Isto posto, o Direito de Família, nascido da Solidariedade Familiar e da Proteção do Afeto, se transforma no Despotismo dos Reis, que se submete à Autocracia dos Pais do Direito Romano, formando o Direito de Família de 2ª Geração (que foi o mais duradouro ao longo da História do Direito, tendo seu fim somente com a Modernidade), mas isso é tópico a ser abordado em outra oportunidade.
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[1] Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (2019). Professora Adjunta C, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas, lecionando Direito Civil, Direito de Família e Direito das Sucessões (Desde 2009). Chefe do Departamento de Direito Privado da FD/ UFAM (Desde 2018).
[2] NdA.: Ma (Megaannum) é a unidade de medida do tempo utilizada para se referir a milhões de anos atrás.
[3] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. 22ª tir. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22.
[4] UNIVERSIDADE DE OXFORD. Oxford Learner's Dictionaries [Dicionário para Estudantes de Oxford]. 2004. Disponível em: <https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/definition/english/creationism?q=creationism>. Acesso em: 20 de ago. 2024. Tradução nossa.
[5] CUNEIFORM DIGITAL LIBRARY [BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME]. OrSu 57 (Eridu’s Genesis [Gênesis de Eridu]), 005-013 1 (P447989). (2012) 2024. Iniciativa: Cuneiform Digital Library Iniciative (CDLI). Disponível em: <https://cdli.ucla.edu/P447989>. Acesso em: 20 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[6] HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. 1ª ed. Porto Alegre: L & PM, 2015, p. 08. Destaques do texto original.
[7] HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. 1ª ed. Porto Alegre: L & PM, 2015, pp. 08 e 48.
[8] PALMER, Douglas. Neanderthal: The Strange Saga of the World's Most Successful Species [Neandertal: A Estranha Saga da Espécie Mais Bem-Sucedida do Mundo]. Cheltenham: The History Press, 2009, p. 109.
[9] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução em português por Nélio Schneider. 1ª ed. São Paulo: Edipro, 2023, p. 137.
[10] NEVES, Walter Alves; PILÓ, Lucas Beethoven. O povo de Luzia: Em busca dos primeiros americanos. 3ª ed. Porto Alegre: Globo, 2008, p. 254-255.
[11] HAREVEN, Tamara K. The History of the Family and the Complexity of Social Change [A História da Família e a Complexidade da Mudança Social]. The American Historical Review, Oxford, vol. 96, n.º 1, pp. 95-124, feb. 1991, p. 109. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/2164019>. Acesso em: 20 de ago. 2024. Tradução nossa.
[12] NdA.: Divindade suméria dos céus e o “Rei dos Deuses” na mitologia mesopotâmica.
[13] NdA.: Deus do clima e das intempéries.
[14] NdA.: Seres celestes com poderes divinos que foram os primeiros a habitar a terra na mitologia suméria.
[15] N.T.: Acadiano – “Senhores”, era o título dos reis.
[16] N.T.: Acadiano – “Líderes”, era o título dos governadores das cidades e províncias.
[17] N.T.: Acadiano – “Homem livre”, era o termo utilizado para definir os cidadãos.
[18] N.T.: Acadiano – “Pobres”, era o termo utilizado para definir as pessoas hipossuficientes.
[19] N.T.: Acadiano – “Escravos”.
[20] NdA.: Deusa suméria do amor, casamento, fertilidade e sexo.
[21] CUNEIFORM DIGITAL LIBRARY [BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME]. CDLI Lexical 000008, Ex. 002 (Laws of Ebla [Leis de Ebla]). (2004) 2024. Iniciativa: Cuneiform Digital Library Iniciative (CDLI). Disponível em: <https://cdli.ucla.edu/P218312>. Acesso em: 21 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[22] NdA.: Deus sumério do sol.
[23] NdA.: Medida suméria equivalente ao litro atual.
[24] NdA.: Medida suméria equivalente a grama atual.
[25] NdA.: Medida suméria equivalente ao quilo atual.
[26] NdA.: Medida suméria equivalente ao quilo, mas utilizada para metais preciosos.
[27] CUNEIFORM DIGITAL LIBRARY [BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME]. RIME 3/2.01.01.20, ex. 03 (P226319) – Ur-Nammu Code [Código de Ur-Nammu]. (2003) 2023. Iniciativa: Cuneiform Digital Library Iniciative (CDLI). Disponível em: <https://cdli.ucla.edu/P226319>. Acesso em: 21 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[28] NdA.: Equivalente amorita do deus sumério Enlil, do clima e das intempéries.
[29] NdA.: Deus babilônico dos céus e Rei dos deuses, para os sumérios era somente um Anunaki.
[30] N.T.: Acadiano – “Raça Abençoada”, os primeiros humanos criados pelos deuses na mitologia babilônica.
[31] N.T.: Acadiano – Salmāt qaqqadim, forma como os amoritas se referiam a si mesmos.
[32] N.T.: Acadiano – Ubānam-ušatriṣma, termo utilizado para a acusação sem provas, muitas vezes injusta.
[33] N.T.: Acadiano – Išammu, era um valor a parte do dote. Enquanto o dote era uma compensação ao sogro pela presença e função da filha na família, o preço de compra era o valor pago pelo seu corpo.
[34] N.T.: Acadiano – Ugbabtum, eram sacerdotisas da deusa Innana que realizavam cultos de fertilidade se envolvendo sexualmente com os celebrantes.
[35] CUNEIFORM DIGITAL LIBRARY [BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME]. RIME 4.03.06.add21 (Laws of Hammurapi [Leis de Hamurabi]) Composite Artifact Entry (P464358). (2014) 2024. Iniciativa: Cuneiform Digital Library Iniciative (CDLI). Disponível em: < https://cdli.ucla.edu/P464358 >. Acesso em: 22 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[36] Ibid., 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[37] PALMA, R. F. História do direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 115.
[38] N.T.: Egípcio – “O Senhor do Leme é Rá”, nome pessoal do Faraó Mentuhotep II.
[39] N.T.: Egípcio – “Aquele que unifica as Duas Terras”, título que assumiu após reconquistar o Alto Egito, tomado por uma dinastia nativa.
[40] N.T.: Egípcio – “Terra Escura”, o nome que os egípcios usavam para denominar o Egito.
[41] NdA.: Deusa da família, maternidade e casamento.
[42] NdA.: Deus da sabedoria e o criador do universo e tudo existente.
[43] NdA.: Deus do sol e da luz.
[44] NdA.: Deus da realeza, cura e proteção divina.
[45] NdA.: Deusa da justiça e do direito, mas nesse contexto se refere ao próprio ordenamento jurídico.
[46] NdA.: Deusa da proteção e das relações familiares.
[47] MUSEO EGIZIO [MUSEU EGÍPCIO]. Judicial Papyrus [Papiro Judicial] Cat.1875/Rifaud I & II. (1824) 2024. Iniciativa: Museu de Antiguidades Egípcias de Turim. Disponível em: <https://collezionepapiri.museoegizio.it/en-GB/document/391>. Acesso em: 23 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[48] N.T.: Egípcio – “Oriente”, é o termo utilizado pelos egípcios para a Ásia.
[49] EPIGRAPHIC SURVEY [LEVANTAMENTO EPIGRÁFICO]. Tomb of Horemheb [Tumba de Horemheb] (KV 57). (1908) 2008. Iniciativa: Museu de Antiguidades Egípcias de Turim e Instituto Oriental de Chicago. Disponível em: <https://www.digital-epigraphy.com/painted-hieroglyph/tomb-of-horemheb-kv-57-001>. Acesso em: 23 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[50] PALMA, R. F. História do direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, pp. 101 e 103.
[51] BÍBLIA. Gênesis. Português. In: Bíblia A Mensagem. Tradução em Linguagem Contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2021, pp. 17-18 e 28-29. ISBN: 978-8538302049.
[52] BÍBLIA. Gênesis. Português. In: Bíblia A Mensagem. Tradução em Linguagem Contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2021, pp. 32-33. ISBN: 978-8538302049.
[53] BÍBLIA. Gênesis. Português. In: Bíblia de Estudo Thomas Nelson. Nova Tradução Internacional (NVI). 1ª ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2023, p. 78. ISBN: 978-6556892955. Formatação do texto original.
[54] BÍBLIA. Êxodo. Português. In: Bíblia A Mensagem. Tradução em Linguagem Contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2021, p. 126. ISBN: 978-8538302049.
[55] BÍBLIA. Levítico. Português. In: Bíblia A Mensagem. Tradução em Linguagem Contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2021, p. 91. ISBN: 978-8538302049.
[56] BÍBLIA. Deuteronômio. Português. In: Bíblia de Estudo Thomas Nelson. Nova Tradução Internacional (NVI). 1ª ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2023, pp. 280-287. ISBN: 978-6556892955.
[57] [57] BÍBLIA. 1 Reis. Português. In: Bíblia A Mensagem. Tradução em Linguagem Contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2021, pp. 256-257. ISBN: 978-8538302049.
[58] NdA.: Cacos de barro, geralmente pedaços de jarros quebrados, utilizados como material para redigir documentos, escrituras e contratos na Antiguidade, principalmente na cultura hebraica.
[59] THE ISRAEL MUSEUM [O MUSEU DE ISRAEL]. IAA: 1960-67 (KAI 284) - Mezad Hashavyahu (Ink on pottery - A reaper's plea [Escrita sobre cerâmica - A petição de um ceifador]). (1973) 2019. Iniciativa: Museu de Israel e Universidade Hebraica de Jerusalém. Disponível em: <https://www.imj.org.il/hb/collections/מוזיאון/ישראל/ירושלים>. Acesso em: 23 de ago. 2024. Tradução nossa.
[60] CUNEIFORM DIGITAL LIBRARY [BIBLIOTECA DIGITAL CUNEIFORME]. RIMA 2.0.087.Add031, Ex. 01 Artifact Entry. (2005) 2024. Iniciativa: Cuneiform Digital Library Iniciative (CDLI). Disponível em: <https://cdli.ucla.edu/P281779>. Acesso em: 26 de ago. 2024. Destaques do texto original. Tradução nossa.
[61] MĀDAYĀN Ī HAZĀR DĀDESTĀN: The Book of a Thousand Judgements [O Livro dos Mil Julgamentos]. Tradução em inglês por Anahit Perikhanian. 39ª ed. Costa Mesa: Mazda Publishers, 1997, p. 265. ISBN: 978-1568590615. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[62] NdA.: O Império Sassânida, também chamado de Terceiro Império Persa, foi o último império iraniano antes das primeiras conquistas muçulmanas dos séculos VII a VIII. Nomeado em homenagem à Casa de Sassan, durou mais de quatro séculos, de 224 a 651, tornando-se a terceira dinastia imperial persa mais duradoura depois dos arsácidas do Império Parta.
[63] MĀDAYĀN Ī HAZĀR DĀDESTĀN: The Book of a Thousand Judgements [O Livro dos Mil Julgamentos]. Tradução em inglês por Anahit Perikhanian. 39ª ed. Costa Mesa: Mazda Publishers, 1997, p. 308 e 412. ISBN: 978-1568590615. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[64] NdA.: Moeda persa de ouro da época do Império Sassânida. Não se sabe qual a moeda ou até mesmo valor original estipulado no texto aquemênida, já que as multas no Mādayān ī hazār dādestān são adaptados ao contexto sassânida.
[65] NdA.: Moeda sassânida de prata.
[66] NdA.: Acredita-se que esse trecho não estava na lei original aquemênida e foi adicionado pela Corte Sassânida para suprimir o Cristianismo na região e impedir a expansão do Islamismo, que nessa época já se expandia pelo Levante.
[67] MĀDAYĀN Ī HAZĀR DĀDESTĀN: The Book of a Thousand Judgements [O Livro dos Mil Julgamentos]. Tradução em inglês por Anahit Perikhanian. 39ª ed. Costa Mesa: Mazda Publishers, 1997, pp. 107-108. ISBN: 978-1568590615. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[68] MĀDAYĀN Ī HAZĀR DĀDESTĀN: The Book of a Thousand Judgements [O Livro dos Mil Julgamentos]. Tradução em inglês por Anahit Perikhanian. 39ª ed. Costa Mesa: Mazda Publishers, 1997, p. 112. ISBN: 978-1568590615. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[69] MANUSRTI - Código de Manu: Livro Nono. Iniciativa: DHNET – Direitos Humanos na Internet, 1995. Disponível em: <https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/manusrti3.htm>. Acesso em: 05 de set. 2024.
[70] PALMA, R. F. História do direito. 9º ed. São Paulo: Saraiva, 2022, pp. 147-149.
[71] N.T.: Grego – “Aqueles que pagam a sexta parte”, eram agricultores que viviam em terras arrendadas de latifundiários atenienses.
[72] N.T.: Grego – “Diarista”, eram agricultores que moravam na cidade, mas faziam diárias nas terras de senhores ou hektemorioi.
[73] N.T.: Grego – “Junta à Herança”, era a filha única ou a irmã mais velha que só possuía irmãs.
[74] N.T.: Grego – “Guardião”, era o tutor da epikleros enquanto esta fosse solteira.
[75] N.T.: Grego – “Tábuas”, eram as placas de metal, madeira ou pedra onde as leis gregas eram gravadas.
[76] PLUTARCO. Vidas Paralelas: Sólon e Publícola. Tradução do grego por Delfim F. Leão e José Luís L. Brandão. 1ª ed. Lisboa: CEHC (Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos), 2012, pp. 66-107. Destaques do texto original.
[77] ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. Vol. 11. São Paulo: Encyclopædia Britannica do Brasil, 1990, p. 7.511. ISBN: 85-7026-190-X. Destaques do texto original.
[78] Ibid., p. 7.512. ISBN: 85-7026-190-X.
[79] AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de Direito Civil 6 - Direito de Família. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 510-512.
[80] ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. Traduzido do grego por Edson Bini. 1ª ed. São Paulo: Edipro, 2012, pp. 32-134. Destaques do texto original.
[81] NdA.: Hélade era como os gregos se referiam a Grécia em seu idioma nativo.
[82] REINKE, André. Os Outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino. 1ª ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019, p. 202.
[83] NdA.: Chamado em egípcio de Heb-sed, era uma comemoração celebrada quando o Faraó completava 30 anos de governo, sendo dedicada à divindade Wepwawet, o deus egípcio da vitória, como recurso de legitimação do poder absoluto faraônico.
[84] NdA.: Título dado aos Faraós e Rainhas Ptolomaicos falecidos e divinizados, “Sóter” significa “Salvador”, reforçando que os gregos libertaram os egípcios do governo opressor persa.
[85] N.T.: Koiné – “Manifestação Divina da Graça”, título usado por vários Faraós greco-macedônios.
[86] NdA.: Mês de março no antigo calendário macedônico.
[87] NdA.: Mês de março no antigo calendário egípcio.
[88] BRITISH MUSEUM [MUSEU BRITÂNICO]. Stele EA1701 [Estela EA1701] (AES 1694/1929,1016.178). (1929) 2024. Iniciativa: Museu Britânico e Sociedade de Exploração do Egito. Disponível em: <https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA1701_2>. Acesso em: 28 de ago. 2024. Formatação do texto original. Tradução nossa.
[89] BRITISH MUSEUM [MUSEU BRITÂNICO]. Stele EA1701 [Estela EA1701] (AES 1694/1929,1016.178). (1929) 2024. Iniciativa: Museu Britânico e Sociedade de Exploração do Egito. Disponível em: <https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA1701_2>. Acesso em: 28 de ago. 2024. Destaques do texto original. Tradução nossa.
[90] NdA.: Termo utilizado do século XIX até meados do século XX para se referir aos zoroastristas.
[91] CLAY, Albert Tobias. Legal Documents From Erech: Dated In The Seleucid Era, 312-65 B.C. [Documentos Legais de Uruque: Datados da Era Selêucida, 312-65 a.C.] (1913). Whitefish: Kessinger Publishing, 2010, pp. 48-49.
[92] LÉVÊQUE, Pierre. O Mundo Helenístico. 1ª ed. São Paulo: Almedina Brasil, 1987, p. 126.
[93] KANTOR, Georgy. Ideas of Law in Hellenistic and Roman Legal Practice [Noções do Direito na Prática Jurídica Helenística e Romana]. Oxford Academic, Oxford, vol. 1, n.º 1, pp. 55-84, ago. 2012, p. 63. Disponível em: <https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199664269.003.0003>. Acesso em: 29 de ago. 2024. Tradução nossa.
[94] KANTOR, Georgy. Ideas of Law in Hellenistic and Roman Legal Practice [Noções do Direito na Prática Jurídica Helenística e Romana]. Oxford Academic, Oxford, vol. 1, n.º 1, pp. 55-84, ago. 2012, p. 68. Disponível em: <https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199664269.003.0003>. Acesso em: 29 de ago. 2024. Tradução nossa.
[95] ESTRABÃO. Geography [Geografia]. 1ª ed. East Sussex: Delphi Classics, 2016, p. 3678.
[96] N.T.: Mandarim – “Jônicos”, termo como os chineses chamavam os gregos.
[97] N.T.: Mandarim – “Diódoto”.
[98] N.T.: Mandarim – “Báctria”.
[99] NdA.: Nome chinês do Rio Amu Dária, localizado no Uzbequistão.
[100] NdA.: Outro termo chinês para se referir aos gregos.
[101] NdA.: Termo chinês usado para se referir ao Império Selêucida.
[102] N.T.: Mandarim – “Pérsia”.
[103] N.T.: Mandarim – “Bactrianos”.
[104] N.T.: Mandarim – “Saka”.
[105] N.T.: Mandarim – “Buda”.
[106] QIAN, Sima. Records of the Grand Historian: Shiji [Registros do Grande Historiador: Shiji]. 3ª ed. Nova York: Columbia University Press, 1993, p. 173.
[107] NdA.: Nome de Menandro no idioma Pali, uma língua antiga do norte da Índia que foi utilizada para compilar os primeiros textos sagrados do Budismo antes da utilização do sânscrito.
[108] NdA.: Art. 420º do Código de Manu.
[109] NdA.: Nas religiões védicas e no Budismo, Dharma significa “Ordem Cósmica” em sânscrito. É a filosofia moral que determina a forma correta de viver, em harmonia com a lei natural e o direito humano, determinando o papel de cada pessoa na sociedade, ou seja, como agir nos relacionamentos, no emprego e na família.
[110] PESALA, Bhikkhu. Milinda Pañha: O Debate do Rei Milinda. Tradução do inglês por Ethel Beluzzi. 1º ed. Valinhos: Associação Buddha Dharma, 2021, p. 204-205.
[111] NdA.: Os bactrianos e sakas eram em sua maioria ruivos, com pele clara e olhos verdes, o que era visto pelos nativos indianos como um defeito genético, sendo indiretamente um impedimento matrimonial visando evitar a miscigenação com os povos da Ásia Central, ainda que fossem predominantemente budistas de tradição grega.
[112] NdA.: Moeda de prata corrente na época do Império Maurya.
[113] NdA.: Era o termo em sânscrito e persa para se referir aos cânticos sagrados do Hinduísmo e Zoroastrismo.
[114] THE EDICTS OF KING ASHOKA - an English rendering by Ven. S. Dhammika [Os Editos do Rei Ashoka - uma tradução em inglês do Venerável S. Dhammika]. Iniciativa: Access to Insight, 1995. Disponível em: <https://www.accesstoinsight.org/lib/authors/dhammika/wheel386.html>. Tradução nossa. Acesso em: 05 de set. 2024.
[115] LÉVÊQUE, Pierre. O Mundo Helenístico. 1ª ed. São Paulo: Almedina Brasil, 1987, p. 211.
[116] NdA.: O nome em hebraico de Deus no judaísmo. Ele é colocado em hebraico nas traduções das escrituras sagradas judaicas para não ser mencionado pelos não-judeus. Por respeito a isso, não será traduzido o termo.
[117] NdA.: Um festival judaico conhecido como Festa da Expiação, ele é comemorado no fim de setembro e início de outubro, e é dedicado ao lamento, reflexão e pedido de perdão dos judeus à Deus e aos seus próximos.
[118] MISHNAH. Sanhedrin. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 236. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[119] Ibid., 1991, p. 237. Tradução nossa.
[120] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 893. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[121] N.T.: Hebraico – “Lícito”.
[122] N.T.: Hebraico – “Sacerdote”.
[123] N.T.: Hebraico – “Redenção do Primogênito”, esta é uma cerimônia que ocorre quando uma mulher judia tem o nascimento natural de um primogênito do sexo masculino, e nenhum dos pais biológicos é descendente de sacerdotes ou levitas.
[124] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 915. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[125] N.T.: Hebraico – “Juízes”, eram os juízes seculares que atuavam nas Bet-din.
[126] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 926. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa
[127] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 935. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[128] Ibid., p. 936. Tradução nossa.
[129] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 937. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[130] REINKE, André. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua atuação no plano divino. 1ª ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 332.
[131] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 938. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
[132] NdA.: Hebraico – “Elevar”, era o dízimo entregue para o sustento dos sacerdotes judeus e levitas, bem como de suas famílias.
[133] MISHNAH. Nashim. Inglês. In: The Mishnah: A New Translation [A Mishná: Uma Nova Tradução]. Tradução do hebraico por Jacob Neusner. 2ª ed. – Reimpressão. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 943. ISBN: 978-0300050226. Tradução nossa.
Acadêmico em Direito na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Jorge Hilton Vieira. História do direito de família: da pré-história ao período helenístico (7.000.000 Ma – 30 a.C.) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /66803/histria-do-direito-de-famlia-da-pr-histria-ao-perodo-helenstico-7-000-000-ma-30-a-c. Acesso em: 28 dez 2024.
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